Lúcio Lambranho e Eduardo Militão
Assim que aprovar o orçamento, o Congresso Nacional deve se debruçar sobre uma promessa de campanha feita pelo senador Garibaldi Alves (PMDB-RN) quando se candidatou à sucessão de Renan Calheiros (PMDB-AL): apreciar os vetos presidenciais que há anos repousam nas gavetas da Casa.
E, no meio deles, um tem combustível de sobra para despertar polêmica entre governo e oposição. A derrubada de um dispositivo da Lei 11.328/06, que facilitaria as cobranças judiciais por meio de penhora de imóveis de luxo e de altos salários, está na pauta junto com outros 82 vetos presidenciais propostos pelo presidente do Senado, como mostrou, com exclusividade em 15 de fevereiro, o Congresso em Foco.
A derrubada do projeto, de autoria do próprio Executivo, foi patrocinada pelo senador José Sarney (PMDB-AP), cujo amigo Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos, está às voltas com uma tentativa de penhora de sua mansão de R$ 50 milhões, em São Paulo.
Leia também
O senador nega ter beneficiado o ex-controlador da instituição financeira que sofreu intervenção do Banco Central em novembro de 2004 e deixou um rombo de R$ 2,3 bilhões aos seus clientes e credores.
Mas o que chama atenção é que o ex-presidente da República convenceu o governo, mostrando toda sua força política, a derrubar um texto que o próprio Planalto redigira, com o apoio do então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e de uma comissão de juristas, depois de dois anos de tramitação no Congresso. O fato é considerado inusitado por assessores parlamentares, justamente porque os congressistas não mudaram em nada o texto do projeto.
O veto foi proposto pelo presidente Lula em dezembro de 2006 e só agora vai à apreciação em sessão do Congresso. Apesar de reconhecer que o projeto “parece razoável”, o presidente vetou o que sua equipe propôs porque entendeu que o assunto merecia mais discussão da sociedade. O projeto de lei ficou em debate durante dois anos nas duas Casas do Congresso.
O assunto está entre os vetos considerados “complexos ou politicamente sensíveis” pelo presidente do Congresso. O dispositivo vetado permitia a penhora de imóveis cujo valor excedesse a mil salários mínimos (hoje R$ 415 mil). Pessoas com menores posses manteriam o direito de ter suas casas livres da penhora por causa de dívidas ou cobranças judiciais antes das condenações. Leia a íntegra do veto.
Atendimento imediato
O senador José Sarney trabalhou tanto pela derrubada do dispositivo que o governo o atendeu quase que imediatamente. Depois de a Lei 11.382 ser aprovada no Senado, ele discursou no plenário do Senado criticando a nova norma. “É bem de família e se quer assegurar que a família tenha o direito de morar”, afirmou o senador, em 5 de dezembro de 2006, citando a Lei 8.009/90, que ele criou em seu governo e que instituiu a “impenhorabilidade” da casa própria.
No dia seguinte, o Planalto derrubou o dispositivo da lei que modificava o parágrafo único do art. 650 do Código de Processo Civil (CPC). O governo usou o argumento de Sarney, citando a Lei 8.009, e disse que o tema – que foi provocado pelo próprio Executivo – precisava ser vetado para ser rediscutido pelos parlamentares.
Do plenário, Sarney comemorou. “Eu pedi […] que o presidente fosse sensível e que vetasse esses dois dispositivos. O nosso líder de governo comunicou-me, bem como o ministro da Justiça esta manhã que o presidente vetaria os dois dispositivos”, anunciou na época o ex-presidente da República.
Amizade
É pública a amizade da família Cid Ferreira e os Sarney. A mulher do banqueiro, a engenheira civil Márcia Maria, é amiga de infância da senadora Roseana Sarney (PMDB-MA) e filha do falecido ex-senador Alexandre Costa, também aliado político de Sarney. A relação do casal Edemar e Márcia surgiu justamente no casamento de Roseana com o empresário Jorge Murad, nos anos 70.
Além disso, quando ainda era presidente do Senado, José Sarney admitiu que sacou dinheiro da instituição financeira do amigo “por causa de rumores sobre a saúde financeira do banco Santos”. A declaração foi feita por meio de uma nota distribuída pela assessoria de imprensa da presidência do Senado. Sarney foi obrigado a se pronunciar depois de uma série de boatos de que um político importante ligado ao controlador do banco teria feito um grande saque dias antes da intervenção do Banco Central.
Proteção
Ontem (5), Sarney disse ao Congresso em Foco que, quando foi presidente, entre 1985 e 1990, tentou proteger os bens essenciais à sobrevivência das pessoas. Mas negou qualquer atitude para beneficiar o amigo Edemar Cid Ferreira. Ele disse que a impenhorabilidade alcança a casa própria, os salários e os objetos de trabalho, como as máquinas.
“As pessoas ganham a vida com aquilo. O presidente foi alertado de que poderia ter essas conseqüências”, disse ele, à reportagem, no salão Azul do Senado, na tarde de ontem.
Sarney negou que o veto apoiado por ele beneficiasse o amigo Edemar no imbróglio com a mansão do Morumbi. “Por causa disso, não tem nada que ver. Que eu tenha conhecimento, a casa do senhor Edemar não se enquadra jamais, porque não é dele. É de uma empresa. Não existe isso”, reagiu.
O senador disse que o veto jamais poderia beneficiar o amigo. “Essa lei não alcança bens dessa natureza e dessa magnitude, nem para empresa. Casa própria é de pessoa. É individual. Não é de empresa.”
Por correio eletrônico, o advogado de Edemar, Arnaldo Malheiros, confirmou que a mansão está em nome de empresa, mas não informou a quem essa pertence. Na Justiça, a mulher de Edemar, Márcia Maria, já chegou a exigir a manutenção do bem da família. “Sarney e Edemar não conversaram sobre o assunto”, disse Malheiros, ao se referir ao veto de Lula.
Sarney atacou o sistema financeiro, acusando-o de fazer pressão para que a casa própria e os salários sejam penhorados. “Os bancos é que lutam até hoje para derrubar o princípio da impenhorabilidade da casa própria”, criticou. “É um argumento do sistema bancário.”
Ele disse que, quando da edição da lei 8.009, os bancos foram à Justiça reclamar a ilegalidade da norma. Ao contrário, afirma que a medida adotada por seu governo seguiu uma tradição internacional – conhecida como homestead. Nos Estados Unidos, há mais de 150 anos as casas das famílias são impenhoráveis.
A assessoria de imprensa da Casa Civil do Palácio do Planalto recomendou à reportagem que procurasse o Ministério da Justiça para comentar o assunto. No ministério, a assessoria informou que não seria possível localizar, ainda ontem, a pessoa responsável pelo tema. A assessoria de Edemar Cid Ferreira disse que ele não comentaria o assunto. O site também entrou em contato com ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Ele alegou que só poderia comentar o assunto hoje (6).
“Incomum”
O líder do PPS, deputado Fernando Coruja (SC), disse ao Congresso em Foco que vai buscar apoio principalmente junto à oposição para derrubar o veto do presidente Lula. Coruja classificou como “incomum” o veto, considerando que a proposta partiu do próprio governo e as alterações na legislação foram avalizadas pelo ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e por uma comissão de notáveis juristas.
“Acho o projeto válido, assim como todo o Congresso, que aprovou o texto do governo sem alterações. A questão agora é saber quem é contra esse projeto que foi consenso nas duas Casas. Vamos apresentar proposta para derrubar esse veto”, avisa Coruja.
Na oposição o assunto ainda não foi discutido entre os líderes, mas já rende ataques ao governo a possibilidade de o veto ter sido feito apenas para atender a uma demanda do ex-presidente José Sarney.
“É intrigante o governo vetar um projeto do próprio governo. Apenas isso coloca o governo sob suspeita. O veto deve ter tido endereço certo. Vamos trabalhar para derrubá-lo”, disse ao site o senador Álvaro Dias (PSDB-PR).
Posse da mansão
No dia 24 de janeiro de 2007, fracassou a última tentativa da família do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira manter a posse da mansão na rua Gália, nº 120, no bairro do Morumbi, em São Paulo. A decisão foi dada pelo presidente em exercício do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Francisco Peçanha Martins. Ele indeferiu o pedido de liminar movido pela esposa do ex-banqueiro, Márcia de Maria Costa Cid Ferreira.
Márcia, segundo o STJ, alegava que a 6ª Vara Criminal da Seção Judiciária de São Paulo havia descumprido medida cautelar deferida pelo ex-presidente do STJ Edson Vidigal em janeiro de 2006.
“Quando obteve a medida cautelar – concedida em janeiro de 2006, revogada em fevereiro e, novamente, concedida em março pelo ministro do STJ Hélio Quaglia Barbosa –, Márcia, que é sócia em pelo menos nove empreendimentos do marido, não figurava no processo de crime financeiro em razão da quebra do Banco Santos . À época, argumentou que o imóvel onde vive a família estava ligado aos negócios administrados por ela, e não pelo ex-banqueiro”, diz a nota da assessoria de imprensa do STJ.
Em maio de 2006, ainda segundo o STJ, Márcia também foi denunciada no processo. E em dezembro foi condenada a cinco anos e quatro meses de prisão em regime semi-aberto pelo crime de lavagem de dinheiro. De acordo com a denúncia, a mulher do ex-banqueiro controlava empresas off-shore em paraísos fiscais para onde era desviado ilegalmente dinheiro do Banco Santos. A mansão na rua Gália, onde o ex-banqueiro guardava sua coleção de obras de artes, deverá ser transformada num museu caso seja confirmado o despejo da família Cid Ferreira.
Deixe um comentário