O Brasil tem, em agosto de 2011, reservas internacionais da ordem de US$ 330 bilhões. Desse total, US$ 265 bilhões aplicados a juro quase zero, em títulos denominados em moeda de valor cadente, o dólar. Para manter essas reservas, o país toma dinheiro emprestado internamente, e paga, por ele, juros da ordem de 10% a 12% ao ano, ou cerca de US$ 26 bilhões. Se considerarmos a desvalorização do dólar, o custo aumenta. Mau negócio?
Analisado assim, isoladamente, é péssimo negócio. No entanto, possuir reservas é necessário e importante: elas são um seguro para enfrentar crises externas. A sua escassez já prejudicou o Brasil diversas vezes, e sua disponibilidade, certamente, ajudou o país em 2008. É atribuída ao ex-ministro Mário Henrique Simonsen frase que ilustra a importância de se ter reservas: “A inflação aleija, mas o balanço de pagamentos mata!”
A “administração de reservas”, no entanto, impõe vários desafios. Um é mantê-las em segurança, sem que percam o valor; outro, aplicá-las com rentabilidade, sem grandes riscos. Outro, ainda, é saber quanto de reservas é o suficiente. Como quase tudo na vida, nem sempre mais é, necessariamente, sinônimo de melhor. Afinal, manter reservas implica custo. Assim, não há quem possa dizer, com total segurança, qual o volume “suficiente” ou “ideal” de reservas. Se o custo de mantê-las tende a subir, então menos se torna melhor; se são as ameaças de crise no balanço de pagamentos que crescem, então mais torna-se melhor. Qual o equilíbrio?
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Em artigo recente, Kenneth Rogoff , economista conceituado em todo o mundo, especialista em crises, sugeriu que a única solução (para os EUA e outros, não para o Brasil) para a atual precariedade financeira é ocorrer uma transferência de recursos dos credores para os devedores. Isso mesmo, transferir recursos, por exemplo, do Brasil para os EUA. Entre as maneiras de fazer isso, ele sugere a inflação. Como se sabe, a inflação desvaloriza as dívidas, prejudica o credor e facilita, ao devedor, pagá-las.
Inflação significa reduzir a quantidade de produtos que se pode comprar com uma determinada quantidade de moeda. Quando uma autoridade intelectual como Rogoff vem a público sugerir que a inflação em dólares pode ser uma “solução”, embora parcial, para os devedores, devem se acender as luzes de alerta nos painéis daqueles que possuem, ou administram, “ativos” em dólar.
Considerando que ocorra uma inflação, em dólar, da ordem de 10% em dois anos, nesse prazo perderemos cerca de US$ 78 bilhões (26 de custo anual, mais 26 de desvalorização)! Se consideramos a inflação em reais, o custo será um pouco diferente, mas não substancialmente. É muita grana, até mesmo para os EUA, embora ainda insuficiente para resolver o problema da sua dívida. Se pensarmos em termos “per capita”, seriam quase quatrocentos dólares de perda para cada brasileiro. Muita grana!
PublicidadeDevemos, então, mudar a composição das nossas reservas? Para colocar em quê? Euros? Ouro? Yens? Yuans? Cada uma dessas alternativas tem seus prós e contras. Somados e deduzidos, o resultado é que não há, no momento, no mercado financeiro, alternativa ao dólar.
Assim, devemos aceitar perder US$ 78 bi, caso ocorra a tal inflação, ou mesmo US$ 56 bilhões, sem ela? Com todas as carências atuais no Brasil, devemos arcar com esse custo? Não seria, talvez, interessante, tentar proteger nossas reservas e diminuir a exposição ao risco dólar?
Com US$ 78 bilhões de dólares poderíamos comprar algo como 156 milhões de computadores, praticamente 1 para cada brasileiro, e distribuí-los entre a população. Mesmo considerando o risco de perder a grana, essa compra seria uma estupidez. Como operacionalizar o uso de 156 milhões de computadores? Desperdício quase tão grande quanto queimar o dinheiro. Claro, precisamos de computadores, mas não de tantos, nem tão subitamente! Temos ainda 25% de analfabetos funcionais entre a população de mais de quinze anos; para eles, qual a utilidade dessas máquinas, além de fazer joguinhos?
Outra alternativa de uso seria comprar aviões para a força aérea; o dinheiro seria suficiente para adquirir mais de cem aeronaves bélicas, e não apenas os trinta e seis aviões do plano que se arrasta há mais de dez anos. Usar parte das reservas para fazer essa compra seria outra estupidez, embora seja claro que a nossa força aérea necessita de aviões.
Qualquer opção simples de aplicação das reservas, com bom rendimento e baixo risco, é ilusória e perigosa. Não colocar todos os ovos na mesma cesta é regra básica da administração de recursos, e deve ser respeitada. Nem tantos aviões nem aquela quantidade de computadores trariam “rendimento”. O montante dos recursos é de tal ordem, assim como são as incertezas, que a “composição da carteira”, para usar o jargão do mercado financeiro, tem que ser muito bem estudada e gerenciada. Quando se trata das “aplicações financeiras” de um país, os cuidados devem ser ainda maiores. Não apenas no estudo e definição da composição “ideal” da carteira, mas também no seu gerenciamento e, essencial, na fiscalização. Que, no Brasil, sabemos estar muito fraca.
Assim, como proteger nossas reservas, nessa conjuntura em que predominam as perspectivas de desvalorização da moeda em que estão aplicadas e, aparentemente, não existe alternativa de aplicação? Já vimos que computadores e aviões de guerra não seriam um bom uso. Quem sabe comprar um trem-bala? Eles não o têm para vender e, se tivessem…., também não seria uma boa opção.
Devemos, então, deixar o dinheiro como está, e perder US$ 78 bi? Não haveria alternativa melhor?
Podemos também comprar chicletes, coca-cola, ingressos na Disney, apartamentos em Miami, sanduíches e outros, todas essas opções indesejáveis. Quem sabe navios, barcos, camionetes para dar aos fiscais do IBAMA melhores condições de fiscalizar o desmatamento, radares para fiscalizar excesso de velocidade no trânsito e reduzir mortes e despesas médicas, balanças para acabar com a praga do excesso de peso nos caminhões, que destrói as rodovias? Quem sabe comprar bombas? Bombas? Sim, não as explosivas, mas hidráulicas e de ar comprimido, grandes e pequenas, que poderiam tornar operacionais dezenas de projetos de irrigação hoje paralisados. Poderemos também comprar tomógrafos, ônibus para transporte coletivo e escolar, máquinas de terraplenagem para melhorar nossas estradas, muitos computadores para diversos fins, e milhões de outras possibilidades. Caso o governo emita reais para adquirir esses bens, teríamos uma indesejável pressão inflacionária; caso use parte das reservas para comprar esses produtos no exterior, essa pressão não existiria.
Parece que, agora, a proposta começa a fazer sentido; não é?
Outro exemplo ilustrativo, bem simples: poderíamos comprar 156.000, isso mesmo, cento e cinquenta e seis mil conjuntos, de US$ 500.000,00 cada, compostos por máquinas de terraplenagem para recuperar estradas, centrais de tratamento de lixo, radares para patrulhar a fronteira, equipamentos para escolas e hospitais, entre outros!!! Cada prefeitura poderia receber vinte e sete desses conjuntos!
Não cabe, aqui, insistir ainda mais sobre a composição “desejável” da carteira. O foco do presente texto é outro, é apresentar a proposta, em grandes linhas.
Para continuar a configurá-la, vamos repetir um vício comum entre economistas: supor verdadeiras coisas que são irreais. Assim, suponhamos um uso adequado, sem corrupção, focado no interesse público, dos US$ 78 bilhões. Essa é uma condição difícil de se verificar, dada a maneira como nossos governos estão habituados a decidir. Aceitando a hipótese, porém, seria uma estratégia interessante usar o dinheiro para comprar equipamentos dos quais o país tanto carece, e que não são produzidos aqui. Isso, antes que as reservas se desvalorizem ainda mais, ou nos imponham tanto custo de carregamento. Noutras palavras: podemos equipar estados, prefeituras e órgãos públicos, ou perder US$ 78 bilhões. Qual a melhor opção?
Quantas escolas carecem de microscópios? Quantos postos de saúde penam com a falta de equipamentos que os EUA podem produzir e nos enviar, em troca daquele montante de papel chamado de dinheiro?
Essa troca poderia ser benéfica para o Brasil e também para os EUA. Nós, rapidamente poderíamos dar, a nossas escolas, hospitais, postos de saúde, polícias, prefeituras e órgão públicos, equipamentos e outros meios materiais para darem um salto na qualidade do serviço prestado. Claro, sem acoplar um intenso ritmo de treinamento de pessoal, para que façam bom uso desses equipamentos, boa parte desses bens materiais será inútil, ou de baixíssima utilidade.
Da mesma forma, algumas mudanças nas instituições vigentes, para dar maior agilidade aos processos de investigação e punição de irregularidades, em muito ajudará a “boa” aplicação desses recursos.
Deve-se lembrar, ainda, que tentar realizar tal programa de suprimento de meios, aos órgãos públicos, em apenas dois anos, fatalmente implicará muito desperdício, pois essas organizações não teriam condições de absorvê-los com tal rapidez. Mesmo os nossos portos, provavelmente, não teriam condições de processar toda essa tonelagem. Mas, quem sabe em sete anos seja possível absorver grande parte?
Antes de comentar as vantagens, para os EUA, da proposição, devemos lembrar que, como se sabe, em economia não existe almoço grátis. Assim, quais os custos da proposta, para o Brasil? Primeiro, o mercado financeiro não gostará da decisão e, provavelmente, algumas agências de análise de risco ameaçarão rebaixar a nota do Brasil. Isso poderá significar um custo mais elevado para se obter dólares, o que pode reduzir o volume de capitais que está vindo para o Brasil; na atual conjuntura, talvez seja melhor considerar essa possibilidade não um custo, mas um ganho, pois reduziria a pressão pela valorização do real. Segundo: os ativos reais cuja compra é sugerida se desvalorizarão, ao longo do tempo; mas, manter as reservas como estão também, provavelmente, implicará desvalorização, e não nos trará os ganhos na qualidade do serviço prestado pelas polícias, escolas, postos de saúde e por outras instituições públicas, tão carentes. Os ganhos, provavelmente, seriam bem maiores que os custos.
O outro grande custo tem caráter de mais longo prazo. A proposta implica o Banco Central dar crédito a estados e municípios; esse processo, se mantido e expandido, pode levar à inflação. Na média e da forma como proposto, esse risco é zero, pois os títulos desses entes públicos seriam adquiridos em troca não de papel moeda, mas de produtos e serviços importados. Dar a municípios e estados a possibilidade de emitir títulos e trocá-los por dinheiro junto ao Banco Central pode ser desastroso, a médio e longo prazo, mas não é o que se propõe aqui.
A operação de crédito sugerida, pela qual o Banco Central recebe títulos e entrega mercadorias aos emissores dos títulos, não pode se tornar rotina. Esse é mais um dos cuidados necessários para não transformar esta proposta de remédio em veneno.
Outro custo a ser evitado: há forte expectativa de que o planeta viva uma recessão, que pode reduzir os preços das matérias primas que hoje representam quase 70% das nossas exportações e, assim, transformar os superávits da nossa balança comercial em déficits; e déficits vultosos! É exatamente para enfrentá-los que existem as reservas. Nessa conjuntura, como propor usar as reservas de outra maneira que não mantê-las como tal?
Poderíamos, primeiro, usar não os US$ 78 bilhões mencionados, mas talvez a metade disso, ou mesmo menos, valor este que ainda possibilitaria grande e positivo impacto na qualidade dos serviços prestados pelo poder público; segundo, tal compra não precisa ser paga à vista; terceiro, estamos, aqui não em busca de uma forma de acabar com as reservas, mas de uma alternativa para reduzir o custo de mantê-las, numa conjuntura em que este custo, parece, tenderá a crescer.
Por fim, o risco de uma futura crise do balanço de pagamentos não será eliminado com a manutenção de reservas tão elevadas, mas sim com alterações profundas no modelo de crescimento adotado nos últimos anos, que já transformou uma situação de superávit duradouro noutra, de ameaçadores déficits potenciais, a depender, basicamente, dos preços das matérias primas que exportamos. Manter, ao mesmo tempo, as reservas e a política econômica, sem corrigir os desequilíbrios que esta causa à economia, é caminhar rumo à exaustão daquelas. Mais uma razão, pois, para se usar parte das reservas de maneira mais “produtiva” que apenas mantê-las aplicadas em títulos do tesouro dos EUA, de valor cadente.
Usar parte das nossas reservas como aqui sugerido daria, aos EUA, o benefício de reduzir sua dívida, ainda que marginalmente, e, para atender à demanda brasileira, ampliar sua produção dos equipamentos por nós escolhidos. Poderiam, portanto, ampliar o emprego local. Como se sabe, a criação de empregos é interesse fundamental do Presidente Obama, já em plena corrida eleitoral. O melhor é que, quanto maior o desconto que pudermos obter, sobre os preços atuais desses produtos, maior será a criação de empregos nos EUA. Estão dadas, portanto, as condições objetivas para uma boa negociação, desde o ponto de vista brasileiro.
Ao realizar esse programa, o governo brasileiro estaria transferindo recursos financeiros aos EUA, como sugeriu Rogoff, não em troca de fumaça, como será o caso, se nada fizermos, mas em troca de riqueza real. Não parece opção melhor?
O Banco Central, atual detentor dos títulos do tesouro norte-americano, representativos de 80% das reservas, poderia trocar parte desses recursos financeiros por recursos reais, equipamentos e serviços X e Y, colocando-os à disposição de estados, municípios e outros órgãos públicos, em troca de títulos da dívida destes, com rendimento superior ao obtido com as aplicações atuais. A relativa perda de segurança dos títulos seria compensada pelos ganhos sociais e econômicos decorrentes da melhoria de serviços médicos, educacionais, policiais e outros, a ser obtida com o uso dos equipamentos. Devemos lembrar que a opção é perder aqueles bilhões. Além disso, como não haveria a transformação das reservas em nossa moeda, o real, no Brasil, o impacto inflacionário não existirá.
Claro, há tempos, poderia parecer blasfêmia propor a troca de títulos dos EUA, por títulos da prefeitura de, digamos, Montes Claros, norte de Minas. Mas, na situação atual, considerando riscos e benefícios de uma e outra alternativa, a troca de ativos financeiros por ativos reais não seria uma boa forma de proteção? Aplicados como aqui sugerido, ao menos teríamos melhores estradas, escolas, prefeituras, postos de saúde, hospitais, etc. Todos estes, “ativos”, ou formas de “riqueza”, que são quase imunes às incertezas do mercado financeiro.
Trazer todos esses equipamentos para o Brasil pode nos ajudar, mas pode também nos prejudicar, dependendo do tipo de equipamento, ou “da composição da carteira”, do prazo para sua absorção, e do uso a que for posto.
Se importarmos, nessa troca, máquinas não produzidas no Brasil, mas cuja indisponibilidade impede prefeituras de consertar estradas, ou de lançar uma ponte, ou de equipar um hospital, o ganho será claro. Seriam geradas, ainda, melhores condições para empresas e famílias produzirem, e muitos empregos poderiam ser criados no Brasil. E a riqueza, hoje aplicada em papel, estaria “investida” em equipamentos reais, usados para melhorar as condições de trabalho e vida, aqui.
Se importarmos chicletes, o benefício ficará todo lá. Se nada fizermos, a perda poderá ser da ordem mencionada, ou ainda maior. Poderemos dar um salto na qualidade de vida do brasileiro se soubermos negociar uma saída de interesse mútuo, como a mencionada. Quem sabe a própria Europa não ofereceria seus produtos, com bons descontos, em troca de certa quantidade de euros?
Para implantar esta proposta, é necessário, primeiro, criticá-la com seriedade, buscar suas eventuais falhas e, eventualmente, corrigi-las. Mais importante, ainda, será indagarmos se o nosso sistema de governo terá a capacidade de livrar-se de preconceitos para poder perceber a oportunidade, e, principalmente, se teria a capacidade de gerenciar tal programa com transparência máxima e perdas mínimas. Para ambas as perguntas, infelizmente, a resposta parece ser negativa. O que reforça a noção de que o sistema político brasileiro torna-se, cada vez mais, fator limitante à construção de um país melhor.