José Rodrigues Filho*
Com a decadência da segurança do voto eletrônico no Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aproveita o momento em que a Justiça começa a fazer a reforma política do país, definindo a fidelidade partidária, diante de um Parlamento inerte e alheio aos anseios de mudanças da sociedade, para propor testes biométricos das urnas eletrônicas.
Sabe-se que há uma exigência supranacional, partindo principalmente do Big Brother, para submeter as pessoas a esse tipo de investigação, sob a alegação de segurança, numa sociedade investigada, quando o corpo humano é utilizado como prova de identidade.
A tecnologia biométrica (do grego bios, vida e metrom, medição) identifica automaticamente os indivíduos, utilizando suas características biológicas e comportamentais. As primeiras aplicações biométricas não digitalizadas, a exemplo das impressões digitais, surgiram na China no século 14, embora só a partir do século 19 é que a biométrica se desenvolveu na Europa, explicitamente associada com o crime e a suspeita de crime. A partir da última década a biométrica digitalizada se expandiu para vários campos, nas áreas do governo e do comércio.
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Mas o que significa digitalizar uma nação? Argumenta-se que o uso da biométrica em sistemas de identificação, a exemplo de carteiras de identidade e passaportes, já existentes em alguns países, melhora a eficiência administrativa para gerenciar alguns riscos. Contudo, a questão não é só melhorar a governança burocrática. É preciso compreender a governabilidade colonial, os princípios neoliberais que orientam o mercado que habilita a lógica dessas tecnologias, de modo que seja possível entender o momento histórico de integração militar, privada e do Estado, numa gestão de identificação para o lucro.
Portanto, com a globalização, o Estado começa a perder poder e uma forma de mostrar um novo poder é submeter os cidadãos a esses testes da tecnologia, que servem mais aos interesses de países ricos do que aos nossos próprios interesses enquanto cidadãos. Não se pode esquecer, também, o interesse de se investigar a raça humana de forma eletrônica (e-racing).
Há quem diga que, através da utilização do teste biométrico, o ser humano é controlado da mesma forma que jiu-jitsu, ou seja, o corpo da pessoa é usado contra ela mesma. Nesse caso, como prova de identidade. Será que o uso do teste biométrico deve ser uma decisão puramente burocrática como está propondo o TSE ou o assunto requer amplo debate da sociedade?
Nos países mais desenvolvidos, principalmente nos países da Comunidade Européia, a utilização da biometria não é apenas uma questão técnica, mas sobretudo uma questão ética. As relações entre segurança e direitos fundamentais dos cidadãos precisam ser questionadas nessas discussões. Do contrário, estaremos pensando só na segurança, mas esquecendo a democracia.
Na justificativa do TSE, a utilização da biométrica vai “excluir a possibilidade de uma pessoa votar por outra, que hoje ainda existe”, já que foi identificado um ou outro caso dessa natureza. Será que é necessário ferir os direitos fundamentais de milhões de pessoas apenas para se identificar um ou outro caso, que poderá ser resolvido com a aplicação das leis já existentes? O caso demonstra que querem resolver uma questão puramente burocrática, atingindo a democracia, num país cuja cidadania já está tão reduzida. É possível que se queira, também, justificar o gasto de R$ 200 milhões neste sistema biométrico.
Estamos testemunhando a crescente utilização das tecnologias de identificação biométrica. Nesse caso, é necessário considerar as implicações políticas dessas tecnologias e o seu papel na construção de nossa cidadania. Estudos recentes realizados em outros países estão analisando as tecnologias biométricas nos processos de criminalização, nos quais a identidade do cidadão é reconfigurada como a de um suspeito.
Nesse caso, milhões de pobres cidadãos eleitores poderão ser considerados como suspeitos, quando se deveria considerar a suspeita levantada contra milhares de urnas eletrônicas espalhadas por este Brasil afora, diante da decadência de seguranças dessas tecnologias, como tem sido demonstrado mundialmente pela literatura.
O nosso apelo é no sentido de que não usem o corpo de nossos compatriotas de Fátima do Sul, Colorado do Oeste e São João Batista como prova de identidade e como os “aptos” a servir de “pilotos” de um projeto que ainda não foi amplamente discutido pela sociedade, a menos que os direitos fundamentais do ser humano não sejam mais considerados neste país.
*José Rodrigues Filho foi pesquisador nas Universidades de Harvard e Johns Hopkins. Atualmente, é professor da Universidade Federal da Paraíba www.jrodriguesfilho.blogspot.com/