Isabela Naves*
Não é exclusividade de um governo, nem foi criado por um, especificamente. O processo de negociação de cargos do Executivo para construir uma base aliada no Congresso Nacional é o resultado da opção presidencialista feita em 1993, quando do plebiscito do parlamentarismo.
Na ocasião, decidimos pelo presidencialismo apesar de o texto constitucional elaborado poucos anos antes ter sido escrito à luz de um outro ideário.
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Essa configuração crítica de Poderes que observamos hoje no Brasil, embora não seja nova, é de dimensões bastante diferentes das demais ocasiões em que houve uma sobreposição do Executivo sobre o Legislativo. A situação de hoje é conhecida pela sociedade, por ela questionada e está na iminência de expor a todos a uma crise sem precedentes.
Nos quatro primeiros anos de governo Lula, a base do governo dedicou pouquíssimo ou nenhum esforço para deliberar sobre as matérias que reestruturariam o sistema eleitoral e o sistema partidário.
Feito um levantamento das propostas que tramitam na Câmara e Senado, projetos de lei e propostas de emenda à Constituição, observa-se que as principais matérias em andamento nas Casas, ou que deram ensejo a novas leis, são de autoria do PFL.
O distanciamento do Partido dos Trabalhadores e de seus aliados dessa problemática política e eleitoral deve-se, em parte, à imprecisão dos resultados eleitorais que as propostas em trâmite poderão produzir. Embora tenham buscado por muito tempo o aperfeiçoamento dos mecanismos democráticos, hoje temem possíveis mudanças de status quo.
Uma vez no poder, o PT descobriu os dois lados da disputa política, o lado da oposição derrotada e da situação vencedora, ambas resultantes da expressão das urnas. Essa vivência deu ao partido o conhecimento dos vícios e virtudes da Lei Eleitoral (Lei 9.504/97) e Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95) e os ensinou a tirar proveito de ambos, igualmente.
O Poder Executivo geriu todo o primeiro mandato com os olhos nas trocas partidárias e nas conseqüências construtivas e destrutivas dessas mudanças para o processo de controle e execução de sua agenda legislativa. Ciente da fragilidade do presidencialismo de coalizão que comandava, o presidente Lula manteve-se atento a essas alterações e procurou negociar posições de primeiro, segundo e terceiro escalão para garantir a prevalência de sua vontade na atividade legiferante. Para fazer constar, ao longo do primeiro mandato foram feitas 131 mudanças partidárias.
Ainda que tivessem sobre a mesa cargos disponíveis, recursos para custear apoio de parlamentares, estratégias de edição de medidas provisórias, contingenciamento de gastos, restrições orçamentárias e não-empenho de emendas da oposição, não conseguiram evitar as graves crises inter e intrapoderes noticiadas diariamente pela imprensa brasileira.
As crises desdobraram-se em escândalos que, num primeiro momento, foram amortecidos pelo eleitorado crente na vitória da esperança sobre o medo e certo de que não seriam páginas de jornais e movimentações policiais que destruiriam a confiança no aumento da renda (ainda que a redistribuição de renda inexista), na ampliação do acesso da população a bens não-duráveis (ainda que fazendo crediários a perder de vista) e na governança bem-sucedida de um operário.
O momento que se seguiu a essa relativização dos acontecimentos foi o de dar ao presidente Lula, quando de sua recondução ao poder em
Desde que a matéria foi reinserida na ordem do dia do Congresso, avisos do governo começaram a ser disparados. O presidente da Câmara dos Deputados, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), alertou que a inclusão da matéria “não era pra valer”, mas para alertar a todos da importância de se discutir e se acertar sobre os pontos que seriam contemplados na reforma, apenas aqueles estritamente necessários.
Passado o momento de entretenimento da mídia e da reanimação das lideranças que se apoderaram da matéria, realizou-se reunião de líderes para decidir, “pra valer”, quando, como e o quê será a reforma política, de autoria da Câmara dos Deputados.
E o decidido ficou assim:
A matriz da reforma será o PL 2.679, de 2003, de autoria da comissão especial relatada pelo deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO). Os principais pontos dessa proposta são: financiamento público exclusivo de campanha, nova cláusula de barreira, lista partidária fechada, fim das coligações nas eleições proporcionais e federações.
As demais propostas deverão ser reapreciadas pelo grupo temático criado, mas ainda não instalado. Entre essas matérias encontramos: convocação de plebiscito e referendo pela população e TSE, redução do número de assinaturas para apresentação de projeto de lei de iniciativa popular e possibilidade de apresentação de proposta de emenda à Constituição pela mesma iniciativa, referendo para parlamentarismo, referendo revocatório de presidente da República e congressistas, fim da reeleição, redução do mandato de senadores, entre outros pontos.
Para tornar viável a deliberação dessa matéria complexa, decidiu-se que apenas os projetos de lei ordinária farão parte do texto a ser apreciado pelo Plenário da Casa, otimistamente até o fim do mês de maio. De antemão, observem que essa primeira definição do tipo de lei a ser contemplada é suficiente para excluir a dissolução de alguns nós no procedimento político-eleitoral brasileiro.
Deste cenário, o que podemos seguramente concluir é que, em definitivo, a reforma política não será “pra valer”. Os pontos da discussão e deliberação estarão restritos aos procedimentos que constranjam, mas nem tanto, o troca-troca partidário, que barateiem os custos da campanha eleitoral, que permitam a sobrevivência das pequenas legendas e que sejam suficientes para prestar contas à sociedade.
De substancial, nenhuma mudança. O resultado será aquele que não apague ou obstaculize os caminhos alternativos e paralelos encontrados pelo PT para chegar ao poder e nele se manter.
Alteraria substancialmente o funcionamento do jogo político-eleitoral a introdução de listas partidárias fechadas e o financiamento público exclusivo de campanha. O primeiro, antes mesmo do anúncio sobre a discussão do projeto de reforma política, já teria o voto contrário dos 26 deputados que trocaram de partido até o dia 5 de março deste ano e que, segundo as regras propostas pelo projeto-matriz (PL 2.679/03), teriam a posição na lista prejudicada em razão da mudança de legenda.
Uma observação mais atenta desse troca-troca revela-nos algumas das motivações dessa movimentação e, não surpreendentemente, verificamos os incentivos dados a parlamentares da oposição para se filiarem a partidos da base aliada.
O raciocínio é simples: parlamentar eleito por estado cujo governador é de partido da base aliada vê-se pressionado a acompanhar a orientação partidária do chefe do Executivo estadual para não se deparar com uma situação de restrições orçamentárias para sua região.
Diante disso, procura um partido que lhe acolha e otimize os ganhos da região que representa. Se, por um lado, o parlamentar ganha com a liberação de verbas e o apoio do Executivo estadual; por outro, o partido que lhe acolheu ganha no processo de barganha junto ao Executivo federal, já que poderá oferecer um maior número de votos para a aprovação da agenda legislativa Executiva.
Por tudo isso, dificilmente uma reforma substancial irá ocorrer. Além da imprecisão dos resultados eleitorais que ela pode produzir, coloca em dúvida a certeza do poder de determinados grupos políticos instalados e todo o know-how adquirido para a manutenção do status quo.
Portanto, até que o Poder Executivo coloque em sua agenda legislativa a reforma política como prioridade, não haverá nenhuma mudança. Não basta estar na agenda formulada pelo Legislativo, resultante de acordos de líderes, porque boa parte dos líderes está diretamente vinculada à lógica do presidencialismo de coalizão sustentado pelo loteamento dos cargos do Executivo.
Lamento não vislumbrar nenhuma mudança significativa para os próximos quatro anos, mas estou otimista no fato de que a insustentabilidade dessa situação será capaz de trazer inquietude suficiente à alteração da conduta da sociedade e do Congresso Nacional, nessa ordem, necessariamente.
*Isabela Naves é cientista política e assessora da Liderança do PPS na Câmara.