Sylvio Costa
São muitas as definições correntes sobre a Colômbia e seu povo. Uma delas, de tom algo poético, aponta o país como “uma esquina cercada por uma piscina (o Caribe) e duas praias (o Pacífico e o Atlântico)”. Outra, cruelmente bem-humorada, diz que “o colombiano é o melhor sujeito do mundo até o dia em que não gosta de alguma coisa que você faz ou fala e aí de repente te mata”.
Lorota. Quem visita cidades como Cartagena das Índias, Bogotá ou Santo André dificilmente deixará de se encantar pelos colombianos, sua simpatia, música, humor, culinária, arte e mistura étnica. Ou pelas inúmeras belezas naturais do país. É tudo muito chévere, palavra equivalente ao que aqui no Brasil chamamos, dependendo do gosto do freguês, de “legal”, “bacana”, “massa”.
O diabo é a guerra. Ao somar o número de homicídios políticos no país entre 1975 e 2004, o professor Francisco Gutiérrez Sanín, do Instituto de Estudos Políticos e Relações Internacionais (Iepri) da Universidade Nacional da Colômbia, contabilizou 53.659 assassinatos. Nesse período, de 30 anos, houve em média cinco execuções por dia de algum modo associadas ao conflito. É o que ele qualifica como “uma enorme catástrofe humanitária” (Nuestra guerra sin nombre – transformaciones del conflicto em Colômbia, coordenado por Francisco Gutiérrez, María Emma Wills e Gonzalo Sánchez Gómez, Bogotá, Grupo Editorial Norma, 2005).
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Vale lembrar que a guerra do Vietnã matou, segundo o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, 47.378 norte-americanos. De qualquer maneira, os números reais podem ser ainda maiores do que Gutiérrez conseguiu comprovar, pesquisando as estatísticas oficiais. De acordo com reportagem recente da BBC, pelo menos 3 mil civis morrem a cada ano na Colômbia em razão dos confrontos. As organizações armadas de esquerda falam que passam de 500 mil as mortes ocorridas desde o início do conflito, em 1964. E, em meio a dados tão discrepantes, há relativa convergência, pelo menos, quanto à estimativa do total de pessoas que tiveram de abandonar suas casas por causa da guerra: cerca de 3 milhões de pessoas.
Bom exemplo?
Citar a Colômbia como exemplo de política de segurança eficiente virou moda no Brasil. Não são poucos os políticos, autoridades de segurança e mesmo especialistas da área que se põem a indicar o “modelo colombiano” como referência. De fato, nossos vizinhos obtiveram uma fantástica redução dos crimes comuns. As taxas de homicídios despencaram nos últimos anos, sobretudo nas grandes cidades, como Medellín, Cali e Bogotá. O que os apologistas do tal “modelo” nem sempre reparam é que permanecem intocados dois ingredientes fundamentais do caldeirão colombiano: o narcotráfico e a violência política.
Entre 2000 e 2004, a Colômbia recebeu aproximadamente US$ 3,3 bilhões dos Estados Unidos para enfrentar a guerrilha e o tráfico. Houve, repita-se, queda dos homicídios e da violência, sobretudo nas maiores cidades, onde é mais forte a presença das forças de segurança. Também foi possível forçar um recuo territorial das guerrilhas, que àquela altura já se aproximavam de Bogotá.
Mas o combate à indústria da droga revelou-se um retumbante fracasso. O Plano Colômbia, concebido pelo governo norte-americano, tinha a pretensão de erradicar todos os cultivos de coca até 2005, e o que aconteceu? Apesar de muitas plantações terem sido destruídas, outras se desenvolveram em lugares diferentes, e a Colômbia segue fornecendo mais da metade da cocaína vendida no mundo e a quase totalidade da heroína consumida nos EUA.
Ao mesmo tempo, prossegue o enfrentamento entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o menos conhecido Exército de Libertação Nacional (ELN). O presidente Alvaro Uribe, que prometia liquidar as duas organizações, agora tenta negociar com elas. Seu maior interesse é libertar os reféns em poder dos guerrilheiros: perto da metade dos mais de 3 mil reféns hoje existentes no país. A estimativa remete a outro recorde colombiano: a maior taxa de seqüestros do planeta.
Um conflito sem mocinhos
Perceber as características dos atores envolvidos e o caráter transnacional da guerra civil colombiana é um bom começo para compreender o conflito. Iniciemos pelo pedaço mais óbvio da história: a indústria das drogas colombiana é, na realidade, uma indústria global, com atuação em praticamente todo o Ocidente. Ela, simultaneamente, financia e é financiada pelos chefes do crime organizado em diversos países. Um exemplo é o narcotraficante brasileiro Fernandinho Beira-Mar, cujo poder derivou da parceria que estabeleceu com os cartéis da Colômbia, país no qual foi preso em 2001.
No último dia 7, em um condomínio de luxo de Barueri (SP), a Polícia Federal prendeu Juan Carlos Ramirez Abadía, o Chupeta, deixando claro, mais uma vez, que o narcotráfico não respeita limites nacionais. Parêntesis: o colombiano Chupeta é apontado como o maior traficante de drogas do mundo na atualidade, a PF calcula que ele movimentou perto de US$ 10 bilhões nos últimos dez anos.
Fácil concluir, portanto, que o problema colombiano não é apenas colombiano. Além de envolver um negócio de dimensão internacional (sim, o narcotráfico), produz refugiados (estimados em mais de 300 mil), zonas de tensão nas fronteiras, emigrações etc. Isto é, se razões de solidariedade – essa coisa pouco em voga – são insuficientes, os líderes políticos de outras nações deveriam se interessar pela guerra na Colômbia no mínimo pelos efeitos que ela provoca no território de seus próprios países. Mas o mundo praticamente a ignora. Assim como ocorre em relação a toda América Latina, os países ricos não dão muita bola para a Colômbia.
Desgraçadamente, a performance dos atores globais e nacionais evidencia, quase sempre, outro triste traço do conflito colombiano: a falta de mocinhos. Os EUA querem resolver a parada no estilo típico de George W. Bush e têm dado com os burros n’água. A França até acena com uma linha mais inteligente, de defesa de uma solução negociada para o conflito. Mas seu interesse se prende ao desejo – diga-se, legítimo – de libertar a mais famosa refém da guerrilha, a senadora Ingrid Betancourt, seqüestrada pelas Farc em fevereiro de 2002 quando era candidata a presidente da República pelo Partido Verde (Ingrid tem dupla nacionalidade: é colombiana e francesa). Sob a desconfiança dos EUA, o venezuelano Hugo Chávez, a quem o governo norte-americano acusa de proteger a guerrilha, tenta mediar as negociações entre o governo, as Farc e o ELN. O comportamento dos demais países em relação à Colômbia varia em geral da completa indiferença (a maioria) a tímidos esforços (caso do Brasil) em favor da saída negociada.
Internamente, o quadro não poderia ser mais desalentador. Os guerrilheiros nada têm a ver com a visão romântica popularizada no mito de Che Guevara. Mantêm centenas de reféns, seqüestrados com uso de violência, além de submetê-los a torturas e, eventualmente, execuções. Originário do marxismo cristão, o ELN não se mete com o tráfico. Notabiliza-se, no entanto, pela prática não só de seqüestros, mas também de extorsão. Cobra propinas de empresas instaladas em áreas sob o seu controle para permitirem que elas continuem funcionando lá.
Já as Farc, criadas em 1964, a princípio como o braço militar do Partido Comunista Colombiano, aliam o discurso de esquerda revolucionária com práticas de criminosos comuns. Segundo estudo do Ministério da Fazenda colombiano (Nuestra guerra sin nombre, pág. 58), elas controlam 30% do negócio das drogas no país. Estima-se que 65 das 110 unidades operativas das Farc estejam envolvidas tanto na produção quanto no comércio de drogas (idem, página 42). A população, em sua ampla maioria, dá nítidos sinais de rejeitar a guerrilha e suas táticas.
Luta contra o terror
Grupos paramilitares de extrema-direita dão um colorido mais trágico à guerra na Colômbia. Os paras são responsáveis pelo maior número de civis mortos no conflito. E possuem relações estreitas com membros das forças de segurança. Incontáveis vezes, foram flagrados em ações conjuntas. Em muitas regiões, oficiais do Exército criaram, promoveram e protegeram as unidades paramilitares.
Têm ainda forte influência no Legislativo, Executivo e Judiciário. Uribe fez um acordo com os paramilitares para que eles se “desmobilizassem”, quer dizer, entregassem as armas. Só que os paras continuam agindo, embora de modo mais discreto, e passaram a se dedicar à prática de chantagem: para não serem incomodados, ameaçam revelar o que sabem de políticos, o que já levou a várias baixas no governo Uribe. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a ministra das Relações Exteriores, Maria Consuelo Araújo, afastada em fevereiro de 2007 depois de se tornarem públicas suas ligações com os paramilitares. Estes, por sua vez, usam o acordo com o governo como forma de ganhar uma fachada legal enquanto permanecem a se dedicar a atividades ilícitas – em especial, o narcotráfico.
Hoje o maior aliado de Bush na América Latina, Uribe, reeleito em 2006 e no poder desde 2002, sempre procurou ser um fiel executor da política de segurança concebida pelos EUA, que ele rebatizou de “plano de segurança democrática”. Segurança e democracia, aí, têm o mesmo significado: enfrentar na porrada a guerrilha e o narcotráfico. O que é vendido, à la Bush, como o capítulo colombiano da “luta contra o terror”.
Que isso funcionou durante muito tempo, ninguém tem dúvida. O estilo valentão de Uribe ainda faz algum sucesso na Colômbia, onde seus índices de popularidade continuam altos, e também é festejado no Brasil. “Como faz falta um Uribe por aqui”, chegou a afirmar o ex-brizolista e atual ideólogo do Democratas, o prefeito do Rio, César Maia. Mas Uribe está longe de ser uma unanimidade. Primeiro, por causa do seu fracasso para pôr fim à guerrilha e ao narcotráfico. Segundo, pelas citadas ligações de seu grupo político com os paramilitares. Terceiro, pela freqüência com que se mete em trapalhadas.
Registre-se, por sinal, que certas pérolas produzidas por Uribe surpreenderiam quem se assusta com algumas declarações de Lula. Só para exemplificar. Em 31 de janeiro de 2005, ele disse ao corpo diplomático de Bogotá: “Na Colômbia, não há conflito armado” (Por la boca muere el pez, Armando Neira, Bogotá, Planeta, 2005). Acusado pela Anistia Internacional e por várias outras entidades internacionais de desrespeitar os direitos humanos, costuma desancar o que qualifica como “traficantes de direitos humanos”. Também é conhecido por condenar vigorosamente relações sexuais antes do casamento.
Zurzindo cada vez menos seu chicote, Alvaro Uribe está agora sob forte pressão interna para buscar uma saída negociada para o conflito. Por isso, libertou este ano quase 200 guerrilheiros, na esperança de que as Farc soltassem reféns, o que não ocorreu. E assim a Colômbia segue vivendo, incorporada à sua rotina, uma guerra que mata principalmente a população civil. Seus efeitos se estendem a muitas outras áreas.
Kaos com K, como escreveria o inspirado músico Jorge Mautner, é o resultado da guerra. O caos foi para dentro do aparelho estatal. Tanto a guerrilha quanto os paramilitares infiltram-se nas instâncias públicas locais, que têm grande poder na Colômbia, um país muito descentralizado (os prefeitos, eleitos diretamente desde 1988, e os governadores ficam com mais da metade do dinheiro dos impostos arrecadados nacionalmente). Intimidação de juízes, suborno de funcionários públicos e apropriação de recursos públicos para financiar a guerra são práticas comuns. E ai de quem ousa desafiar o chamado clientelismo armado. Somente em 1997, 57 candidatos a eleições foram assassinados, 100 foram seqüestrados e 369 decidiram se retirar da disputa eleitoral por causa da pressão de atores armados (Nuestra guerra sin nombre, página 376). Pra completar, o conflito gera prejuízos estrondosos, eleva o número de desempregados e absorve boa parte do dinheiro do Estado, restringindo sua capacidade de investir.
Well, e tudo isso acontece numa nação (a segunda mais populosa da América do Sul, com cerca de 45 milhões de habitantes) com petróleo, muitas riquezas minerais e um povo extremamente criativo. Que, apesar de tudo isso, não consegue superar o quadro de pobreza, desigualdades sociais e alto desemprego. Enquanto os grupos armados persistem no “empate mutuamente doloroso” da guerra – expressão do professor Eduardo Pizarro Leongómez na obra citada –, os colombianos continuam à espera de uma primavera que, ao contrário daquela da música, não brotará de ponta de cano ou brilho de punhal puro. Nascerá do entendimento e do fim da violência.
Mais sobre o assunto:
Fotos da Colômbia na PicturaPixel
Site das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (Farc-EP)
Site do Exército de Libertação Nacional (ELN)
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