Kátia Abreu: ‘Gângsteres’ pensam que todo parlamentar trabalha movido a dinheiro
Eduardo Militão e Lúcio Lambranho
Um fio desencapado no relatório da Operação Santiagraha contém uma suspeita grave: um integrante do Congresso recebeu R$ 2 milhões da construtora OAS para bancar uma emenda que facilitaria a criação dos portos privados no Brasil. Análise da Polícia Federal (PF) sobre grampos telefônicos diz que a suposta beneficiada é a senadora Ideli Salvatti (PT-SC). Mas a leitura das conversas e a própria líder do PT sugerem que a verdadeira acusada de receber o dinheiro da empreiteira é a senadora Kátia Abreu (DEM-TO).
Trata-se de uma briga a favor e contra de uma emenda parlamentar que teria o condão de desengavetar cerca de R$ 5 bilhões de investimentos em portos particulares, segundo estimativa da Associação Brasileira da Infra-estrutura e Indústrias de Base.
De um lado, a construtora OAS, que está entre as empresas interessadas em participar desse negócio. A empreiteira, inclusive, tem um projeto para construir o terminal Guarujá no porto de Santos (SP), atualmente em fase de licenciamento ambiental. Do outro lado, o terminal Santos Brasil, concessão pública controlada pelo banco Opportunity, do banqueiro Daniel Dantas. A iniciativa criaria concorrência ao terminal de Dantas, que atualmente movimenta 40% das cargas no maior porto do país.
Em 28 de maio passado, o Senado aprovou a MP 412, que prorrogou o programa de isenções fiscais Reporto até 2011.A aprovação só saiu depois de um acordo entre base e oposição por conta de uma emenda de Kátia Abreu.
A emenda de Kátia à MP permitia que portos privados pudessem funcionar mesmo que seus donos embarcassem, majoritariamente, cargas de terceiros – o que hoje não é permitido por resolução da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). A emenda atenderia os interesses de muitas empresas interessadas em investir no setor, como a OAS.
Um dia antes, a sessão se estendeu até tarde da noite justamente por causa das posições da senadora do DEM e da sua emenda.
Naquela noite, a senadora Ideli Salvatti (PT-SC) brigou contra a emenda, dizendo que ela prejudicava os portos públicos – como, por exemplo o que abriga a Santos Brasil –, conforme sua experiência no porto do litoral catarinense, em Itajaí (SC).
Segundo funcionários do Senado ouvidos pelo Congresso em Foco, o senador Heráclito Fortes (DEM-PI), o terceiro personagem dessa trama, chegou a ironizar a líder do PT longe dos microfones. Heráclito provocava a líder do PT. Dizia que ela estava trabalhando, ao tentar derrubar a emenda de sua colega de partido, para Daniel Dantas. Heráclito nega a provocação.
“Não posso competir com a OAS”
A sessão de 27 de maio encerrou-se às 22h06. Exatamente dez minutos depois, às 22h16, o sócio do Opportunity e ex-cunhado de Dantas, Arthur de Carvalho, telefona para Guilherme Henrique Sodré – lobista, segundo a PF – para falar sobre “o negócio da emenda” em debate no Senado. Ele reclama da atuação de Heráclito, ao brigar com Ideli no plenário.
Logo no início da conversa entre os dois, o nome do banqueiro é citado e confirma a versão dos funcionários do Senado. A briga feita longe dos microfones e das anotações da taquigrafia não escapou do ouvido atento de Arthur de Carvalho.
“O Heráclito se dirigiu a Ideli quatro vezes dizendo que ela tava lá a serviço do Daniel Dantas num sei o que esculhambando com ela”, afirmou ele para Sodré, segundo transcrição de interceptação telefônica feita pela PF no relatório 16/08-STG.
A conversa segue e mostra a preocupação dos dois funcionários do banqueiro com a atitude do senador do DEM. “Rapaz, ele não pode fazer isso não, pode desandar tudo…”, protesta Carvalho.
Sodré, que se diz amigo de Heráclito, afirma que o senador tem uma divergência política com Ideli e que vai votar a favor da emenda a contragosto, seguindo orientação do DEM.
“É posição de partido, rapaz, ele não tem como ficar contra o partido tá certo, não tem como”, explica Sodré. Mais à frente na conversa, o suposto lobista diz que recebeu ligação de Heráclito preocupado com a situação do grupo de Sodré e Arthur Carvalho.
“Mas me disse que a Kátia estava arregimentando votos… a posição é do Democratas, tá certo, agora eu quero ouvir o que ele disse, Arthur…”, diz Guilherme Sodré, antes de ser interrompido com a seguinte declaração:
ARTHUR: Eu sei, deixa eu falar, eu recebi a informação de que ela estava recebendo R$ 2.000.000,00 da OAS, né?
GUILHERME: Eu sei, eu disse a ele isso no telefone amigo, eu digo eu não posso competir com a OAS, pronto…
Apesar de Sodré ter falado no nome de Kátia Abreu antes da referência ao dinheiro, a análise da Polícia Federal diz:
ARTHUR afirma que lhe chegou a informação de que a senadora IDELI teria recebido 2.000.000,00 (dois milhões) da “O.A.S.”.
Privado misto
Ainda na noite de 27 de maio, quando apresenta seu relatório à MP 412, a senadora Kátia Abreu tenta convencer os colegas de que emenda vai ajudar o país, diminuindo, por exemplo, o custo dos alimentos com uma concorrência maior no setor logístico.
Na tentativa, a senadora aponta diretamente para o negócio de Daniel Dantas.
“O Porto de Santos […] comercializa mais de 45% de todos os contêineres do Brasil. E dentro do Porto de Santos há um Terminal que se chama Santos Brasil que comercializa 40% de tudo o que é comercializado nesse Porto. […] São todos empresários que estão lutando e trabalhando. Nós só não podemos permitir que essa meia dúzia de empresários possa achar que é dona de todo o litoral brasileiro, em detrimento da produção nacional”.
Ideli interrompe a argumentação da senadora do DEM e questiona a emenda. Para ela, os terminais têm que ser públicos. Segundo Ideli, há uma concorrência desleal entre os portos públicos e os privados mistos, “precarizando, inclusive, o trabalho portuário”.
Acordo
A MP 412 acabou aprovada um dia depois do debate no Senado entre Ideli e Kátia Abreu. O líder do governo, Romero Jucá (PMDB-RR), costurou um acordo para a oposição retirar a emenda polêmica do funcionamento dos portos privados.
Ele leu em plenário uma carta da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) que dizia que o órgão estudava mudança em uma norma interna para “se eliminar possíveis restrições existentes no instrumento normativo, que represem a implantação desse importante tipo de infraestrutura portuária” [os portos privados mistos].
Um documento assinado pelo diretor-geral da Antaq, Fernando Brito Fialho, mostra que esse debate começou no final de 2006, um ano depois da edição da resolução 517/05. A assessoria da agência não informou se a resolução já foi modificada. Na página da Antaq, a norma é exibida como se estivesse ainda em vigor.
Depois do acordo feito por Jucá, a MP foi aprovada pelo Senado e convertida na lei 11.726/08, para prorrogar programa de incentivos fiscais Reporto até o final de 2011. Durante esse período, a compra de máquinas e equipamentos para modernização portuária estará livre de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), de Contribuição para o PIS/Pasep, de Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e Imposto de Importação.
“Equivocado”
Em ofício enviado ontem (16) ao ministro da Justiça, Tarso Genro, a líder do PT refuta que a acusação se refira a ela. “Na leitura atenta, fica evidente que a referência é a outro parlamentar”, diz Ideli. Em entrevista ao Congresso em Foco, a senadora petista demonstra crer que as falas só podem se referir a colega Kátia Abreu:
“Eles estavam falando de duas mulheres. Então, quando fala ‘ela’, se fica claro ali na leitura que não sou eu, só pode ser a outra, né?”, afirmou Ideli à reportagem.
Documento semelhante, em que pede providências sobre o uso “equivocado” de seu nome nas análises dos grampos da PF, foi enviado pela senadora na terça-feira (15) ao juiz Fausto Martin de Sanctis, que conduz o inquérito da Operação Santiagraha.
A assessoria de imprensa da Polícia Federal não retornou o telefonema e o correio eletrônico do Congresso em Foco para responder se há provas ou uma investigação paralela sobre o suposto envio de dinheiro da OAS à senadora Kátia Abreu. A PF também não informou se apura ou tem provas da atuação de Ideli ou Heráclito Fortes em favor dos interesses da Santos Brasil no caso.
A construtora OAS e o terminal portuário Santos Brasil não responderam às perguntas feitas por telefone e por escrito. A reportagem procurou Guilherme Sodré, mas não o localizou em seus telefones. O site também deixou recados na casa de Arthur de Carvalho, no Rio de Janeiro, mas, até o fechamento desta edição, ele não retornou os telefonemas.
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