André Sathler e Malena Rehbein *
No momento em que celebramos os 50 anos da magistral obra Cem Anos de Solidão, vale o registro da posição atribuída por Gabriel García Marquez aos conservadores: “Não estavam dispostos a permitir que o país fosse esquartejado em entidades autônomas”. De fato, o federalismo viciado do Brasil é um fantasma que desde os primórdios do período republicano assombra bem mais do que o Palácio da Alvorada. Tristemente, assistimos de camarote a mais um capítulo dessa tragédia anunciada, a partir da decisão, baseada no velhaco brocardo de que há que se dividir para conquistar, de exclusão do funcionalismo estadual da já equivocada proposta de reforma da Previdência.
Mesmo os defensores da proposta feita pelo governo reconhecem suas deficiências, insuficiências e mesmo injustiças sinalizando a necessidade de novas mudanças em curto prazo. A retirada do funcionalismo estadual, apesar de estratégica, na verdade crava uma estaca no coração da vampiresca reforma: ao torná-la francamente inócua em seus resultados fiscais (o maior problema não estava justamente na previdência dos estados?), ao mesmo tempo acentua sua face real, de vendeta, desta vez concentrada contra o funcionalismo público federal, julgado a priori como inimigo mais fácil de ser batido.
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Ou, para usarmos outra expressão popular, o governo acha que vai chutar cachorro morto. Isso porque, no âmbito federal, já ocorreu uma grande mudança, com a instituição da previdência complementar para os novos servidores e a criação da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público da União (Funpresp). Os mesmos analistas que defendem a Reforma da Previdência no presente afirmam que os resultados se dão em um prazo longo, de no mínimo vinte anos. Ou seja, os resultados da previdência complementar para os novos servidores públicos federais ainda não podem ser apurados. Não obstante, à época da criação do Funpresp, as mesmas vozes que ora se levantam em favor da reforma da Previdência eram unânimes em dizer que se tratava de solução adequada para a questão, no nível federal.
O secretário de Previdência, Marcelo Caetano, que lidera as discussões sobre a reforma, já reconheceu esse fato, em texto de 2013, conjunto com outros dois arautos do apocalipse previdenciário, Felipe Vilhena e Fábio Giambiagi (Revista Pesquisa e Planejamento Econômico, do IPEA, v. 43, n. 1, abr. 2013). No texto (sugerimos ao leitor que confirme por si próprio), os autores explicam que os novos servidores já não estariam no regime de repartição e benefício definido (supostamente a raiz de todos os males atuariais da Previdência Nacional), mas sim em um plano de capitalização com contribuição definida. Caetano elogia a mudança, por apresentar maiores probabilidades de manutenção no longo prazo e por conta dos recursos para o custeio das aposentadorias não dependerem mais de fontes fiscais, mas somente de ativos previamente acumulados pelos participantes. O fato é que, para o secretário, a reforma no serviço público federal já estava feita, e bem-feita.Ou seja, não há mais problema com relação especificamente aos servidores públicos federais. Elogie-se, ainda, o fato de que a reforma promovida com a criação do Funpresp manteve as regras do jogo, sendo aplicado aos novos, que já ingressam no serviço público conscientes de como seria sua aposentadoria. Respeitou-se assim a confiança, elemento fundamental em democracias. E garantiu-se um bem fundamental à convivência em sociedade: o sentimento de cooperação.
Para que serve a nova fala do governo, então? Para que os mais atingidos, os trabalhadores do Regime Geral da Previdência, aqueles que dependem de salário (e não os ricos que vivem de patrimônio), tenham a sensação de que há grupos solidários nas perdas. Mas não há. A privatização da seguridade social serve ao mercado dos que não precisam de INSS e a “miserificação” dos trabalhadores não passa nem perto do radar deste grupo e do que o sustenta no governo. Para dar uma falsa legitimidade a uma decisão ilegítima.
Duro constatar a essa altura do campeonato que talvez Marx, depois inspirador da menos radical e atual referência em participação democrática, Carole Pateman, estejam certos quanto à inevitabilidade de o Estado reproduzir a desigualdade. Refém do mercado, se não legislar para atendê-lo ele acaba ameaçado economicamente, o que se reflete nos empregos e no aumento da miséria. Desta forma, não teria outra opção que não atender ao verdadeiro “amo” da nação: as elites da economia de mercado. Ora, pensa Pateman, se o Estado não é imparcial, logo os cidadãos não são livres e iguais. Estamos exatamente no estreitamento desta confirmação: os cidadãos brasileiros estão a um passo de se tornarem verdadeiros escravos do Estado e seus mantenedores, portanto com liberdade nula e desigualdade ainda maior. Uma inacreditável semelhança com as relações feudais da Idade Média.
Assim, perguntamos ao leitor, do lugar de fala do grupo a que pertencer, se o que ele espera do Estado é um governo quase sultanesco de minoria que, pior ainda, foi eleita com o voto dos que estão na guilhotina da reforma da Previdência. Se a resposta for sim, basta aplaudir, pois o espetáculo caminha para o fim triunfal do que na verdade é um drama quase shakespeariano. Se for não, corra, para a rua, para os blogs, para as redes sociais, para as instituições públicas e faça valer a máxima de Rousseau: sua soberania é inalienável. Nem o medo, nem a chantagem podem aniquilá-la. Seu adversário (esta é a melhor palavra) não está nos demais grupos de trabalhadores. Mas na liderança que conta com esta divisão para acabar com todos.
* Respectivamente economista e jornalista, André Sathler e Malena Rehbein são professores do Mestrado em Poder Legislativo da Câmara dos Deputados.
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