João Capiberibe*
Assunção, 20.04.2008
Parecia uma manhã de domingo qualquer de sol radiante e ruas desertas. Nas esquinas, duplas de policiais com seus uniformes caqui. Descontraídos, pareciam proteger as moscas. Não havia viva alma na rua, tive que andar uma quadra até a banca de revistas para pedir orientação de como chegar à Escola Brasil, local de votação, onde iria tratar de exercer a função para a qual fui convidado aquele país.
Na banca jornais estampavam manchetes enormes, de página inteira, mostrando os candidatos e a candidata a presidente sorridentes e confiantes na vitória. Claro que, no final daquele domingo ensolarado, apenas um continuaria sorrindo, imaginei ao deparar-me com aquela cena.
Ali estava indicado pelos amigos da Via Campesina/MST e credenciado pela Justiça Eleitoral do Paraguai para funcionar como observador internacional. Minha tarefa seria acompanhar todos os acontecimentos do dia da eleição, da abertura das urnas até a contagem dos votos. A preocupação com fraude era tão grande, e não sem razão, que atraiu um exército de observadores, vindos de vários países.
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Andrés Pastrana, ex-presidente da Colômbia liderava a delegação da Fundação Internacional para Sistemas Eleitorais. A ex-ministra de relações exteriores da Colômbia Emma Mejia estava à frente da delegação da OEA, além de dezenas de outras organizações e partidos políticos do continente. Do Brasil, além dos movimentos sociais e personalidades como Frei Betto, havia representantes do PT, do PCdoB e do Psol.
Por que tanta preocupação? Seria por acaso a primeira eleição da história do Paraguai? Claro que não. A partir de 1989, depois de 38 anos da ditadura corrupta e sanguinária de Alfredo Strossner, o país passaria a ter eleições regulares para todos os níveis de poder, incluindo a presidência da República.
No entanto existe um porém, os paraguaios conseguiram se livrar do velho ditador, mas não do seu partido, que continuou governando e controlando com mão de ferro a vida política do país. Depois de 61 anos de poder ininterrupto, o Partido Colorado, nesse domingo de sol, corria sérios riscos de conhecer o sabor da derrota pela primeira vez.
O voto calado
Percorri várias seções, indaguei fiscais de todos os partidos, conversei com os mesários, cochichei no pé do ouvido de vários eleitores em busca de informações que pudessem apontar indícios de fraude. Nada, apenas o de sempre.
No colégio Dante Alighieri, um jovem puxou-me pelo braço.
– Olha lá! Aquele veículo. É do partido Colorado está transportando eleitores.
Vi uma caminhoneta que desembarcava uns e recolhia outros. O jovem então prosseguiu:
– Aqui existe uma tradição, os colorados só vêm votar se tiver transporte na porta da casa, para trazer e depois levar de volta, e tem mais, no meio do caminho, eles negociam o voto.
Interrompi dizendo que aquilo era crime e que precisava ser denunciado.
– Não adianta, isso está acontecendo em todo o país, fique tranqüilo. O povo desta vez vai agradecer a carona, talvez até pegue o dinheiro, mas vai votar no Lugo. É melhor o senhor se preocupar com o encerramento e ficar de olho na hora de fechar as atas de votações, é ali o momento mais perigoso, disse ele.
Continuei minha andança de seção em seção puxando assunto com um e outro. Nada, ninguém queria saber de conversa, pelo menos sobre as eleições. O silêncio dominava os lugares de votação. O simpático motorista de táxi com quem fiquei circulando, falou de tudo, porém quando chegou na hora de declinar seu candidato, repetiu os sussurros que ouvi nos quatro cantos da cidade:
– Cambio, senhor! Queremos “cambio”, senhor.
“Cambio” em espanhol significa mudança.
Uma explosão de alegria
Encerrada a votação, as mesas receptoras passaram imediatamente a contar os votos, contabilizar os resultados, urna por urna, e repassar ao Tribunal Superior de Justiça Eleitoral que totalizava e divulgava. Por volta das 19 horas, com menos da metade dos votos apurados, deu-se a metamorfose, do comedimento à euforia, uma avalanche de gente transbordando de felicidade ocupou as ruas e se concentrou na Praça de Los Heroes, onde vararam a noite cantando e dançando, festejando sua grande conquista.
Efeitos imediatos da vitória de Lugo
No Brasil pouco se falou das eleições no Paraguai, estranhamente estávamos ocupados em não perder um só lance das eleições americanas, mesmo sabendo que elas só ocorrerão no final do ano. Já nossos vizinhos, ao longo da campanha, não nos deram trégua.
Primeiro, se recusaram a continuar usando nossas “invioláveis” urnas eletrônicas. Após experimentá-las em vários pleitos, chegaram à conclusão de que não são tão seguras como se apregoa e decidiram retornar à cédula em papel, onde o eleitor sabe exatamente em quem está votando. As eleições transcorreram na maior tranqüilidade e o sistema foi considerado excelente.
Outro tema relevante que nos diz respeito, muito debatido no processo de campanha, foi a questão Itaipu Binacional.
Quem levantou a questão? Ora, exatamente o presidente eleito Fernando Lugo. Isso sim, passou a fazer uma enorme diferença e finalmente, meio a contragosto, passamos então a ouvir falar dos resultados das eleições no Paraguai.
“Cambio”, a palavra mágica e silenciosa do povo paraguaio, chegou até nós, mudou lá e essa mudança tem efeito aqui, tal qual os bolivianos, eles querem e conquistaram o direito de serem levados a sério, pretendem renegociar o contrato da hidroelétrica de Itaipu, onde a metade da energia lhes pertence.
Como não têm em que usar, são obrigados a vender por força de contrato exclusivamente ao Brasil, claro, por preço que o Brasil se disponha a pagar. A energia excedente dos paraguaios é vendida ao consumidor brasileiro, se lá eles reclamam que recebem ninharia pela energia fornecida, aqui é o contrario, reclamamos do preço alto de nossa de conta de luz, portanto, resta saber afinal, quem está lucrando a custas de paraguaios e brasileiros.
Isso me faz lembrar a hidroelétrica de Tucuruí na Amazônia, onde a energia é fartamente utilizada pelas indústrias de eletros-intensivos, como a Alumar e a Alunorte, a preços bem camaradas, enquanto o consumidor da região paga tarifa cheia.
Enquanto essa energia subsidiada pelos contribuintes brasileiros é exportada em forma de barra de alumínio, nós da Amazônia pagamos energia cara ou vivemos mergulhados na escuridão e no atraso por falta de rede de transmissão.
Como diria Caetano, o Paraguai é aqui. Ainda bem que eles ousaram mudar.
*João Capiberibe, 60 anos, ex-prefeito de Macapá, ex-governador e senador do Amapá, é vice-presidente nacional do PSB.