Lúcio Vaz,
De Eliseu Martins (PI) para a Revista Congresso em Foco
A história do país está repleta de exemplos de grandes obras que se arrastam durante anos, às vezes décadas, e não chegam ao fim. No caso da Nova Transnordestina, é um pouco diferente. Após dez anos de trabalhos e investimentos de R$ 6,4 bilhões, a ferrovia de 1.753 km não chegou sequer àquele que deveria ser o seu ponto de partida: o município de Eliseu Martins, um dos mais pobres do Piauí, com 4,8 mil habitantes, no sertão nordestino. Os moradores aguardam com um misto de ansiedade e descrença a conclusão do empreendimento que prometia trazer empregos, renda e impostos. Mas o trem não chega.
O município vive basicamente do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) – cerca de R$ 700 mil por mês – e da agricultura de subsistência, que não é suficiente para atender a própria população. Tem o terceiro maior índice de pobreza do Piauí. De acordo como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE), o rendimento médio mensal no município é de R$ 270 por moradia. Por que, então, a ferrovia precisa chegar lá? Para escoar a safra da região Sul do estado até mesmo da mesorregião do Mapitoba – a mais recente fronteira agrícola do país, reunindo o Nordeste do Tocantins, o Sul do Maranhão e do Piauí e o Oeste da Bahia. O cerrado piauiense está tomado por extensas plantações de soja, milho e algodão de grandes empresas nacionais e estrangeiras, algumas delas com vultosos investimentos de fundos internacionais. Os trilhos da ferrovia, na verdade, nem chegarão a Eliseu Martins.
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PublicidadeNa divisa com o município de Pavussu, será instalado um porto seco para o depósito das cargas que chegarem da região pelas rodovias, com destino aos portos de Pecém (CE) e Suape (PE). Até agora, porém, não foram feitos nem o porto seco nem a rodovia que vai fazer a ligação com a BR-135. Chegaram ali apenas os cortes e aterros que receberão os trilhos. As obras daquele trecho estão paralisadas há um ano, segundo relato do prefeito do município, Marcos Aurélio (PSD). A corrosão provocada pela chuva já abriu voçorocas profundas nas laterais dos aterros.
O trecho inicial da ferrovia vai de Eliseu Martins a Trindade (PE), com extensão de 427 quilômetros. Os serviços de infraestrutura– aterros e cortes e bueiros – estão mais adiantados, com 66% do total. A construção de pontes e viadutos chega a 51%. Mas apenas 28% da superestrutura – os trilhos – estão concluídos. Prontos, de fato, somente 120 quilômetros. Nessa primeira parte, em média, 53% dos trabalhos foram feitos, mesmo percentual da execução física e financeira de toda a ferrovia.
Nos trechos 1, 2 e 3, de Eliseu Martins até Paes Landim, a empreiteira responsável pela obra está sendo substituída. Considerando-se toda a ferrovia, a parte pronta para receber os trens – na região de Trindade, Salgueiro (PE) e Missão Velha(CE) – soma 412 quilômetros. Em 547 quilômetros, nos trechos próximos aos portos de Pecém e Suape, os serviços ainda estão “a contratar”. Em outros 142 quilômetros, na chegada a Suape, os projetos estão “em revisão” – isso dez anos após o início da obra.
“Difícil acreditar”
Entre os mais pessimistas com o andamento das obras da ferrovia está o presidente da Câmara de Vereadores de Eliseu Martins, Pedro Teles (PSD). Sentado à sombra da igreja na praça central da cidade, ele deixou clara sua desesperança à Revista Congresso em Foco. “A empresa que estava aí, de repente, suspendeu a obra por falta de pagamento, ações trabalhistas. São coisas que vão emperrando, e a gente termina desacreditando. Depois, vem essa mudança de governo. Aí, desacredita mais ainda. Já marcaram para 2014,2015 e 2016. Uns três meses atrás eu fiz uma visita lá. A empresa levantou o maquinário, está um elefante branco. Daqui a dez, 15, 20 anos, pode ser que aconteça.”
O prefeito Marcos Aurélio (PSD) prefere conversar numa sala com ar refrigerado. O calor está insuportável na rua. Questionado sobre quando chega o trem, revela ceticismo. “Era para ter chegado. Agora, a cada dia eu estou acreditando menos. Recebemos a notícia de que a obra estava parada aqui neste trecho porque o TCU suspendeu os repasses públicos para as obras da Transnordestina. Então, se a gente já estava meio cética, agora as coisas pioraram ainda mais. Hoje, não tem nem nenhuma empreiteira no canteiro de obra. Está totalmente abandonada há praticamente um ano”. As mudanças no governo federal, segundo ele, geram pelo menos uma expectativa e renovam a esperança. “Mas ninguém sabe se vai melhorar ou não”, pondera.
Motivos para tanta desconfiança não faltam. A construção da ferrovia – tocada pela concessionária Transnordestina Logística(TLSA) – se arrasta há uma década, entre promessas, atrasos, paralisações, adiamentos. Foi iniciada em 6 de junho de 2006. No ano seguinte, foi incluída no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – o que asseguraria prioridade na execução –, com o custo estimado em R$ 4,5 bilhões.
O governo Lula prometia entregar a obra em 2010. Expirado, o prazo foi prorrogado para 2012. O custo estimado já estava em R$ 5,4 bilhões. Até aquele momento, haviam sido gastos R$ 2,1 bilhões. No primeiro ano do seu governo, Dilma Rousseff ‑ anunciou que o empreendimento ficaria pronto só no final de 2014. Em abril de 2012, o valor do contrato passou para R$ 7,5 bilhões. Dois anos mais tarde, porém, a concessionária estimou o valor final em R$ 11,2 bilhões.
A diferença é de responsabilidade da TLSA e pode ser captada com a venda de capacidade futura da ferrovia, informou o Ministério dos Transportes à Revista Congresso em Foco. O consórcio, do qual a Odebrecht participou até 2013, é liderado pela Companhia Siderúrgica Nacional(CSN), que tem 57% do capital. No final do primeiro mandato de Dilma, a data de conclusão foi estendida para janeiro de 2017. A concessionária prevê agora a entrega da obra em dezembro de 2018. Mas essa data não foi aprovada, ainda, pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que recebeu recentemente um pedido de revisão do cronograma de execução do empreendimento.
Relatório da TLSA de junho deste ano informa que já foram gastos R$ 6,3 bilhões e que a execução física está em 52%, o que torna pouco provável a conclusão do empreendimento nos próximos dois anos e meio. O próprio governo informa que as execuções física e financeira cresceram apenas um ponto percentual no último ano. Ou seja, o pior desempenho nos últimos sete anos. A obra está parando. A suspensão dos repasses de recursos públicos para a Transnordestina, citada pelo prefeito de Eliseu Martins, foi apenas temporária.
Em 19 de maio deste ano, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou, por meio de medida cautelar, a suspensão de repasses do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), da Valec Engenharia (estatal que administra as ferrovias) e de fundos de investimentos e desenvolvimento do Nordeste para a construção da Transnordestina.
O ministro Walton Alencar armou, em tom grave, que a situação do empreendimento, denunciada pelo Ministério Público de Contas, evidenciava “condução informal, improvisada, atabalhoada, negligente e absolutamente ilegal de processo de desestatização, incompatível com o rigor necessário à concessão de serviços por meio de contratos complexos e delonga duração”. Menos de um mês depois, em 15 de maio, o tribunal revogou a sua decisão.
A TLSA informou aos seus acionistas, dois dias depois, que estava “restabelecida a continuidade dos aportes programados”. Embora a obra seja de responsabilidade de uma empresa concessionária, a maior parte dos recursos investidos na ferrovia até agora saiu dos cofres públicos, como afirmou o diretor de Infraestrutura Ferroviária do Dnit, Mário Dirani, em audiência pública na Câmara dos Deputados em março deste ano. A concessionária entrou com R$ 2,66 bilhões, contando com financiamentos do BNDES, Finor e Valec. Os recursos de terceiros – incluindo Sudene, FNDE, BNDES, e Banco do Nordeste – somam R$ 3,47 bilhões.
Desenvolvimento grandioso
A cidade de Eliseu Martins chegou a se entusiasmar com os benefícios indiretos da obra. O vereador Pedro Teles conta como a interrupção da obra afetou a economia do município: “Tinha muito serviço. Aqui, teve época em que não tinha casa para alugar. Engenheiros, funcionários da Transnordestina mesmo. E, de repente, pá, zerou tudo. Agente vai acreditar? Difícil. Quantas pessoas não estariam ganhando? Só o que a gente está vendo na política é esse tipo de coisa. Nesse momento, não tem como fazer previsão”.
Para o prefeito Marcos Aurélio, a paralisia nas obras da ferrovia frustra a expectativa de desenvolvimento criada com o anúncio do projeto. “Teria um porto seco. Seria o ponto inicial e final da ferrovia. Tudo passaria por aqui. Toda a produção do cerrado piauiense, do Maranhão e até da Bahia. O desenvolvimento aqui seria algo grandioso. Seria importante para o estado e, especialmente, para o município. A base da economia aqui é a agricultura de subsistência, quando consegue colher, quando tem chuva. Neste ano, perdemos 90% da produção prevista de feijão”, diz.
A produção agrícola vem evoluindo na região desde a década de 90. Em 2006, quando se iniciou a construção da ferrovia, a área plantada de milho e soja – os principais produtos– no Piauí estava em 519 mil hectares. Em 2015, chegou a 1 milhão de hectares. No mesmo período, a safra desses dois produtos pulou de 756 mil toneladas para 2,9 milhões de toneladas. Os dados são da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). A chegada da Transnordestina vai reduzir muito o custo com o transporte até os portos e aliviar a carga das rodovias do Nordeste.
Considerando-se a data inicial prevista para a entrega da obra (2010), é possível fazer uma estimativa sobre o que já poderia ter sido transportado pela ferrovia em seis anos apenas no Piauí. Algo em torno de 4,9milhões de toneladas de milho e 7,3 milhões de toneladas de soja. O vereador Pedro Teles acrescenta que, em função da Transnordestina, a Conab tem projeto de construção de um depósito no município. A prefeitura vai doar o terreno na expectativa de gerar mais empregos.
Duzentos contos
Mas não apenas as autoridades do município lamentam o atraso nas obras. O dono do mercadinho, o gerente do posto de gasolina, a dona da pousada, todos aguardam pelos novos consumidores. Mas preferem não ser identificados, para evitar confusão com “os homens”. Até mesmo na pequena favela na periferia da cidade, no bairro Baeta, os moradores têm as suas expectativas. Na Rua Projetada, cheia de casas de taipa, pergunto ao trabalhador braçal Estênio Pereira da Silva, de 46 anos, quando chega a ferrovia: “Rapaz, ninguém sabe”. Ele fala o que espera dessa obra: “Acho que gerava emprego para gente trabalhar. Eu trabalho com roça”.
Com sete filhos para criar, Estênio tem uma renda mensal ínfima e não conta como Bolsa Família, embora tenha crianças em casa. “Rapaz, é na base de 200 contos, tem vez que é 300. Tinha a Bolsa Família, mas foi cortada há dez meses. Não sei por quê”, conta. Ele mostra a casa humilde, com quatro cômodos. Uma filha doente passa os dias deitada numa cama. Algumas crianças dormem em redes. Num segundo quarto, há um colchão que acomoda outros filhos. Com R$200, não dá para fazer quase nada. “Tem mês que não dá nem para comprar o gás. Estamos cozinhando a lenha.” Com os olhos cheios de lágrimas, cobre o rosto com a camiseta e chora baixinho para que os filhos não percebam.
Em Simplício Mendes, cerca de 240 quilômetros adiante, as obras da Transnordestina estão mais adiantadas. Além dos aterros, cortes e bueiros, há algumas pontes e viadutos em construção. Como é domingo, está tudo parado. O sertanejo Afonso da Costa aproxima-se montado no seu jegue. Os pés quase encostam no chão. Pergunto sobre a obra. Ele fala que está “meio devagar”. Depois, conta que trabalhou na empresa responsável pelo trecho há alguns anos. “Eu derrubava mato no início. Depois, não teve mais emprego”, explica. E segue o seu caminho. Percebo, então, que ele veste um antigo uniforme da empreiteira que um dia tocou a obra. Nas suas costas, está estampado: “Odebrecht Infraestrutura. A segurança é dever de todos”.
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