Conhecido como um espaço de liberdade para os integrantes da comunidade LGBT de Brasília, o bar Beirute nem sempre foi aberto à diversidade sexual e afetiva. Inaugurado em 1966, quando a nova capital federal ainda era um grande canteiro de obras e o golpe militar de 21 anos estava em seu segundo ano, o Beirute nasceu como um estabelecimento tradicional. Mas não demorou muito para se tornar um território conquistado, boêmio e muito à frente de seu tempo.
No fim da década de 1970, um casal de homens estava no bar da Asa Sul e, num dado momento, beijou-se. Um garçom, então, ordenou que eles se retirassem imediatamente. Como resposta, surgiu o primeiro grupo gay da capital federal, o Beijo Livre. No dia seguinte, cerca de 15 casais de homens se reuniram e tomaram uma atitude que chocou a sociedade mais conservadora na época. Voltaram ao Beirute e, após um grito de “agora!”, todos se levantaram das mesas e se beijaram.
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A voz que deflagrou o protesto era de Alexandre Ribondi. Hoje, aos 64 anos, ele é diretor de teatro e produtor cultural. Mas, na ocasião, era um jovem estudante de jornalismo na Universidade de Brasília (UnB). Natural de Mimoso do Sul (ES), chegou à capital federal em 1968, aos 15 anos, sozinho. “Filho de pai italiano sonhador e genial, que achava linda a ideia de construir uma capital”, como ele diz, foi mandado para Brasília pela família.
O perfil com a entrevista de Alexandre Ribondi é um dos destaques da nova edição da Revista Congresso em Foco. Para acessar o conteúdo completo da publicação, clique aqui.
A cidade era construída com ares libertários, por reunir pessoas de diferentes regiões, todas embaladas pelo sonho de uma vida melhor. Na década de 60, em pleno regime militar, o cantor Ney Matogrosso morou na capital, quando era funcionário do Hospital de Base. Tempos depois, chegou a declarar que sentia a cidade como “uma das mais libertadoras” em que viveu. A ditadura, no entanto, repercutiu de forma violenta também no projeto da nova capital, que foi endereço de perseguições, repressão, prisões, torturas. Mas também de resistência, criatividade e militância.
Cerco duplo
Como um dos personagens que cresceram junto com a cidade, Ribondi se formou em Brasília, bem como ajudou a formar a cidade. Foi preso e torturado, num prédio da administração pública federal, na garagem do Ministério da Marinha, em plena Esplanada dos Ministérios. Estudava no Elefante Branco, tradicional colégio público da Asa Sul, quando começou a ter contato com a esquerda. “Você não tinha muita escolha. Quando uma ditadura se coloca de maneira tão violenta, é um esforço sobre-humano ser indiferente”.
Ainda hoje ele se assume como “de esquerda, sempre de esquerda, com o coração batendo do lado esquerdo”. Essa relação nem sempre foi harmônica. “Quando fui preso, foi dito por um companheiro que estava próximo — e isso eu ouvi — que não tinha importância, porque era ‘só mais um viado’. E eu fui torturado também por ser viado”, conta. Em meio a esse contexto, tanto de conjuntura política do país, quanto pessoal, de desenvolvimento em uma nova cidade, ele teve de descobrir uma forma de se colocar. Como homossexual, lutou contra a ditadura e o preconceito. Mas sua batalha contra a discriminação continua. “Sempre me entendi como homossexual. Quando a pessoa mora sozinha aos 15 anos, isso é mais natural. Então eu prefiro ser uma pessoa, apenas”, define.
Humor transformador
Em sua militância, às vezes de linha de frente, às vezes na própria forma de ser, sempre esteve na vanguarda dos debates sobre liberdade e democracia. Liderou grupos de movimentos sociais, escreveu para jornais alternativos, produziu e ainda produz peças de cunho crítico, como a mais recente, “Felicidade”, sobre a vivência LGBT na periferia, contada por jovens da cidade Estrutural, uma das regiões mais pobres do Distrito Federal, que abriga o maior lixão da América Latina, a 13 quilômetros de Brasília.
O humor é uma linha contínua na vida do teatrólogo. “Dançar e sorrir também eram práticas proibidas. O riso é extremamente subversivo.” Mesmo na esquerda, durante a ditadura, não era bem visto — por ser homossexual. “A esquerda nos rechaçava”, lembra. Assim, intervenções artísticas, teatro de guerrilha, humor satírico em publicações alternativas constituíram a ação de Ribondi.
Essas lutas de 40 anos atrás repercutiram, no entendimento do diretor de teatro, na vida cotidiana de Brasília. “Acho que em outras cidades, se você anda rebolando, alguém logo grita: olha o viado! Aqui no Plano Piloto, nunca vi isso. Acho que é mais fácil viver aqui, em vários aspectos, inclusive nesse”, avalia. Ribondi vê Brasília como uma cidade mais indiferente, para o bem e para o mal. Um lugar onde as pessoas mal conhecem os vizinhos, mas também onde eles não se importam com a sua vida. “Não sei se tem relação direta com as lutas dos anos 1970, mas todos os movimentos em que você se engaja, mesmo que atinjam poucas pessoas, se amplia e se multiplica. Se você não acreditar piamente nisso, não participa de movimento social nenhum.”
Igreja e porrada
Ainda assim, observa, há muito o que avançar, além de impedir retrocessos. “Na ditadura, tínhamos um círculo no qual podíamos estar tranquilos. Hoje, esse círculo aumentou, mas ainda não é suficiente. Ainda estamos em risco em muitos lugares. Olhar feio para a gente, foda-se. Estamos acostumados. Mas levar porrada por andar de mãos dadas? É inaceitável.” Grande parte da prevalência desse problema é consequência da fantasia do Estado laico, como ele define.
Ribondi entende que, na medida em que cresce o poderio das bancadas religiosas, que se pautam pela Bíblia e entram na alçada de questões de Estado, a comunidade LGBT está sujeita à marginalização. “Diante do discurso proferido pelos poderosos, usando o livro sagrado para disseminação de ódio, o brasileiro comum se sente empoderado a fazer o mesmo e levar o discurso para a prática. E eles acreditam no inferno! E, em dinheiro. O que dá no mesmo em muitos momentos.”
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