Bajonas Teixeira de Brito Junior *
A mentira, que já tem perna curta, dentro de campo ficou sem pé nem cabeça. Depois do débâcle de Eike Batista, o colapso da seleção veio como um episódio muito oportuno do desmoronamento da mentira pública. As promessas ― de superação do complexo de vira-latas, de benefícios públicos com as obras de mobilidade urbana, de construção de uma imagem renovada e positiva do país no exterior, e muitas outras ― se desvaneceram. Dentro dos diversos níveis de construções ficcionais sobre a Copa, interessa em especial a que foi promovida pelas grandes empresas efetuando, através de suas próprias imagens, a identificação entre a massa de torcedores e a seleção. Vale a pena prestar atenção nas estratégias utilizadas e como, ao final, parecem ter contribuído mais do que se imagina para o resultado catastrófico.
Para começo de conversa, fixe-se o momento em que Galvão Bueno, o narrador veterano que há alguns anos venceu a classe média que suplicava à Globo que o tirasse do ar (O “Fora Galvão!” que deve ter sido a primeira “campanha” feita pelo twitter no país), trombeteou com gogó afônico gargarejando os erres (rrrrepito): os alemães “chegam como se fosse um treino de uma grande seleção contra um time de meninos”. A Alemanha tinha acabado de marcar o quinto gol. O que ele que esqueceu é que “meninos”, esse tratamento infantilizador (“os meninos da seleção”), foi uma palavra que a mídia, e ele mesmo como arauto da Globo, usou e abusou. É a fórmula bem manjada para extrair carinho demagógico fácil e identificação familiar: os meninos do Brasil. Pois é. David Luiz, 27 anos, menino brasileiro. Que esperar desse meninão, garoto propaganda e office boy do #Itaú?
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Não pensem que falo com rancor ou hostilidade. Muito pelo contrário. Esses meninos só me trouxeram alegrias. Não havia assistido nem cenas dos jogos anteriores. Muito menos escutado o dó de peito do Galvão. Comecei a ver quando me disseram que a Alemanha tinha marcado o quarto gol. Mal sintonizei, e saiu o quinto. Puro deleite. Mirando agora em retrospectiva os dez gols que o Brasil tomou nesses dois jogos, concluo satisfeito que o país teve tudo que merecia. E agradeço aos garotos. De coração e com os olhos marejados. Ter vivido para degustar esse momento glorioso, ter o privilégio de participar dessa geração, como disse o David Luiz no depoimento-verdade ao #Itaú, é um privilégio enorme.
Por falar em olhos marejados, lembro que as lágrimas escorriam aos borbotões nas telas cavando atalhos para o coração dos otários. Tudo isso era xaveco de propaganda, mas as posições relativas de ator e personagem são muito fluidas, principalmente onde impera a volubilidade. A mentira vai parecendo verdade. E logo os jogadores tinham incorporado toda a meninice e a fragilidade associadas à infância. Os garotos da família Scolari. Foi um show de quedas, dentes arreganhados, grunhidos de dores inexistentes, etc. Garotos malcriados, dengosos e delinquentes. A seleção que mais cavou falta e procurou enganar os juízes, dizem as estatísticas. E aí vem o grande tombo. Firulas, presepadas, manhas, cavações, simulações e, por fim, o baque.
E a propaganda não errou. Ao escolher David Luiz para secundar o estrelato de Neymar, produziu um fenômeno raro de identificação quase instantânea. Em pouco tempo, a estrela de Luiz ascendeu muito alto. Mas tudo que sobe tem que cair.
Quem caiu diante da Alemanha? O país inteiro porque a #seleção é a torcida. E a torcida tornou-se a seleção brasileira. Nunca houve sintonia tão fina entre a nação e os jogadores. A pátria de chuteiras, ou de havaianas, estava inteira no campo, e foi ela quem levou de 10 x 1 nos dois jogos. Na verdade, os jogadores nem tiveram espaço para jogar, porque o país embolou o meio-de-campo, a meia-área, a zaga e até o gol. Uma enxurrada de corações pulsantes (#Itaú Batucada do coração – “vai estourar de tanta emoção”), de crianças com vozes anasaladas em falsete, de lágrimas escorrendo pelo nariz, de sentimentalismo marqueteiro vendido por Paulo Miklos e Fernanda Takay. “Mostra a tua força Brasil”.
A bem dizer, os jogadores ficaram nas arquibancadas para assistir à torcida, uns 200 milhões senão mais, que se enfiou pelo campo à dentro. Os jogadores cruzaram os braços e as pernas para ver a torcida jogando. O quanto a máquina midiática realizou a liga entre o povo brasileiro estilizado (em sua grande maioria branco nas dezenas de propagandas do Itaú, ou negros ajustados ao figurino de tempero promocional) e a seleção (basicamente infantil, com um Neymar como “meu menino dos olhos verdes” e o David Luiz arrebentando como menino anjo, ou melhor, arcanjo Gabriel de peruca encaracolada), a alquimia da derrota já estava cozinhando no caldeirão mineiro.
Como David Luiz podia atuar como zagueiro se ele, encarnando a identificação com a brancura carismática deveria estar em todos os lugares do campo, e isso ao mesmo tempo, para que pudesse satisfazer seu lugar simbólico no coração de cada brasileiro? Ele não era ele, mas a torcida que se encarnou na cor da sua pele e da sua camisa. Era os 200 milhões de zumbis hashtageados que se contorciam dentro dele. Como esse possuído podia se concentrar? O jornalista da BBC o criticou dizendo que “estava querendo ser o herói da pátria”. Mas o fato é que ele já o era. A consagração antecipada na mídia, contudo, se deveu muito menos ao seu futebol, que por melhor que fosse sempre seria discreto devido à sua função defensiva, do que ao carisma fabricado do meninão branco bem amado. Papel que nas novelas brasileiras, que constroem os lugares identificatórios da população, foi muitas vezes representado por Fábio Assunção ou Guilherme Fontes. Esse o lugar da liberdade do arbítrio e da impunidade do filho de boa família, basta ver o que Guilherme fez com os recursos que captou para o filme Chatô, o rei do Brasil. E a impunidade com a qual, há vinte anos, vem sendo beneficiado. Posto nessa posição, David apenas agiu como manda o figurino.
Tivemos a maior seleção já escalada. Duzentos milhões de uma nova mutação cultural da humanidade, uma multidão de figurantes ensaiados pelos diretores de produção das agências de publicidade, vivendo dentro de empresas, que manufaturam seus sentimentos, expectativas, afeições, frases, opiniões e gritos de torcida. Eles vivem no Facebook, na Globo, no Itaú, na CBF, na Sadia, no Twitter, Vivo, Credicard, Seara, etc. Eles cantam a capela o hino nacional e estão conectados. Eles gritam “Sou brasileiro com muito orgulho” e xingam o Fred, seu principal jogador em campo, com um #vai tomar no cu. Uma torcida em convulsões epilépticas.
A gordura brilhosa que escorria toda vez que se babava o mantra “os meninos da seleção”, deve ter sido sintetizada na Sadia. Redes sociais, microblogs, mensageiros, planos de celular com a maior tarifa do mundo, etc. Nenhuma população no planeta se equipara no grau de permeabilidade e integração ao mundo digital (uma integração muito problemática, que já examinamos em outras oportunidades). Por isso mesmo, a onda de protestos do “#Não vai ter Copa” se mostrou bastante consistente. Mas a labilidade dos ativistas se mostrou também bastante consistente, o que os fez facilmente vulneráveis pelo complexo de hashtag. Assim na pressão massacrante do último mês antes da Copa, e durante os jogos, a maioria saiu do #Não vai ter copa para o #Joga pra ele, patrocinado pela Sadia. Ou para o #Sou brasileiro, do cartão Elo. Ou o #Isso muda o mundo do #Itaú. Ou os #MomentosMaiores da Coca-cola. Então essas passaram a ser as novas bandeiras hasteadas em todo o país:
A euforia e o frenesi dos jogos, ampliados pelos “mil altofalantes” tocando o canto de sereia do #Itau, da #Sadia, da #Sony, da #Seara, da #Adidas, etc., seduziram sem muita dificuldade a moçada dos protestos. E o que se viu foi um “bagulho louco, um babado, confusão e gritaria” histérica de torcedores irmanados em um só coração. Salve a seleção! Os ativistas vestiram a camisa amarela e instalaram-se confortavelmente inativos nos sofás. Os deuses das logomarcas impuseram a sua vontade sobre a reduzida minoria que tinha se rebelado um ano antes. No protesto da Candelária, 19 mil facebookers confirmaram presença, 50 apareceram, e os 5 mil policiais enviados para proteger as logomarcas foram filar a imagens das TVs dos botecos da Presidente Vargas. Sem desdenhar é claro o “cafezinho por conta”.
Uma grotesca aglomeração de armaduras articuladas compradas a peso de ouro, especialmente para a Copa, pode ser vista nas fotos do dia 17 de junho. “Uma hora antes do horário marcado para o ato, havia apenas policiais na Candelária. Às 17h, eram 15 manifestantes”. Salvo os 50 que compareceram, 90% garotas que não se deixaram corromper, o resto, meninões autodenominados ativistas digitais, na precocidade dos seus 30 ou 40 anos, sentaram os fundilhos no Twitter para tecer comentários de torcedor fanático.
Nem o desabamento do viaduto, que fazia parte das obras de mobilidade urbana, e serviria como um dos acessos ao Mineirão, obra de empreiteira premiada pelo PAC, freou o frenesi. Ninguém, a não ser o pai da motorista morta, perguntou por que, dias antes do jogo, o viaduto foi limpo das escoras.
“A pressa por causa de jogo da Copa do Mundo é que fez eles tirarem o calço antes da hora”, disse o pai de Hanna, José Antonio dos Santos.
Os técnicos, os engenheiros, os planejadores, ninguém sabe o que pode ter ocorrido. É muito cedo, sempre é muito cedo, para apontar culpados. Não cogitam que exista nexo de causalidade entre a retirada das escoras, para mostrar como pronta uma obra atrasada, e o desabamento no dia seguinte. O prefeito de Belo Horizonte correu para dizer ― é possível que esse tenha sido o cúmulo da bestialidade – que não houve culpados. Contra isso, ouviu apenas a voz solitária e indignada da família da jovem motorista. Mais nada. A classe média, os intelectuais, os estudantes universitários, foram para o estádio ou para frente da televisão. Não se deu atenção a ninharias, nem se quis saber se era verdade, e era, que o desabamento do viaduto abalou a estrutura de outro que faz parte do complexo, e terá também de ser demolido.
Para a neta do Havelange, Joana Havelange, diretora do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo (COL), “o que tinha pra ser roubado já foi”. Ela, na sua pureza de coração, esqueceu que o que “tinha para ser roubado” continua a ser roubado, não só em vidas roubadas por desabamentos, como o desse viaduto em BH, mas nos próximos que virão abaixo na devida hora. E também em muitas outras frentes (como nos hospitais) em que o que “tinha para ser roubado” continuará sendo roubado. Isso é o que ela quer: “Quero ver um Brasil lindo”. Ora, o Brasil está mais lindo que nunca.
Na torrente do selfie e do meme, formas apocalípticas da imbecilidade coletiva, a escalada policial, com os últimos 19 presos, vai crescendo junto com a demência social patrocinada pela hashtag, com a internação de todo o país nos campos concentracionários das empresas (especialmente no âmbito da interação comunicativa: facebook, instagram, Twitter, whatsApp, etc etc), ao que se junta o crescimento cancerígeno do digitonegócio (#magazineluiza com seus juros vampirescos, verdadeiro linchamento econômico dos pobres) e a falência múltipla dos órgãos dos “ativistas” anti-Copa. A coisa vai ferver. Ou melhor, vai congelar. Mas o gelo, é bom que se lembre, queima tanto quanto a fervura.
Em torno dessa Copa tudo foi falso. Sua verdade foi construída tecnicamente com muito equipamento e engenharia pesada da alma. Leia-se: marketing. A falsidade da Copa aflorou nos protestos de 2013 com muita força, o padrão Fifa foi desmascarado, a ausência de investimentos em hospitais, escolas, e outros serviços públicos, os despejos e o estado de exceção foram as bandeiras mais constantes. A denúncia da roubalheira desbragada foi brandida aos quatro ventos. Na sequência, toda a mentira por trás da “ordem social democrática”, ficou muito explícita com o ministro da Justiça articulado e costurando nacionalmente, junto com os secretários de Segurança dos estados, o aparato jurídico e repressivo para deter os protestos. No último sábado (12 de julho), quando duas dezenas de pessoas, incluindo a Sininho, foram presas sob a falsa alegação de “formação de quadrilha armada”, temos um bom diagnóstico do trabalho urdido nos porões do Ministério da Justiça. O sonho do ministro José Eduardo Cardozo é governar São Paulo (trampolim seguro para a Presidência da República) e não se chega ao governo de São Paulo sem mostrar completa sintonia com as práticas mais violentas e mais sórdidas.
O pavio aceso pela Copa exaltou ânimos animalescos e acabou criando uma identidade nítida da “classe dominante”, que deu nisso: a cavalar exibição escrotoselfica de uma baranga carioca repulsiva. Genialmente definida, por um voyeur local como um “bagulho louco, um babado, confusão e gritaria”, a cena não deixa dúvidas. Mas é preciso lembrar que essa não é a primeira. Nem será a última. Não nos esqueçamos daquela outra que, em apoio à discussão do cineasta de nariz alérgico, que “ganha bem pra caralho”, no rolezinho do Shopping Leblon, denunciou em tom histérico o golpe comunista no Brasil. Só o PT não vê aonde a munição policial que ele dispensou aos governos estaduais ― que disso sirva como ilustração a gigantesca frota de viaturas policiais que cruza o país e ultrapassa os sinais vermelhos de toda a federação nesse instante ― irá conduzir.
A Copa deixa como seu legado corrupção exponencial, violência repressiva, exclusão social, despejos, desmandos, mentiras públicas, racismo escancarado (vejam as musas das Copas em todas as homes), babaquice generalizada, produção em massa de zumbis hashtags, vandalismo da classe média livre xingando livre de inibições civilizatórias, oportunismo eleitoral, burrice exposta, maquiavelismo de botequim, e tantos outros eteceteras. O Brasil não venceu o complexo de vira-latas. Mas produziu um superviralatismo superlativo compartilhado num achatamento craniano generalizado. Sobre essa massa amorfa, ou essa montaria fofa, até um Jair Bolsonaro poderá cavalgar como guia e füher. Da # até a 卍 a diferença é menor do que se pensa.
*É doutor em Filosofia, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas. Foi duas vezes premiado pelo Ministério da Cultura por seus ensaios sobre o pensamento social e cultura no Brasil. É coordenador da revista eletrônica, Revista Humanas , órgão de divulgação científica da Cátedra Unesco de Multilinguismo Digital (Unicamp) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Ufes.
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