A cena é atemporal: um grupo de velhos amigos se encontra para falar da vida, da política e, claro, da triste situação em que se encontram as instituições e a sociedade, acossadas por lutas internas e corrupção. Poderia ser uma mesa animada no bar da esquina no último fim-de-semana, mas não: essa reunião específica se deu em Atenas, no quinto século antes da Era Comum, com a presença de um tal de Sócrates, um cara que normalmente faz valer a pena qualquer conversa.
De fato, enquanto os outros reclamam da corrupção e da injustiça, tal como se faz habitualmente nessas situações, Sócrates vai além e passa a questionar o próprio conceito de justiça. Os participantes da conversa, então, a buscar uma definição, mas, a cada tentativa, o filósofo vai lá e, com suas observações desconcertantes, mostra a incompletude de cada uma.
Conversa vai, conversa vem e Gláucon, um dos presentes, indaga aos colegas: será que toda essa indignação com a injustiça cometida pelos outros não seria simplesmente o papinho de alguém que não teve (ainda) a chance de cometê-la? Neste caso, não haveria nas reclamações dos amigos contra corruptos e injustos mais recalque do que indignação sincera para com a sorte do País?
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A afirmação deixa os participantes desnorteados. Afinal, se Gláucon estiver certo, tudo está irremediavelmente perdido. Ele, então, aprofunda a estocada,: “Vamos imaginar que temos a possibilidade de darmos a dois homens – um, justo e honesto; outro, injusto e corrupto – a capacidade de fazerem o que mais desejam sem serem descobertos. O que vocês acham que aconteceria? ”, pergunta ele. Ninguém se atreve a responder.
Para ilustrar essa espécie de experimento social, Gláucon, então, conta a história de Giges, um pastor da antiga Lídia, que encontra por acaso em uma caverna um anel mágico, capaz de tornar invisível aquele que o usar. Giges, que até aquele dia havia sido um homem justo e respeitoso das leis, um exemplo de cidadão, passa a agir quase que instantaneamente como o pior dos facínoras. Ele não só seduz a rainha da Lídia, como também, junto com ela, mata o seu rei. Assim, Giges alcança o topo da representação social do poder e do prazer que um homem poderia almejar.
Após narrar tal história, Gláucon conclui impiedosamente: “se qualquer um de nós colocasse as mãos nesse anel, não tenho dúvidas de que faria exatamente o mesmo que Giges! ” Para ele, é somente o medo de ser pego com a mão na botija – e de ser punido por isso – que faz com que os cidadãos ajam com justiça. “Se assim somos – pergunta – como podemos imaginar um dia criar uma sociedade diferente dessa que temos hoje? ”
Platão e a desconfiança da política
Em linhas gerais, essa cena é narrada por Platão no segundo livro da República, um dos textos mais estudados ao longo de toda a história do pensamento ocidental. Nele, o discípulo de Sócrates vai direto ao ponto: se querem falar de política, comecem daqui, discutindo a capacidade do ser humano de ser cidadão. O ponto de partida é uma versão da tristemente célebre Lei de Gérson: cada um procura se dar bem e ponto, o resto que se dane, certo?
O questionamento platônico é ainda a dúvida mais cruel em nossos dias: a política como tal é, de fato, possível? O substrato metafísico e ético do ser humano, a maneira como somos feitos, a grave suspeita que paira sobre a capacidade de colocarmos o bem comum acima de nossa vantagem imediata: tudo isso permite que ainda acreditemos na política?
A história do pensamento ocidental é – em boa parte – a história das tentativas de dar respostas – a cada vez diferentes – a esta pergunta. Seriam nossas idealidades políticas e nossas declarações éticas somente sonhos que escondem o medo de sermos descobertos fazendo aquilo que secretamente desejamos? Ou pior, seriam a sublimação de nosso recalque, uma tentativa de impedir que aqueles-que-podem se deem bem? Seria esta a melhor descrição do ser humano na cidade – a de um predador amestrado pelo medo de ser apanhado?
Fatalismo x esperança
A tentação de bater o martelo nisso é grande, especialmente nos dias atuais. Descrença, desânimo e desespero são os corolários naturais desse modo de enxergar o mundo.
Mas, a própria história da Filosofia nos mostra que a coisa não é bem assim. Esse mesmo Sócrates, que, condenado injustamente por Atenas, tem a possibilidade de se colocar em primeiro lugar e fugir da pena capital, aceita serenamente a morte em nome das leis da cidade. Mas aí um dia você sai na rua, senta num banco de uma praça, e vê um homem humilde passando por lá: ele para e oferece metade de seu lanche a um morador de rua que vive nesses mesmos bancos. De repente, algo na descrição do ser humano irremediavelmente preso à lógica de Giges já não faz totalmente sentido. Essa generosidade não se explica simplesmente com base no artigo único da lei de Gerson. Deve haver algo que nos escapa. Algo que não compreendemos do ser humano, que foge às lógicas políticas normais e que nos fornece a ponta de um novelo para que possamos iniciar a tecer, com alívio, um fio de esperança.
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