No artigo de hoje, quero prestar homenagem a um servidor público que honrou a carreira, tendo atingido os 100 anos de idade em plena atividade a serviço do Estado brasileiro. Refiro-me a João Pereira dos Santos, o “Seu Pereira” ou “Pereirinha” para os colegas da portaria principal do Ministério da Justiça. Ele faleceu na última terça-feira e foi sepultado no dia seguinte, na Ala dos Pioneiros do Campo da Esperança, depois de ter sido velado no Salão Negro do Ministério, numa justa honraria prestada a quem dedicou àquela pasta quase 40 anos de trabalho.
Seu Pereira era uma figura extraordinária. Ele foi emblemático para o serviço público em Brasília e até mesmo para a história da cidade. Por várias vezes, protagonizou reportagens produzidas na cidade, tanto para jornais impressos como para programas de TV. Em comum, todas elas o mostravam em plena atividade, já quase centenário. Esse homem, que completou 100 anos de vida em 10 de junho último, era de uma espécie rara, beneficiado por uma força da natureza que lhe permitiu alcançar tal longevidade, mantendo-se ativo e lúcido como poucos conseguem. Basta lembrar que a média de vida do brasileiro é de 74,6 anos, segundo o IBGE. Ou seja, ele superou essa marca em nada menos do que 35 anos e meio, fato raríssimo no nosso país. Até poucos dias antes de adoecer e ser internado no hospital onde faleceu, João Pereira fazia questão de ir trabalhar diariamente dirigindo o próprio carro da Asa Norte até o Ministério. Orgulhava-se de ser um motorista exemplar e de ficha imaculada, sem dúvida o mais idoso da cidade e, quem sabe, do Brasil.
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Sergipano de Propriá, o ainda jovem Pereirinha foi tentar a sorte no Rio de Janeiro e acabou motorista da Câmara dos Deputados, na então capital da República, num golpe de sorte ou do destino – ou as duas coisas ao mesmo tempo. Depois de ter servido ao Exército, Pereira era motorista de um político que, certo dia, pediu que para ser levado até a Câmara. Quando retornou ao carro, o homem avisou que, no dia seguinte, Seu Pereira deveria se apresentar lá para trabalhar. Foi então que a vida do novo servidor público começou a mudar. De menino pobre no Nordeste, “que, quando queria comer peixe, tinha que mergulhar no Rio São Francisco para pegar”, segundo contava aos filhos, Pereirinha se tornara inspetor de segurança da Câmara, cargo que exerceria até a aposentadoria.
A história de Seu Pereira é assim, bonita como o sorriso generoso que era a marca registrada no rosto redondo e moreno, a revelar o homem sempre de bem com a vida, conversador e de memória privilegiada. Seu Pereira gostava de ler sobre história e tinha como tema de conversa preferido fatos pitorescos envolvendo números, que decorava com facilidade extraordinária. Ele tinha muita coisa guardada na memória. Pudera! Vocês podem imaginar o que é viver por mais de 100 anos? Quando Pereirinha nasceu, em 1914, a primeira guerra mundial nem havia começado — foi declarada em 1º de agosto e só terminou quando ele já estava com quatro anos de vida, em 1918. A guerra acabou, mas era o ano da gripe espanhola, que matou milhares de pessoas no mundo todo, inclusive no Brasil.
É claro que ele não tinha consciência de nada disso, mas, depois, foi sendo testemunha viva da história, ao longo dos seus 100 bem vividos anos. Assistiu à revolução de 1930 e ao início do Estado Novo no Brasil, em 1937. Viu Hitler ascender ao poder na Alemanha; a segunda guerra mundial estourar, em 1939, e acabar, em 1945; o Brasil entrar no conflito, em 1944; a bomba atômica explodir em Hiroshima, também em 1945; a seleção brasileira ser derrotada pelo Uruguai, no “Maracanazo” de 1950, e conquistar o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto e o quinto campeonato do futebol mundial (1958, 1962, 1970, 1994 e 2002); Getúlio Vargas chegar ao poder e, mais tarde, tirar a própria vida, nos anos 1950; Juscelino Kubitschek ganhar projeção nacional e construir Brasília, entre 1956 e 1960; Jânio Quadros se eleger presidente da República e renunciar ao cargo, em 1961; João Goulart substituí-lo, em 1962; os militares darem o golpe, em 1964; o homem chegar à lua, em 1969; a ditadura militar chegar ao fim no Brasil, em 1985; a Constituinte produzir a Constituição cidadã, entre 1986 e 1988; e o Brasil passar pela revolução tecnológica e pelas mudanças políticas das últimas décadas.
É muita coisa. Só mesmo vivendo 100 anos para testemunhar tantos acontecimentos importantes. E foi aqui, em Brasília, que Seu Pereira acompanhou grande parte deles, desde 1º de maio de 1960, quando chegou à cidade. Aqui fincou raízes e se tornou patriarca de um clã imenso. Mesmo depois de se aposentar como inspetor de segurança na Câmara dos Deputados, jamais quis parar de trabalhar. Considerava vergonhosa a inatividade da aposentadoria e, por isso, tornou-se motorista de táxi. Como sabemos, a aposentadoria do servidor é compulsória aos 70 anos, se ele não se aposentar voluntariamente antes de chegar a essa idade. Mas a paixão de Pereira pelo serviço público acabou levando-o a trabalhar como terceirizado no Ministério da Justiça até os últimos dias de sua vida.
Seu Pereira agora também deixa a vida a entra para a história – se é que podemos parafrasear o autoepitáfio de Getúlio Vargas. Creio que, no caso de Pereirinha, podemos, sim. O sergipano ilustre recebeu todas as honras a que tinha direito por sua trajetória exemplar na cidade onde viveu por 54 anos. Uma delas foi o obituário que ocupou uma página do Correio Braziliense, algo que só acontece com as grandes personalidades. Assim, ele teve um desejo cumprido, pois dizia que “morrer em Brasília e não sair no obituário do Correio é como se não tivesse existido”.
A outra homenagem concedida a Seu Pereira talvez nem ele imaginasse receber: o velório ocorreu no Salão Negro do Ministério da Justiça e com direito a tapete vermelho estendido até o caixão. Essa honra é reservada às autoridades mais importantes da República, que ali recebem as últimas homenagens da família, dos amigos e do país. Outro detalhe importante dessa emocionante despedida foi o enterro na Ala dos Pioneiros de Brasília, pelo fato de Pereira ter sido um dos que aqui chegaram para ficar, no início da construção da cidade. Eram tantas coroas de homenagem que os carros fúnebres não foram suficientes para transportá-las e a família teve de ajudar, transportando algumas nos próprios veículos.
Com a morte de João Pereira, ficam a história e o exemplo do servidor público, do homem de bem e do pai de família, fundador do clã dos Pereira dos Santos, formado pelos quatro filhos – João Dino, Ritamaria, Antônio José e Mário Jorge –, netos e bisnetos, noras, genros e demais familiares. Pereirinha, posso garantir, nunca será esquecido por essa família e pelos muitos amigos que cativou ao longo de sua vida centenária.
Como servidor público, ele era de uma época bem diferente da que o país vive hoje, quando não era exigido concurso para ingressar nem na Câmara, nem no Senado, nem nos órgãos do governo federal e do poder Judiciário. Isso, no entanto, em nada diminui os méritos de Seu Pereira na carreira pública por ele trilhada, que podemos considerar um recorde, quando se soma o tempo de trabalho na Câmara e os 39 anos no Ministério da Justiça. Ele partiu sob o respeito e a consideração de todos que o conheceram pela vida afora.
À família, envio o meu abraço e as minhas condolências. Seu Pereira ficará para sempre em nossa memória como um exemplo para todos aqueles que fazem da carreira de servidor público uma atividade nobre e dignificante – em especial quando ela se estende por mais de meio século de amor ao trabalho. A vida segue sem João Pereira, mas a portaria do Ministério da Justiça nunca mais será a mesma sem a sua presença para receber o ministro e as visitas ilustres que chegam ao prédio. Aos concurseiros que me leem deixo um conselho: inspirem-se em Seu Pereira quando passarem num concurso público. Assim, mesmo que não cheguem aos 100 anos de idade como ele, poderão desfrutar, por toda a vida, da felicidade de ocupar o seu feliz cargo novo