Fosse uma questão de prova, o seu enunciado poderia ser assim.
Na sua opinião, o impeachment de Dilma Rousseff representa:
A. Um golpe de Estado, manobrado por um Congresso corrupto, para tirar do poder uma mulher honesta, que vinha governando em favor dos pobres, e entregar o país aos capitalistas.
B. A épica e vitoriosa batalha de um sistema político e jurídico capaz de investigar e punir um partido político, o PT, que representa o que há de mais nocivo no Brasil e no universo.
C. Coisa de república de bananas, uma farsa encenada por um país que, no final das contas, não merece ser levado a sério.
Se não aparecer uma letra D, com aquela tradicional “nenhuma das respostas acima”, desconfie seriamente da prova, dos seus autores e de suas motivações. Porque, em todos os três casos, ele estão muito mais destilando seus preconceitos e fé ideológica do que contribuindo para explicar qualquer coisa.
Infelizmente, porém, são essas as três versões predominantes sobre o impeachment, a despeito da visão quase caricata da realidade nacional e da mistura que fazem entre parcialidade e desinformação. O que, pra começar, mostra a pobreza do cardápio de ideias à disposição do público neste momento crítico da história brasileira. Indica também o quanto o jornalismo interpretativo independente tem a fazer para reportar este complexo momento da história brasileira. Uma tarefa na qual analistas apartidários têm muito a contribuir, de maneira a aproveitar uma chance fantástica para o país se ver no espelho, se repensar e fazer sua imperfeita democracia caminhar pra frente e não pra trás.Leia também
Veja a seguir alguns pontos fundamentais para compreender o que se passa no Brasil:
1) Por que Dilma sofreu impeachment?
Porque perdeu a capacidade de governar. Isso não aconteceu de uma hora para outra. Foi uma situação criada dia após dia pela própria Dilma, a partir do seu primeiro mandato, quando uma sucessão de erros na gestão econômica e política a levou ao isolamento.
Inábil para lidar com o mundo do poder, ela produziu muitos inimigos em razão do seu estilo autoritário, de decisões impensadas e da arrogância em relação até mesmo aos aliados. Essa inabilidade cobrou um preço alto quando ela se tornou impopular, após fazer depois de reeleita exatamente o contrário do que havia prometido na campanha eleitoral. Prometeu renda, emprego e mais investimento social. Ainda em 2014, após as eleições, veio com alta de juros e cortes em programas sociais, deixando evidente o que economistas e técnicos já vinham apontando: antes e durante a campanha, o governo maquiou dados para não admitir a péssima situação da economia. Intervenções erradas, como no setor elétrico e no preço da gasolina, deixaram investidores desconfiados e abalaram financeiramente várias empresas estatais. Subsídios bilionários para empresas não se converteram em benefícios para o país.
Chegamos assim a uma crise econômica brutal, a pior da história segundo os indicadores existentes, e a uma grave crise política, marcada sobretudo pelo fato de o governo ter ficado em minoria no Congresso. Basta dizer que, se tivesse obtido apenas um terço dos votos dos deputados e dos senadores, Dilma teria evitado o processo de impeachment. Para completar, ela, o PT e toda a coalizão governista foram afetados pelas revelações da Operação Lava Jato, um esquema bilionário de assalto aos cofres da Petrobras e de outras empresas públicas.
2) Dilma é vítima de um golpe de Estado?
Não. Dilma Rousseff e seus simpatizantes têm e tiveram amplas possibilidades de defesa e manifestação, e a ordem constitucional não sofreu nem está prestes a sofrer nenhuma ruptura. Há, é verdade, interpretações diferentes sobre o que dizem a Constituição e as leis em vigor, mas nem os defensores nem os adversários do impeachment têm a pretensão de invalidá-las ou suprimi-las.
Do ponto de vista legal, o afastamento de Dilma se sustenta no fato de ela ter descumprido normas orçamentárias (artigo 85 da Constituição Federal). Seus defensores observam, corretamente, que tanto os seus antecessores quanto a maioria dos governadores e prefeitos descumprem ou descumpriram. A diferença é que, no caso de Dilma, o que poderia ser considerado um pecado menor foi acompanhado de problemas fatais: crise econômica, crise política, governo afetado por sérias investigações de corrupção e, por fim, a perda de capacidade para governar.
Para aceitar que o impeachment de Dilma é golpe, seria necessário admitir que também foi um golpe que tirou, 24 anos atrás, Fernando Collor do Palácio do Planalto. E isso jamais foi cogitado por nenhum jurista ligado ao PT ou às forças contrárias ao impeachment de Dilma. Com Dilma e com Collor, o impeachment foi a solução – brasileiríssima e, por isso, às vezes incompreensível para tantos estrangeiros – para lidar com um impasse político-institucional.
3) Dilma perdeu o mandato por ser mulher?
É outra lenda. Dilma Rousseff foi, é verdade, brindada com várias manifestações de misoginia (isto é, aversão a mulheres), algumas delas terrivelmente grosseiras e impróprias. Mas caiu seguindo um roteiro muito parecido daquele protagonizado em 1992 por Collor, um homem nascido em uma família rica e poderosa. Naquele momento, como agora, o enredo envolveu incompetência, corrupção, economia no buraco, credibilidade do país arruinada, forte rejeição popular e incapacidade de aprovar qualquer coisa no Congresso.
4) Não há o risco de se banalizar o uso do impeachment, aplicando-o contra qualquer governante que fique em minoria no Parlamento?
Sim, o risco existe, e é um dos mais importantes alertas feitos pelos adversários do impeachment. Uma situação hipotética, que não pode ser aplicada ao caso de Dilma Rousseff sob pena de se incorrer em simplismo e distorção dos fatos, é um Legislativo – do país, de um estado ou município – chantagear o governante (presidente, governador ou prefeito) e ameaçá-lo com a deposição se não ceder às suas exigências. Daí porque alguns defendem o aprimoramento do mecanismo do impeachment, restringindo o seu uso e atualizando os ritos de tramitação, considerados demorados demais (quatro meses com Collor, nove com Dilma).
5) Afastados do poder o PT e Dilma, o país abre caminho para avançar no combate à corrupção?
Essa a esperança dos milhões de brasileiros que foram às ruas em 13 de março de 2016 pedir o impeachment de Dilma, naquela que é considerada a maior manifestação de massa da história do Brasil. Aqui, no entanto, estamos diante de uma pergunta que só o tempo permitirá responder.
O refluxo dos atos populares pró-impeachment e a defesa de novas eleições presidenciais diretas por mais de 60% dos brasileiros, captada por várias pesquisas, são sinais de que a população teme que não ocorram maiores avanços na luta contra a corrupção durante o governo Michel Temer. Que, não podemos esquecer, começou mal nessa área, nomeando para o seu ministério políticos sob suspeita, como revelou em primeira mão o Congresso em Foco. O problema é que a corrupção está profundamente arraigada no sistema político e na administração pública do Brasil. Evidente que o PT e seus líderes não são os primeiros a sucumbirem aos seus encantos. Ela atinge todos os partidos, inclusive os que se empenham em demonizar os petistas, como se eles fossem a encarnação viva da corrupção e de todo o mal.
Para avançar nessa área, será preciso que o Judiciário e o Ministério Público deem continuidade à Lava Jato e às novas frentes de investigação que ela gerou, inclusive aquelas relacionadas com adversários do PT; que o Supremo Tribunal Federal seja mais rápido no julgamento de crimes cometidos pelos políticos; que a Câmara dos Deputados casse o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), contra o qual há vastas provas para não só lhe tirar o mandato, como também colocá-lo na cadeia; e que se aprimorem os mecanismos de transparência e controle no serviço público. Tudo isso dependerá da mobilização popular, que é a melhor forma de garantir que as instituições do Estado funcionem no Brasil.
6) Dilma é vítima da sua honestidade pessoal e da opção que fez pelos pobres, em prejuízo dos corruptos e dos ricos?
Não, e aí está outra inverdade vendida pela propaganda petista. Os ricos e os poderosos não têm do que se queixar de Dilma e do PT. Como mostraram a Lava Jato e outras investigações em andamento, nunca houve tanto dinheiro para saciar o apetite dos corruptos, inclusive na Petrobras, na qual Dilma Rousseff teve voz de comando – direta ou indireta – durante 13 anos e meio, como presidente do Conselho de Administração, ministra de Minas e Energia, chefe da Casa Civil e presidente da República. Segundo depoimento à Justiça de um ex-diretor da empresa, ela sabia de tudo. A rigor, Dilma nunca foi investigada. Sob a alegação de que a Constituição impede a investigação do chefe do governo por fatos anteriores ao atual mandato, o Ministério Público a deixou de fora da Lava Jato. A oposição, também vulnerável quando o tema é corrupção, optou por não fazer qualquer apuração por conta própria, instalando por exemplo uma comissão parlamentar de inquérito (CPI), como foi feito com Collor. Deu-se por satisfeita ao ver que a violação de normas orçamentárias, num contexto de déficit recorde e manipulação das contas públicas, seria suficiente para dar início ao processo de impeachment.
Quanto aos ricos, podem se queixar de incompetência, jamais de perseguição. Somente de 2013 a 2015, o governo Dilma pagou mais de R$ 1 trilhão em juros, outro montante sem precedentes na história brasileira. Dinheiro tirado dos contribuintes em favor dos bancos e da ínfima minoria de brasileiros generosamente remunerados para financiar um Estado deficitário. Com Dilma, assim como ocorreu na era Lula, era mais fácil e bem mais barato conseguir milhões para comprar um jatinho particular do que um punhado de reais para abrir ou modernizar um pequeno negócio. Parte do enfraquecimento de Dilma e do PT, já bastante em evidência durante os protestos de junho de 2013, pode ser atribuído ao descontentamento de grupos que formavam a base tradicional do partido. Incomodados com a frustração das promessas de ética na política (sim, o PT prometia isso ao surgir) e de políticas públicas em favor da maioria da população, passaram a repudiar a estrela vermelha milhões de brasileiros que se sentiram enganados, iludidos. Entre eles, assalariados urbanos, profissionais liberais, servidores públicos, pequenos empresários, agricultores familiares e estudantes.
7) O impeachment de Dilma é uma encenação?
Não. A linguagem empolada dos parlamentares, suas pendências criminais, os discursos demagógicos diante das câmeras que os popularizarão na TV e na internet e as frequentes baixarias podem transmitir exatamente esta ideia: de uma farsa a cargo de fanfarrões. Tudo isso deixa evidente como estamos mal em termos de representação política. Mas, em que pesem as aparências, não se trata de uma encenação. Nem de um hospício, como chegou a dizer o presidente do Senado, Renan Calheiros. Ao seu modo, o que o Congresso faz é concretizar o desejo da grande maioria dos brasileiros, que não vê mais em Dilma Rousseff a capacidade de ocupar a Presidência da República. Dilma e o PT chegaram a essa situação porque foram incapazes de fazer autocrítica e corrigir os rumos quando ainda havia tempo para isso. Resta saber se Michel Temer, que se torna presidente sendo acusado de “golpista” por quem era seu aliado até outro dia, saberá se proteger do vírus que costuma fazer os poderosos caírem do cavalo – o vírus da arrogância, que os leva a acreditar cegamente nas doces mentiras trazidas pelos bajuladores e a rejeitar verdades que com frequência podem ser inconvenientes.
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Só discordo de um detalhe, não só o Senado Federal como também a Câmara dos Deputados estão mais próximos de um hospício que de um órgão de representação do povo.
Hospício ou, talvez, de uma cova de ladrões, ou de uma penitenciária, de uma boca de tráfico, da caverna de Ali Babá…
E o Congresso não está preocupado com o desejo da maioria dos brasileiros, não. O Congresso quer mais é que o povo se dane. Preocupados estão em fazer média com a população, em se dar bem.
É verdade, vide o impeachment! Iniciado pelo Cunha!
Há males que vem para o bem, já dizia meu avô, o velho deitado.