Para a procuradora da República Anna Carolina Maia Garcia, que investiga os supersalários, a pressão das ruas é fundamental para que Câmara e Senado suspendam o pagamento de megacontracheques e cobrem de volta os valores recebidos indevidamente pelos funcionários das duas Casas. Segundo a procuradora, os cidadãos estão mais convencidos da necessidade de fiscalizar os poderes e utilizam as ferramentas de transparência sem a necessidade de mediadores.
“O cenário é outro. Hoje há uma pressão maior da sociedade em torno dessas medidas que moralizam”, disse ela, em entrevista ao Congresso em Foco. “Não é só a pressão das ruas. O interesse do brasileiro mudou, ele evoluiu. Isso tudo não é consciência adquirida há dois ou três meses.” Para a procuradora, a ação de órgãos públicos e da imprensa também contribui para a evolução de toda a sociedade.
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Anna Carolina também critica a visão de setores do funcionalismo que buscam o enriquecimento no serviço público. “No serviço público, você tem a segurança e, em compensação, tem a certeza de que jamais você vai ser uma pessoa rica. O serviço público não dá pra deixar ninguém rico”, afirma.
MPF quer devolução de R$ 3 bilhões em supersalário
Veja os principais trechos da entrevista, concedida na semana passada:
Congresso em Foco – O que a senhora achou da decisão do TCU de mandar cortar os salários e ainda determinar a devolução dos pagamentos irregulares?
Anna Carolina Maia Garcia – Fiquei muito feliz. Ela coincide em mais de 90% com aquelas ações que tínhamos proposto em 2011. Eu coloquei algumas outras questões que não foram objeto da auditoria do TCU, mas, na grande maioria, foi coincidente a determinação com aquilo que eu esperava obter do Judiciário.
E a efetividade da decisão? O presidente do Senado, Renan Calheiros, está prometendo cobrar “imediatamente”. Há dois anos, quando vocês obtiveram uma liminar com o mesmo teor, mas sem a devolução de valores, o Senado e a Câmara recorreram.
O TRF confirmou o agravo de instrumento deles e suspendeu liminarmente. A mudança de postura talvez tenha sido fruto de alguma evolução no sentido da prestação de contas à sociedade. Ele não era presidente do Senado à época da liminar. Fico feliz, porque ele evoluiu, né? Se vai cumprir efetivamente, é um bom sinal de que as coisas agora talvez caminhem de uma forma mais coerente com aquilo que a Constituição determina.
Como essas irregularidades vieram à tona?
Esse processo é fruto dos atos secretos do Senado. Em 2009, identificamos que não só os atos não eram publicados, mas também não existia qualquer espécie de controle acerca de folha de pagamento do Senado pelo controle interno da própria Casa. Fizemos em junho de 2009 uma representação ao TCU, pedindo uma auditoria em toda a folha de pagamento, até então não auditada nem por órgão externo ou interno. Em razão das irregularidades que víamos nos atos secretos, poderiam existir diversos outros atos na esfera de pagamento. Fizemos essa representação e, em agosto de 2009, o TCU abriu essa tomada de contas, que deu ensejo à auditoria e nos encaminhou o resultado, que, de fato, comprovou várias irregularidades. De posse dessa análise técnica, ajuizamos dez ações [oito contra o Senado, uma contra a Câmara e outra contra o Poder Executivo], sobre gratificações, teto salarial… Envolviam não só o pagamento irregular, mas a efetividade dos controles, como o interno. Até 2011, eles continuam sem poder auditar a folha de pagamento. Pedimos que eles reestruturassem o controle interno, com cargos efetivos, e que fosse aberta a folha de pagamentos a eles, o sistema Ergon. Entramos com ação pedindo o controle de jornada, para que o Senado exigisse a presença física do servidor, que não pudesse ser com senha em computador, algo que pode ser repassado a terceiros. Você também não poderia ter mais de duas horas extras diárias. Só poderia ser paga essa hora extra se tivesse de fato controle de ponto. Para saber se a pessoa trabalhou as horas devidas.
Para cada uma das nove irregularidades, uma ação?
Isso. Salvo engano, o TCU não fez sugestão a respeito da forma de controle da jornada. Ele foi e indicou: as pessoas estão recebendo irregularmente, porque eram muitas horas extras. Eu fiquei feliz porque infelizmente a Justiça… Embora as ações tenham sido em 2011, a grande maioria delas sequer foi julgada, e são matérias de direito. Também tem um problema da lentidão da Justiça. Em 2011, assim que propusemos essas ações judiciais, encaminhei-as ao TCU para poder subsidiar o trabalho do TCU análise do mérito. Isso talvez tenha contribuído para a análise da matéria jurídica envolvida. Fiquei extremamente satisfeita e espero realmente que a decisão seja cumprida porque coincide com o anseio da sociedade.
Nenhuma ação foi julgada até hoje?
Só teve uma, a do controle das horas extras e frequência. O juiz da 15ª Vara Federal julgou improcedente e nós recorremos ao tribunal. As outras todas estão pendentes de julgamento.
E em três, houve liminares derrubadas. Os tribunais de contas são chamados de tribunais de “faz de conta”, mas foram mais rápidos que o Judiciário. Como a senhora vê isso?
Andou mais rápido o TCU que a Justiça. E olhe que, se teve um processo que eu agilizei, foi esse. À medida que fomos recebendo informações, as ações já foram ajuizadas. É uma matéria de Direito, não tem que ouvir testemunhas.
Por que a senhora tentou apressar esse processo?
Porque é mais fácil de ser resolvido. Não envolve ouvir muitas pessoas. Para se avaliar quais são as parcelas que entram ou não no teto, é caso de análise jurídica. É de mais fácil solução. Complexo é, por exemplo, uma análise de um projeto de engenharia, de meio ambiente, que não é minha área.
E os prejuízos causados também motivaram a pressa?
É verdade que existe controvérsia quanto ao dever de devolução. Pra você evitar isso, quanto mais rápido fosse [suspenso], menos dúvida você teria que deveria haver ressarcimento. Era minimizar a ocorrência de novos danos.
O que a senhora acha da devolução dos valores?
Corretíssima. Não foi objeto das ações nossas porque, seu peço a devolução, tenho que botar a pessoa como ré, o servidor. Isso implicaria uma ação com não sei quantas mil pessoas. Isso é o maior entrave que existe ao desenvolvimento de um processo. Eu priorizei estancar o problema. Achei que voltar a estratégia para a correção da ilicitude, a gente conseguisse de forma mais rápida evitar que aquilo continuasse a ser pago. Paralelamente a isso, representamos ao TCU para que o tribunal fizesse essa individualização dos valores que deveriam ser devolvidos. E foi o que ele fez. Nesse intervalo, houve um reajuste dos salários [plano de carreira de 2010, da Câmara e do Senado]. Aquela listagem inicialmente apresentada não estava mais a correta. Teve um incremento de salário de 20% e poderia ter mais gente.
Em 2009, o maior salário era de R$ 45 mil. Em 2011, tinha de R$ 55 mil, R$ 100 mil…
É porque eles tiveram reajuste em 2010 e, salvo engano, em 2012.
Acha que esse pedido de devoluções pesou na decisão do TCU sobre o Senado?
Espero que tenha contribuído. Temos uma parceria muito forte com o TCU.
O sindicato dos funcionários diz que houve boa-fé dos servidores. Houve?
A partir da propositura das ações do Ministério Público questionando essas parcelas [2011], não se pode mais alegar boa-fé. As pessoas já tinham conhecimento que estava sendo discutida na Justiça. Do mesmo jeito, estavam sujeitas a pararem de receber. Também teriam de restituir esses valores.
No mesmo ano de 2011, o TCU deu decisão para que os cargos comissionados, usados para criar supersalários no Congresso, fossem considerados no cálculo do teto. Em 2009, houve questionamento do próprio Congresso sobre o tema. Alguns servidores recorreram dessa decisão inclusive.
Não tem o menor sentido um cargo comissionado ficar fora do teto.
Isso só existe na Câmara e no Senado?
É uma coisa muito esdrúxula. Essas parcelas que o TCU incluiu no teto não oferecem dúvida.
Mas o sindicato diz que os funcionários receberam de boa-fé e diz que eles não são responsáveis pela política salarial da administração da Câmara e do Senado. Diz que eles não têm que devolver nada e já recorreram até do simples corte futuro. A pedido de servidores, o ministro Raimundo Carreiro suspendeu a decisão referente à Câmara até o julgamento desse recurso.
Aí, é um problema no Tribunal de Contas. Tanto o presidente da Câmara como do Senado podem editar essas medidas mencionadas pelo TCU não só em cumprimento à decisão do TCU, mas como autoridade administrativa. Eles têm autonomia para rever os atos da administração viciados, errados, passíveis de correção.
Se eles quiserem, não precisam ficar presos à decisão do TCU?
Não precisam. Se eles quiserem cumprir a ordem do TCU, podem adotar de ofício, mesmo que a decisão do TCU seja suspensa. Podem adotar todas as providências. Isso está dentro da autonomia administrativa.
Até para não haver mais adiamentos, não é?
Isso. É para evitar a perpetuação de um problema que há anos está sendo noticiado. Chegou num ponto em que não tem sentido postergar isso.
Para devolver tudo, serão usadas parcelas de 10% dos salários, no máximo R$ 2.800. Pode levar quatro anos, dez anos, dependendo do tamanho da dívida. Oitenta e três funcionários gastarão seis anos para pagar R$ 213 mil cada Há gente já aposentada. Como vai ser essa operação?
São duas coisas distintas. A restituição está sujeita a esse limite, certo? Esses 83 que você menciona se referem ao número à época da auditoria, de 2009. É possível que haja pessoas nessa situação que não foram listadas. O mais importante é corrigir isso pra frente. Na folha de pagamento deste mês, tem que evitar que sejam pagas parcelas acima do teto, que não são devidas. Esse é o foco.
Ainda do ponto de vista da correção, também deverão devolver rendimentos extras essas pessoas que não foram listadas na auditoria mas que também receberam supersalários e outros benefícios ilegais? Como fica isso?
É o poder de autotutela. Eu tomei conhecimento de que Fulano fez irregularidade “X’, mas verifiquei que irregularidade se repete em cem pessoas. É meu dever corrigi-la em relação às noventa e nove.
Então, tem que cobrar tudo de volta, inclusive de quem não está na auditoria?
Isso, porque isso é um dever no sentido de bem zelar da sua administração. O TCU identificou que alguns tinham jornada irregular. O Senado tem que adotar providência para que todos cumpram a jornada estabelecida pelo TCU, e não só os que estão listados na auditoria.
Tanto para frente, quanto para trás, para cobrar?
Tanto para frente quanto para trás.
A senhora pretende recomendar ao Congresso que aplique as decisões do TCU mesmo que elas sejam suspensas e ainda que em desfavor de servidores não listados em auditoria?
Isso é uma coisa bem básica. É alertar sobre a coisa mais básica que existe. Aí tornaria desnecessária essa diligência. Mas, se não for feito, certamente nós iremos alertá-los dessa providência. Pode ser que, neste 30 dias, o Senado apresente ao TCU documento dizendo que isso já foi feito. Mas, havendo boa vontade, tenho certeza de políticas para adequar as condutas [serão tomadas]. O principal é adequar as condutas. O ressarcimento vai ser a conta-gotas, porque 10% é muito pouco, mas já é um avanço. Isso é que, mês a mês, causa milhões de prejuízos aos cofres públicos.
A senhora acha que o Henrique Alves, na Câmara, e o Renan Calheiros, no Senado, vão cumprir as decisões do TCU?
Acho que sim. Estou esperançosa que isso aconteça. O cenário é outro. Eles não estavam à frente das casas à época da liminar. Hoje , há uma pressão maior da sociedade em torno dessas medidas que moralizam. É bem possível que cumpram até num prazo menor que o estabelecido. O cenário é outro.
A pressão das ruas está pesando?
Não é só a pressão das ruas. O interesse do brasileiro mudou, ele evoluiu. Isso tudo não é consciência adquirida há dois três meses. É uma consciência que vem sendo aperfeiçoada ao longo do tempo. A forma de controle e transparência dos órgãos públicos melhorou. Isso permite que o cidadão esteja mais próximo do modelo de gestão e da administração. ele permite que o cidadão possa fazer esse papel de controle – que é de cada um de nós – de forma direta, dependendo menos dos outros órgãos. A mídia também tem sua parcela. É uma evolução da sociedade como um todo.
Auditoria recente encontrou supersalários em 300 órgãos federais no Brasil, mas 90% dos funcionários estavam na Câmara e Senado…
Hoje, é quem concentra os maiores salários. A Câmara e o Senado têm as melhores remunerações para os servidores.
O ministro Walton Alencar, do TCU, afirmou em plenário que acha que mereceria ganhar mais que o valor que recebe. Mas ele disse que isso não pode ser feito por uma questão de pacto nacional. O teto tem uma função social e moral ou é só questão contábil e burocrática?
Tem função essencial. O serviço público não pode ser um instrumento para as pessoas enriquecerem a ponto de constituírem patrimônios ilimitados. Não é isso. O teto é uma forma a mais de controle, assim como o subsídio [pagamento de rendimento a servidor, autoridade ou político em parcela única no contracheque, sem os penduricalhos, que costumam justificar os supersalários]. Até para o Estado se organizar e se programar com suas despesas de pessoal, isoladamente as mais representativas [Só a União gasta mais de R$ 200 bilhões com o funcionalismo]. Não é que o teto não exista. Ele não existe para muitos órgãos. Para o Ministério Público Federal, ele existe: aqui as pessoas não ganham acima do teto. Você ganha em situações de acumulação de cargos, em trabalho eleitoral. O teto existe é para todos – e tem de ser. Todos têm de obedecer. Ele é essencial para garantir uma higidez das finanças do Estado.
Mas funcionários costumam dizer: “Eu mereço ganhar mais. Vocês, da iniciativa privada, não têm limites de ganhos. Se eu estivesse na Volkswagen, eu ganharia R$ 50 mil…”
Não há um paralelo. O serviço público é um conjunto de fatores que o torna especial. A iniciativa privada, ao mesmo tempo que lhe permite valores mais expressivos de salário, de bonificação, traz também uma incerteza em relação à estabilidade. É um segmento que se caracteriza eminentemente pela instabilidade do vínculo. É o inverso do serviço público. No serviço público, você tem a segurança e, em compensação, tem a certeza de que jamais você vai ser uma pessoa rica. O serviço público não dá pra deixar ninguém rico. Você ter uma remuneração justa é uma coisa. Imaginar que vai ter o melhor dos mundos, a segurança do serviço público e o salário da iniciativa privada (para quem está no topo)… Na área jurídica, os advogados ganham milhões de reais, enquanto o salário do procurador geral é de R$ 28 mil. O salário dele não aumenta porque ele tem um processo gigante ou são vários réus, ou a causa envolve um valor muito expressivo. O salário não vai ser alterado se ele conseguir o processo. Se der certo ou se não der certo.
Não é para enriquecer, mas estão enriquecendo, né?
É por isso que temos essas formas de controle, o teto, o subsídio. É uma tentativa de evitar isso para que as pessoas não ganhem valores que caracterizam… Enriquecer como pessoa abastada como são as pessoas do topo da iniciativa privada. O topo do serviço público não pode ser o topo da iniciativa privada. Se tiver, tem alguma coisa errada. Não pode ganhar o que ganham os advogados mais bem pagos do país. São carreiras e regimes distintos, que fazem sentido dentro do sistema.
O ministro Walton Alencar afirmou que os servidores do Congresso foram beneficiados com “enriquecimento ilícito”. A senhora concorda?
Enriquecimento ilícito é ganhar um valor que não lhe é devido. Então, para que aqueles que estão ganhando acima do teto, pode-se caracterizar como enriquecimento ilícito. Se recebeu sem trabalhar, enriqueceu sem a contraprestação.
O sindicato dos servidores (Sindilegis) passou a dizer que os funcionários tem direito a receber supersalários por meio de cargos comissionados porque os promotores do Ministério Público e os juízes eleitorais recebem jetons à parte.
Coisas absolutamente distintas. O exercício da função eleitoral não tem nada a ver com cargo comissionado. A função eleitoral é acumulação de funções. Se tem os ministros do Supremo e alguns, obrigatoriamente, têm que compor o plenário do TSE [Tribunal Superior Eleitoral]. Ele é obrigado a assumir a função. Não pode dizer: “Eu não exerço a função eleitoral”. Não tem a situação em que os 11 ministros do STF rejeitem a função. É uma obrigação. Há um entendimento do Supremo – e essa questão não é tão tranquila – que, como você acumula cargos permitidos pela Constituição, você poderia acumular a remuneração. Não existe trabalho de graça.
Cargo comissionado não é acumulação de cargo. O cidadão não exerce o seu cargo originário e o cargo comissionado. Ele exerce o cargo comissionado. No caso eleitoral, a pessoa acumula a função de membro da magistratura e a função eleitoral.