Pela segunda vez em 24 anos, o Senado cassou nesta quarta-feira (31) o mandato de um presidente da República. Por 61 votos a 20 (veja como os senadores votaram), foi aprovado o processo de impeachment de Dilma Rousseff, primeira mulher eleita para a Presidência da República, em 2010, e reeleita em outubro de 2014 com 54 milhões de votos. Afastada do cargo desde 12 de maio, Dilma será substituída em definitivo por seu vice, Michel Temer (PMDB), que ocupava o Palácio do Planalto de maneira interina. A aprovação do processo dependia do apoio de pelo menos 54 (dois terços) dos 81 senadores. Do contrário, o caso seria arquivado. Temer tomará posse ainda nesta quarta-feira.
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Em uma segunda votação, por 42 votos a 36 e 3 abstenções, o Senado garantiu a Dilma o direito de exercer funções públicas. Se essa mudança não tivesse sido aprovada, a petista estaria proibida de ocupar qualquer cargo público no período de oito anos. O fatiamento das punições foi proposto por aliados da agora ex-presidente e teve o apoio de senadores do PMDB.
Veja como os senadores votaram na inabilitação de Dilma
O acordo foi costurado pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que votou pela perda do mandato e pela manutenção do direito da agora ex-presidente exercer funções públicas. “No Nordeste, costumam a dizer uma coisa com a qual eu não concordo: ‘além da queda, coice’”, discursou, justificando o que seria uma forma de punir Dilma Rousseff com ponderação.
A decisão desagradou ao DEM e ao PSDB, que ameaçam recorrer ao Supremo Tribunal Federal contra a decisão. “Nós estamos aqui aplicando a Constituição. A Constituição não pode ser reformada por uma votação aqui no Senado, a Constituição diz com toda clareza que essas penas devem ser aplicadas conjuntamente”, defendeu o tucano Aloysio Nunes Ferreira (SP), líder do governo no Senado.
Crime x golpe
PublicidadeOs parlamentares concluíram que Dilma Rousseff cometeu crime de responsabilidade ao praticar as chamadas pedaladas fiscais (o uso de dinheiro dos bancos federais em programas de responsabilidade do Tesouro Nacional) e ao editar decretos orçamentários suplementares sem a autorização do Congresso em 2015. Basearam-se no artigo 85 da Constituição Federal, que define como crime de responsabilidade a violação de normas orçamentárias. Dilma nega feito qualquer violação das regras legais e atribui a sua queda a um golpe tramado pelo seu antigo vice, Temer, e pelo ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) com o apoio de setores da oposição e da mídia.
O afastamento de Dilma guarda semelhanças com o ocorrido em 1992, quando o hoje senador Fernando Collor (PTC-AL) perdeu o mandato num contexto de grave crise econômica, baixa popularidade, incapacidade de obter maioria no Congresso e de grande desgaste causado pelo envolvimento do governo em escândalos de corrupção.
Na votação de hoje, o ponto mais polêmico foi o destaque, solicitado por aliados da petista, para deliberar em separado sobre a inabilitação de Dilma para o exercício de funções públicas nos próximos oito anos. O próprio Collor estranhou, no plenário do Senado, que a Casa que o cassou, negando-lhe tal direito, pudesse cogitar de tratar Dilma de modo diferente. Líderes do PSDB e do DEM se manifestaram contra o fatiamento da votação, determinada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, que presidiu o julgamento.
Este foi o sexto e derradeiro dia do julgamento, iniciado no último dia 25 com o depoimento das testemunhas de acusação e defesa. Anteontem, a própria Dilma compareceu ao Senado para se defender. Fez um discurso por mais de 30 minutos e respondeu a perguntas dos senadores durante quase 14 horas.
Decretos e pedaladas
O processo começou em dezembro do ano passado, quando Eduardo Cunha – que é acusado de manter no exterior milhões de dólares originários de propinas – deu andamento ao pedido de abertura do processo de impeachment de Dilma apresentado pelos advogados Hélio Bicudo, Janaína Paschoal e Miguel Reale Jr, após receber a notícia de que o PT votaria pela sua cassação no Conselho de Ética da Câmara. Antes, ainda aliado do Palácio do Planalto, Cunha havia recusado vários pedidos de impeachment contra Dilma. Ao dar início ao processo que resultaria na deposição da presidente, Cunha teve o cuidado de retirar da acusação toda a parte referente à corrupção, em especial no que diz respeito à participação de Dilma Rousseff no desvio de recursos na Petrobras. O chamado petrolão, investigado pela Operação Lava Jato, lançou suspeitas sobre dezenas de políticos do PT e de partidos aliados, incluindo o próprio Cunha, o PMDB de Temer e alguns dos principais líderes da oposição.
Alegando que a Constituição Federal impede que o presidente da República seja responsabilizado por fatos anteriores ao seu mandato, o Ministério Público jamais tomou qualquer iniciativa para investigar a participação de Dilma no petrolão. A oposição também ignorou essa parte da acusação feita por Bicudo, Janaína e Reale Júnior. Assim, o processo de impeachment se concentrou na discussão de atos orçamentários praticados em 2015.
Um dos crimes apontados pelos juristas é a edição de três decretos de crédito suplementares pelo governo Dilma sem a autorização do Legislativo. De acordo com a acusação, os decretos estavam em desacordo com a meta fiscal que vigorava na época. A defesa da petista afirma que os decretos não criavam novas despesas e que havia um projeto de revisão da meta (PLN 5/2015) em tramitação que acabou sendo aprovado pelo Congresso Nacional.
O outro argumento acusatório trata do que ficou conhecido como pedaladas fiscais, um atraso no repasse de recursos do Tesouro aos bancos públicos que operavam políticas sociais como o Plano Safra. Segundo a acusação, o volume em atraso foi histórico e contribuiu para o governo maquiar as contas públicas, ocultando sua péssima financeira, além de reproduzir uma prática utilizada muitas vezes nos anos anteriores, manipulando números que contribuíram para passar uma ideia falsa à população e facilitar o caminho para a reeleição de Dilma. A defesa da presidente afastada disse que essa era uma prática comum e os valores foram repostos aos bancos.
A decisão dos senadores é baseada em parecer elaborado pelo senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), relator da comissão especial do impeachment. Segundo o relator, Dilma agiu com “irresponsabilidade” em relação à política fiscal. “Os fatos criminosos estão devidamente descritos, com indícios suficientes de autoria e materialidade. Há plausibilidade na denúncia e atendimento aos pressupostos formais”, diz do relatório. “A denúncia apresenta os requisitos formais exigidos pela legislação de vigência, especialmente pela Constituição Federal, para o seu recebimento”, acrescentou.
Em seu parecer, Anastasia rechaçou as acusações dos governistas de que o impeachment se trata de um golpe. “Nunca se viu golpe com direito a ampla defesa, contraditório, com reuniões às claras, transmitidas ao vivo, com direito à fala por membros de todos os matizes políticos, e com procedimento ditado pela Constituição e pelo STF”, escreveu. Ao todo, o processo de impeachment de Dilma durou nove meses – cinco a mais que o de Collor.
O calendário da crise:
Março de 2014 – início da Operação Lava Jato mergulha o primeiro governo Dilma em crise, com prisão de dirigentes da Petrobras e acusações contra agentes políticos ligados ao PMDB, ao PT e ao PP, principais partidos da base de apoio da presidente.
Outubro de 2014 – Dilma é reeleita com 54,5 milhões de votos.
Fevereiro de 2014 – adversário político de Dilma, Eduardo Cunha é eleito presidente da Câmara ao derrotar o candidato do Planalto, Arlindo Chinaglia (PT-SP).
Março de 2015 – o procurador-geral da República divulga a lista de parlamentares e outras autoridades suspeitas de participação no esquema de corrupção da Petrobras. Dilma é alvo das primeiras manifestações de “panelaço” durante pronunciamento em rede nacional de rádio e TV.
Abril de 2015 – Polícia Federal prende o tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, acusado de receber propina do esquema de corrupção na Petrobras.
Outubro de 2015 – TSE aceita acusação do PSDB e abre processo que pode levar à cassação da chapa Dilma-Temer. TCU reprova as contas do governo de 2014.
Novembro de 2015 – Polícia Federal prende o então líder do governo no Senado, Delcídio do Amaral (PT-MS), acusado de tentar comprar o silêncio do ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró, que estava preso em Curitiba.
Dezembro de 2015 – após a recusa de petistas em apoiá-lo em processo no Conselho de Ética, Eduardo Cunha aceita pedido de impeachment de Dilma.
Fevereiro de 2016 – Polícia Federal prende o marqueteiro João Santana e sua esposa, Mônica Moura, responsáveis pela campanha à reeleição de Dilma, sob a acusação de caixa dois nas eleições de 2010.
Março de 2016 – é revelado o teor da delação premiada de Delcídio, solto em fevereiro após colaborar com as investigações. O então senador centra fogo em Dilma e no ex-presidente Lula. O ex-petista diz que Dilma tinha conhecimento de irregularidades na Petrobras e que Lula lhe pediu para oferecer propina ao ex-diretor da estatal Nestor Cerveró para tentar obstruir as apurações da Lava Jato. Para evitar eventual prisão de Lula e tentar conter a crise, Dilma nomeia seu antecessor ministro da Casa Civil. No dia 15, o juiz Sérgio Moro divulga áudio entre Lula e Dilma. STF suspende a nomeação do ex-presidente como ministro. No mesmo mês, o país tem as maiores manifestações pró-impeachment contra Dilma. Movimentos sociais e partidos aliados da presidente reagem com marchas contra o “golpe”.
Abril de 2016 – com 367 votos favoráveis, 137 contrários e 7 abstenções, o Plenário da Câmara autoriza a instauração de processo de impeachment de Dilma.
Maio de 2016 – por 55 votos a 22, o Senado decide afastar Dilma do mandato. Em seu lugar, assume interinamente a Presidência o seu vice, Michel Temer.
Agosto de 2016 – no dia 10, os senadores aprovam relatório da comissão especial, transformando a presidente afastada em ré. No dia 25, começa o julgamento de Dilma com depoimentos de testemunhas de defesa e acusação. No dia 29, a presidente vai até o plenário para se defender pessoalmente das acusações em sessão que durou mais de 14 horas. No dia 31, o Senado decide cassar o mandato da petista por crime de responsabilidade.
Veja os dois principais pontos da argumentação de Anastasia:
Decretos orçamentários
“Todos os seis decretos arrolados na denúncia são potencialmente deficitários porque contam com essas duas origens de recursos: superávit financeiro e excesso de arrecadação, este último tido como conjunturalmente inapto para abertura desses créditos porque, no momento em que foram abertos, tal excedente, do ponto de vista fiscal, em verdade não existia. Vale lembrar que, em 22/07/2015, o Poder Executivo já reconhecia a ausência de espaço fiscal. Tomados isoladamente, três dos decretos examinados se mostram neutros em relação ao resultado primário contido na lei orçamentária e três apresentam repercussão negativa, no valor total de R$ 977,8 milhões, sobre a consecução da meta de resultado primário de 2015, também no plano do orçamento. Nesses termos, ao menos três dos decretos em comento não teriam observado a condição exigida pelo artigo 4º da Lei Orçamentária Anual (LOA) 2015. Deve-se destacar, contudo, que dois dos três decretos tidos como neutros utilizam-se de excesso de arrecadação de receitas primárias. Tendo sido configurada, contudo, a inexistência de espaço fiscal, a utilização do excesso de arrecadação merece reparos. Significa dizer que, sob interpretação mais restritiva, não apenas três, mas cinco decretos apresentam repercussão negativa, no valor consolidado de R$ 1.814,4 milhões, relativamente à obtenção da meta de resultado primário, em inobservância à condicionante fiscal gravada no artigo 4º da LOA 2015.”
Pedaladas fiscais
“Quanto à contratação de operações de crédito, a suposta ilegalidade teria decorrido, principalmente, da inobservância do disposto no artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o qual veda a realização de operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo. É importante recuperar que, em 2014, conforme apontado pelo TCU, as operações de crédito contestadas teriam permitido que a dívida pública federal fosse subdimensionada em R$ 40,2 bilhões e o resultado primário do exercício em R$ 7,1 bilhões. Demais disso, a maior parte dessas dívidas teria sido constituída em desacordo coma LRF, na medida em que esta lei veda operações de crédito entre os entes da Federação e as instituições financeiras por eles controladas. Em que pese essa redução verificada em dezembro de 2015, a elevação do passivo da União ao longo do ano reforça os indícios de crime de responsabilidade narrados na denúncia, tendo em vista que essas operações de crédito já vinham sendo questionadas pelo TCU antes da apreciação final das contas presidenciais de 2014. O aumento do passivo entre dezembro de 2014 e novembro de 2015, registre-se, foi de R$ 6,5 bilhões.”