Fábio Góis
O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), fez há pouco na tribuna do plenário um discurso histórico-literário em uma sessão não deliberativa esvaziada, presidida por Mão Santa (PMDB-PI), e em uma segunda-feira (24) sem movimento na Casa. O pronunciamento, com referência especial ao escritor Euclides da Cunha (1866/1909), foi o primeiro feito por Sarney depois que o Conselho de Ética, capitaneado por seu aliado Paulo Duque (PMDB-RJ), reiterou, na última quinta-feira (20), o arquivamento de 11 pedidos de investigação apresentados pela oposição contra o peemedebista.
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O discurso de Sarney teve caráter de conveniência: por meio de sua fala, Sarney tentou dar ares de normalidade à atividade legislativa da Casa, usando como pretexto a sessão solene que homenageou, também na última quinta-feira, em plenário, os cem anos da morte de Euclides da Cunha, autor do clássico Os Sertões. Até o quorum parecia ter sido encomendado: além do peemedebista Mão Santa, assistiram o resgate histórico apenas os senadores Eduardo Suplicy (PT-SP), Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), Geraldo Mesquita (PMDB-AC) e Roberto Cavalcanti (PRB-PB).
Na menção aos feitos de Euclides, Sarney citou nomes como o ex-presidente Getúlio Vargas, o general Cândido Rondon, e o filósofo francês Auguste Comte, desfilando seus conhecimentos históricos e literários. Mas a presença de Suplicy estragou as intenções de Sarney, que até então havia recebido alguns apartes de reverência, em que senadores elogiaram a homenagem com cinco dias de atraso. O senador petista pôs o dedo na ferida – a crise que, desde fevereiro, quando Sarney tomou posse para o seu terceiro mandato como presidente do Senado, praticamente paralisa as atividades legislativas e o tem como protagonista.
No aparte, Suplicy mencionou a cobrança de um colega de corpo docente na faculdade de administração da Universidade de São Paulo, que queria um posicionamento mais efetivo do petista frente à crise do Senado. “Ele me disse: ‘Eduardo, você precisa ir ao plenário e dizer J’accuse’ [Eu acuso]”, reproduziu Suplicy, recorrendo ao libelo literário em que o jornalista e escritor Èmile Zola acusa o exército francês de anti-semitismo pela perseguição ao capitão Alfred Dreyfus, que era judeu, pelo exército francês (com o título de “Carta a Félix Faure [então presidente da França]”, Zola publicou o artigo no periódico francês L’Aurore, do qual era editor).
“Na última semana o nosso líder mostrou de maneira dramática, a posição da bancada por seu afastamento da presidência”, disse Suplicy, lembrando o episódio em que o líder do PT no Senado, Aloizio Mercadante (SP), revogou a decisão de deixar o posto, alegando que não podia “dizer não” ao presidente Lula. O petista voltou a condenar a conduta do Conselho de Ética, dizendo que a manutenção dos arquivamentos foi decidida por “uma maioria não muito significativa”.
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“Senador Sarney, a situação do Senado não está tranquila, não está resolvida”, completou Suplicy, para quem a sociedade ainda quer explicações sobre as diversas denúncias . “O povo brasileiro deseja ver [as suspeitas] esclarecidas.”
Percebendo que Suplicy causava desconforto para Sarney, Mão Santa interveio: “Senador Suplicy, o senhor está há quanto tempo na Casa? O regimento diz que o aparte é dois minutos”, interpelou. “Vossa excelência sabe ser generoso, e eu vou concluir”, respondeu Suplicy, que continuou sua fala por cerca de cinco minutos, com nova ênfase à situação de Sarney diante da crise institucional.
Da tribuna, Sarney observou o colega petista e, quando este encerrou a intervenção, votou à carga. “Eu acho que vossa excelência feriu uma regra, a memória de Euclides de Cunha. Eu, como membro da Academia Brasileira de Letras, não estava presente à sessão de homenagem, e faço agora a minha homenagem a Euclides da Cunha”, disse Sarney, subindo o tom contra o colega e acrescentando que a deselegância não era do feitio do petista. Sarney também fazia referência ao regimento interno, que, além do tempo, impõe correlação de tema ao aparte. “A não ser que vossa excelência, movido por uma paixão política maior, deixe de respeitar as regras mais comezinhas da educação e da convivência parlamentar.”
Depois do pronunciamento de Sarney, senadores contrários à permanência do peemedebista na presidência chegaram ao plenário e reforçaram as críticas de Suplicy. Entre eles, Cristovam Buarque (PDT-DF) e Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), que foram ao plenário de maneira a deixar claro que a normalidade pretendida por Sarney no discurso ainda não voltou ao Senado.