Mário Coelho
Confirmando a hipótese que já se apontava após o voto da ministra Ellen Gracie favorável à aplicação da Lei da Ficha Limpa nestas eleições, o julgamento do recurso do ex-governador Joaquim Roriz, candidato ao governo pelo PSC, terminou empatado. O presidente do STF, Cezar Peluso, acompanhou os votos dos que consideraram que a ficha limpa não deveria se aplicar este ano, retroagindo para alcançar casos de renúncia e condenação anteriores à sua sanção. Com um empate, surge agora a polêmica: qual decisão prevalecerá? É o que os ministros discutem agora.
Com base na Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/10), Roriz foi barrado por conta da renúncia ao mandato de senador, em 2007, para escapar de um processo por quebra de decoro parlamentar.
Cármen Lúcia, Ellen Gracie, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski acompanharam o relator do caso, Carlos Ayres Britto, para negar o recurso. Os ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes, José Dias Toffoli, Marco Aurélio Mello e Cezar Peluso entenderam que o artigo 16 da Constituição Federal deve ser aplicado, tornando as novas regras de inelegibilidade aplicáveis apenas a partir das eleições de 2012 em razão do chamado “princípio da anualidade”, segundo o qual normas que alteram o processo eleitoral só podem valer se estiverem em vigor pelo menos um ano antes das eleições.
A Lei da Ficha Limpa foi sancionada em 4 de junho pelo presidente Lula, uma das razões que levaram outro ministro, Gilmar Mendes, a aceitar o recurso de Roriz, por meio de um longo voto, com 120 páginas, recheado de críticas à nova legislação. Quem está votando agora é o presidente do STF, Cezar Peluso.
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Último a votar, Peluso afirmou que a corte não poderia se abster de analisar a lei como um todo. Para ele, existe vício constitucional na aprovação da ficha limpa. Na quarta-feira (22), ele defendeu que a emenda do Senado que modificou o mérito do projeto devendo, portanto, voltar à Câmara para nova votação. Ele, no entanto, foi vencido nesta questão de ordem.
No seu voto, ele defendeu que a ficha limpa deve ser aplicada somente em 2012 pois altera o processo eleitoral. “A norma que altera as normas de inelegibilidade é a que tem a maior capacidade de mudar as eleições”, afirmou. Ele ponderou, ainda, que é preciso analisar as causas de inelegibilidade. Na visão dele, em alguns casos, pode ser configurado como pena. Para Peluso, a alínea que trata da renúncia é um desses casos. O voto dele, no final, foi para decretar a ficha limpa aplicável a partir de 2012. A renúncia, para ele, deve valer apenas para casos futuros.
Moralmente condenável
Ellen Gracie citou extensivamente os pressupostos encampados pelo STF no julgamento da constitucionalidade da Lei Complementar 64, e rejeitou outro argumento da defesa de Roriz: o da suposta inconstitucionalidade de uma lei (a da Ficha Limpa) que torna agora inelegível alguém que renunciou ao mandato muito antes de ela entrar em vigor. Segundo a defesa de Roriz, a renúncia do então senador foi um “ato juridicamente perfeito” e “moralmente aceito”.
A ministra Ellen Gracie argumentou que, sim, a renúncia foi um ato lícito e de acordo com as normas legais e constitucionais em vigor em 2007, quando Roriz abdicou do mandato parlamentar para evitar uma investigação que seria aberta pelo Senado. Ela ressaltou, no entanto, que é falso interpretar que a decisão tinha a aprovação da sociedade sob o aspecto moral. Primeiro, pela renúncia a um mandato estabelecido pela vontade popular. Segundo, por impedir a apuração de fatos “que poderia levar até mesmo à absolvição do requerente”, isto é, de Roriz.
O ministro Joaquim Barbosa, ao votar, rejeitou a questão de ordem apresentada pelo presidente do Supremo, Cezar Peluso, sobre a inconstitucionalidade da Lei da Ficha Limpa. Na sessão de ontem, Peluso havia dito que o Senado fez uma alteração no texto do projeto de lei que deveria ter levado a uma nova votação da matéria na Câmara dos Deputados. Na visão de Joaquim Barbosa, a corte não poderia sequer analisar essa questão, já que ela não constava do recurso apresentado pela defesa de Roriz. “Não temos poderes para revisar a lei toda, ou pelo menos devemos evitar”, disse o ministro. Por conta dessa posição, ele não chegou a entrar no mérito se a mudança do tempo verbal de trechos da lei configurou inconstitucionalidade formal ou não.
Ao entrar no mérito do recurso, Joaquim Barbosa afirmou que a Lei da Ficha Limpa estabelece regras que possibilitam “afirmar a probidade e a moralidade administrativas”. “É a própria democracia que se vê ilegitimada quando cidadão improbos viram representantes do povo”, completou. Ele acrescentou que os direitos políticos são superiores aos direitos individuais.
Não há casuísmo
Joaquim Barbosa lembrou que, pelo fato de a renúncia de Roriz ter ocorrido em 2007, a situação do ex-governador continuaria a mesma se a Lei da Ficha Limpa tivesse sido sancionada um ano antes das eleições. O ministro apontou que o ato jurídico perfeito, como argumentado pela defesa, continua “perfeito e acabado”. Tanto que o Senado, após ele deixar o cargo, não podia mais abrir o processo por quebra de decoro contra ele. “A lei não é casuística, pois incidirá nos candidatos de forma igual”, opinou Barbosa. Ele encerrou seu posicionamento citando voto do ministro do TSE Arnaldo Versiani, relator do caso de Roriz na corte eleitoral, que entendeu que a renúncia pode causar inelegibilidade.
O ministro Ricardo Lewandowski, que também preside o TSE, reafirmou sua posição dada na corte eleitoral e rejeitou todas as teses da defesa. Considerado um dos principais defensores da Lei da Ficha Limpa, ele primeiro analisou a questão levantada por Peluso. O ministro disse que, como o assunto não foi abordado pela defesa de Roriz, o Supremo não deveria julgar se a norma possui inconstitucionalidade formal ou não. Porém, adiantou que, caso fosse vencido nessa posição, votaria para afastar a interpretação dada pelo presidente do STF. Ele lembrou do ofício enviado pelo senador Demóstenes Torres (DEM-GO), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, que buscou esclarecer sobre a mudança do tempo verbal.
Depois, Lewandowski ressaltou que a nova lei não altera o processo eleitoral. “A Constituição não veda a retrotividade da lei, a não ser em questões penais”, enfatizou. Ele argumentou que não existe direito adquirido para as eleições. Ao apresentar registro de candidatura, a Justiça Eleitoral vai examinar as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade. Ele também afastou o questionamento dos advogados de que o Senado não tinha instaurado processo contra Roriz quando ele renunciou.
Durante o voto, Lewandowski ressaltou que a Lei da Ficha Limpa foi apresentada ao Congresso com amplo apoio popular. O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) conseguiu aproximadamente 2 milhões de assinaturas reais e mais de 1 milhão de apoios virtuais pela internet. “A lei presta uma homenagem aos princípios da probidade administrativa”, encerrou.
Ditadura da maioria
Gilmar Mendes disse que a posição da corte deve ser contramajoritária. Ou seja, o STF não deve julgar baseado na pressão da opinião pública. “Se fosse mimetizar, para ser decalque da decisão de Congresso, melhor fechar o Supremo Tribunal Federal. Fosse a lei aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, ainda assim estaria submetida à Constituição”, disparou. Ele disse, inclusive, que às vezes é preciso ir contra a opinião pública para “para salvar a própria opinião pública”. Gilmar fez uma longa defesa da aplicação do artigo 16 da Constituição.
Esse ponto gerou uma discussão áspera entre Gilmar Mendes e Carlos Ayres Britto, relator do caso, para o qual o julgamento deve ser analisado do ponto de vista do parágrafo nono do artigo 14 da Constituição Federal, que remete à necessidade de submeter as eleições ao regime da moralidade. “Vamos segurar pela cauda a aplicabilidade de uma lei que preza pela moralidade?”, questionou Ayres Britto. No entanto, para Gilmar, a lei altera o processo eleitoral e deve respeitar o princípio da anualidade.
Gilmar acrescentou que a Lei da Ficha Limpa abre um precedente perigoso ao retirar a exigência de trânsito em julgado, ou seja, ao impedir a candidatura de quem já foi condenado por órgão colegiado da Justiça.
“A ditadura da maioria é tão perigosa para a paz social quanto a da minoria”, afirmou Gilmar Mendes, citando o jurista austro-americano Hans Kelsen. Durante seu voto, ele chegou a comparar o fato de a lei ter respaldo em uma ampla mobilização da sociedade com regimes totalitários de Adolph Hitler, na Alemanha, e de Benito Mussolini, na Itália. “Assim se constrói o facismo”, disse o ministro. Para ele, a Lei da Ficha Limpa “deve ter seus méritos”, mas é preciso analisá-la de acordo com a Constituição, mesmo sendo de autoria popular e aprovada no Congresso.
Roriz foi barrado com base na Lei da Ficha Limpa pelo Tribunal Regional Eleitoral do DF (TRE-DF) e pelo TSE por conta da renúncia ao mandato de senador, em 2007, para escapar a um processo por quebra de decoro parlamentar. A representação apresentada contra ele pelo Psol se referia aos fatos investigados pela Operação Aquarela, que obteve gravações de ligações telefônicas em que Roriz aparecia discutindo a partilha de um cheque de R$ 2 milhões do empresário Nenê Constantino, dono da empresa Gol Linhas Aéreas. Na defesa, o então senador afirmou que a conversa era para fechar a compra de uma bezerra.
Última atualização à 1h de 24set2010