Soraia Costa
Mesmo antes de chegar ao Congresso, a proposta do governo para a reforma tributária já está causando polêmica e rendendo críticas de especialistas em finanças e tributação. O texto da proposta de emenda à Constituição (PEC) sobre o assunto deve ser encaminhado aos parlamentares na tarde de hoje (28).
A idéia do governo é simplificar o sistema de tributação principalmente sobre produtos e serviços, unificando impostos e acabando com a guerra fiscal entre os estados. Porém, a maior reclamação dos contribuintes – a redução da carga tributária – não é contemplada pela proposta.
Apesar de não ter divulgado o texto final da PEC, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, apresentou os principais pontos da reforma para empresários, sindicalistas e parlamentares. Nenhum desses pontos, no entanto, foi detalhado.
Em linhas gerais, a reforma tributária do governo irá unificar, no chamado Imposto sobre Valor Adicionado Federal (IVA-F), parte dos tributos que incidem sobre a produção. Além disso, o governo pretende criar uma legislação e uma alíquota única para o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que hoje obedece a leis e alíquotas estaduais, transferindo sua cobrança da origem (onde o produto é feito) para o destino (onde ele é consumido).
Leia também
Outro ponto da proposta governamental diz respeito à desoneração da folha de pagamento. Em princípio, o governo pretende acabar com a alíquota de 2,5% do salário-educação e, em um segundo momento, reduzir de 20% para cerca de 15% a contribuição patronal para a Previdência Social.
“O que falta nessa reforma é que toda a preocupação do governo está voltada para a eficiência, mas não se fala naquilo que deveria ser o principal foco: justiça fiscal. A carga tributária está muito concentrada em determinados segmentos. Paga mais, quem ganha menos. E, com isso, ninguém parece estar preocupado”, reclama o professor de Finanças Públicas da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Piscitelli.
O governo rebate dizendo que, apesar do objetivo da proposta não ser reduzir a carga tributária, a reestruturação do sistema de tributos irá gerar uma redução a médio e longo prazo como conseqüência.
“Não é o objetivo dessa reforma reduzir a carga tributária. O que se quer é um sistema mais simples e eficiente para abrir espaço para a redução em um futuro próximo”, afirma o deputado Pedro Eugênio (PT-PE), um dos parlamentares cotados para relatar a PEC na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara.
“Agora é bom lembrar que, se os impostos não tiverem cumulatividade, vai ter redução dos custos de produção. E, cedo ou tarde, isso vai refletir no preço dos produtos e serviços na ponta”, acredita ele.
Reforma possível
Tanto governistas quanto oposicionistas concordam que a reforma tributária do governo pode não ser a melhor, mas que talvez seja a “possível” de ser aprovada este ano. A idéia original do governo, quando se começou a discutir a reforma ainda no início do primeiro mandato de Lula, era de que apenas um imposto incidisse sobre os produtos e serviços. Na proposta que será apresentada hoje, no entanto, eles serão quatro.
No âmbito federal, o IVA-F, absorverá o PIS/Pasep, a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico-Combustíveis (Cide-Combustíveis). O Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), por outro lado, será cobrado separadamente.
No âmbito estadual, também restarão dois impostos: o novo ICMS e o Imposto Sobre Serviços (ISS). O novo ICMS passará a ser regido por uma legislação nacional, que determinará uma alíquota única para cada produto.
Outra mudança é que a cobrança do tributo passaria a ser feita no destino. Essa transferência seria realizada ao longo de oito anos a contar da aprovação da PEC. Ou seja, se for aprovada ainda este ano, a reforma só estaria completa em 2016.
“Alguns poderão dizer que essa proposta é mais acanhada do que se imaginava, o que é verdade. Por outro lado, ela é mais realista. Tem menos obstáculos para transpor e, conseqüentemente, mais chance de ser aprovada”, acredita o professor Roberto Piscitelli.
Para ele, é compreensível que uma mudança tão significativa seja feita em etapas. “Vai ter uma profunda alteração da distribuição dos recursos. Estados como São Paulo, por exemplo, terão perdas muito grandes e precisarão ser compensados. Fala-se de um fundo para essa compensação, mas ninguém sabe ainda como será esse fundo”, destaca, acrescentando que a guerra fiscal e a cumulatividade de impostos são temas de reclamações há muito tempo por parte do setor produtivo.
“É uma boa proposta. Ela avança muito na busca de um sistema mais justo”, defende o ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-deputado federal Germano Rigotto (PMDB), que é o coordenador do grupo de trabalho do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social sobre a reforma tributária.
“Ela talvez pudesse ser mais simplificadora, mas é a reforma possível”, diz ele. “Mesmo assim é uma boa proposta. Ela é racionalizadora e simplificadora e, se for aprovada, será um grande avanço”, enfatiza.
Segundo Rigotto, caso o IPI fosse mantido no IVA-F, isso poderia acarretar problemas para o setor de informática e, particularmente, para a Zona Franca de Manaus. “Mas vamos fazer um IPI mais seletivo”, avisa.
Quanto à desistência do governo de unificar o novo ICMS com o ISS, o ex-governador explica que essa foi uma exigência dos grandes municípios para aceitar a proposta.
Críticas
O maior problema da proposta do governo se esconde nos detalhes, acreditam os especialistas, e a maior dificuldade de se avaliar a proposta agora é que esses detalhes só serão conhecidos quando o texto da PEC for apresentado no Congresso.
Preliminarmente, no entanto, o advogado tributarista e professor de Direito Osiris Lopes Filho, da Universidade de Brasília (UnB), aponta algumas dificuldades que o governo deve enfrentar.
A primeira delas é com relação à unificação dos impostos federais no IVA-F. “A alíquota do IVA vai ser elevadíssima. Então essa fusão que parece uma maravilha tem esse problema: uma alíquota maior, gera maior evasão”, argumenta o ex-secretário da Receita Federal do governo Itamar Franco.
O deputado Pedro Eugênio discorda. Ele argumenta que, ao mesmo tempo em que a alíquota será elevada, também serão reduzidos os tributos, eliminando-se, assim, possibilidades maiores de sonegação. “Se todos concordam que o sistema tributário deve ser simplificado, como conseqüência desse raciocínio percebe-se que é algo desejável. Então esse raciocínio de que uma alíquota maior pode assustar, é verdadeiro, mas ainda não se sabe qual será essa alíquota e a evasão só acontece depois de um determinado patamar”, diz ele.
De acordo com o deputado, apenas no momento de votar a proposta é que será possível afirmar o valor da alíquota e que, caso ela seja muito elevada, o governo poderá estudar um desconto. “Como haverá um número menor de impostos, isso estimula o pagamento”, contra-argumenta Pedro Eugênio.
Novo ICMS
Outra grande dúvida gerada pela proposta do governo é como será feita a compensação das perdas causadas pela transferência da cobrança do ICMS da origem para o destino.
Tanto parlamentares da oposição quanto tributaristas argumentam que já houve experiências mal-sucedidas com fundos de compensação de impostos, como a Lei Kandir (que isenta produtos e serviços destinados à exportação).
“Esse é um ponto bastante delicado dessa reforma”, admite o deputado Pedro Eugênio. “Vamos ter que construir mecanismos de fundo que dê segurança e tranqüilidade para garantir que não haverá perdas. Mas ainda não sabemos como vai ser feito”, diz ele, acrescentando que a experiência com a Lei Kandir pode servir como um aprendizado para se aprimorar o novo fundo.
Ainda com relação às mudanças no ICMS, o advogado Osíris Lopes Filho questiona como o governo espera fiscalizar a migração da cobrança do tributo para o destino, sem, com isso, perder o controle sobre essa arrecadação.
“Nosso país é continental e não tem uma boa fiscalização tributária”, lembra.
Em resposta, o deputado Pedro Eugênio diz que essas questões precisarão ser amadurecidas no Congresso, mas que a idéia do governo é fazer a cobrança na origem e repassar os recursos para o destino.
“Agora começa o verdadeiro debate sobre a reforma tributária. Vamos discutir e verificar se no corpo da lei há mecanismos suficientes para garantir a viabilidade e a mecanização da proposta”, afirma o deputado.
Segundo ele, haverá fiscalização por amostragem para verificar fraudes nas emissões das notas fiscais.
“E quem emitir nota fiscal dizendo que o produto será comercializado naquele estado, mas na verdade ele for para outro terá que ser punido exemplarmente. Assim acredito ser possível ter uma transferência da cobrança de forma segura”, completa.
Desoneração da folha de pagamento
A desoneração da folha de pagamento também será contemplada pela proposta do governo. Essa desoneração, no entanto, será feita em etapas.
Na PEC que será enviada hoje ao Congresso, o governo propõe o fim do salário-educação, cuja alíquota de 2,5% incide sobre a folha. Como forma de compensar essa perda, o governo argumenta que os recursos serão repassados do Tesouro para o Ministério da Educação.
“Confesso que não está clara [como será essa compensação]. É importante ter compensação para que não se acabe com os benefícios do salário. A desoneração deveria ser mais ampla, mas é algo que precisa ser mais bem discutido”, destaca o deputado Pedro Eugênio.
Além do fim do salário-educação, o governo avisa que está estudando outras formas de desoneração, mas explica que essas serão tratadas em projetos de lei ordinária e complementar. Entre elas, está a redução de 20% para 15% da contribuição patronal para a previdência. Esse ponto foi, inclusive, motivo de confronto com as centrais sindicais.
“O governo tem que parar de se apropriar do que não é dele. A previdência é do povo. O contribuinte paga hoje para receber o benefício amanhã. Mas qual será o reflexo, no futuro, da perda de arrecadação? Serão restrições para os aposentados”, alerta Osíris Lopes Filho.
O tributarista lembra, ainda, que não adianta compensar essas perdas, pois, no final, alguém terá de pagar a conta. “Estou cansado de ver o sonho se tornar pesadelo”, conclui.
Deixe um comentário