Edson Sardinha
Com a experiência de quem redigiu a petição de impeachment do ex-presidente Fernando Collor e conhece profundamente os bastidores das CPIs, o jurista Miguel Reale Junior antevê o aprofundamento da crise política a partir do próximo mês. De acordo com o advogado, um silencioso trabalho de investigação deve abalar o Palácio do Planalto ainda este ano e romper o aparente abrandamento – causado pela eleição de Aldo Rebelo (PCdoB-SP) – do terremoto político que sacode o governo Lula.
“A investigação está começando agora a se aprofundar, por meio de um trabalho que não vai aparecer na imprensa – e que não é para aparecer na mídia. É um trabalho de escrivaninha, de gabinete, não para os holofotes, nem para capa das revistas semanais”, diz. “O que vai surpreender na frente é a revelação dos dados probatórios decorrentes dos exames dos dados bancários e telefônicos. Aí, sim, a surpresa será grande”, complementa.
Apesar de não antecipar a “surpresa”, o ex-ministro da Justiça aponta, nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, alguns pontos que ainda carecem de esclarecimento da parte do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Existem fatos que ainda precisam ser esclarecidos, como a apresentação da lista dos visitantes do Palácio da Alvorada. Esse requerimento já foi feito, e o gabinete institucional ainda não respondeu.”
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A confirmação de alguns desses elementos, segundo Reale Junior, pode comprovar a prática de improbidade administrativa e desencadear, ao final das investigações das CPIs, o que, por ora, ainda não se sustenta: um pedido de impeachment.
“Há elementos indicativos de que eventualmente Marcos Valério tenha estado duas vezes no Alvorada. É interessante que se esclareça logo essa dúvida e se apresente a relação de visitas ao palácio. Por que tanta resistência em apresentar esses elementos? O pagamento das contas do PT pelo Paulo Okamotto (presidente do Sebrae), o recebimento de presentes valiosos, todo um conjunto de ternos e vestidos, pela primeira-dama, tudo isso não foi esclarecido. Pode ter havido improbidade administrativa. Quem tem de dar explicações é o Palácio do Planalto.”
Planalto não comenta
A possibilidade de o empresário mineiro ter ido à residência oficial da Presidência, à qual faz referência o ex-ministro da Justiça, resultou, segundo dois deputados da CPI dos Correios, na aprovação de um pedido de informações ao Gabinete Institucional. Os dados, contaram, ainda não teriam sido encaminhados pelo Executivo. A secretaria-geral da comissão, no entanto, informou ao Congresso em Foco que não localizou em seus arquivos nenhum pedido de registro de visitas ao Alvorada. Procurada pela reportagem para comentar o assunto, a assessoria de imprensa do Planalto informou que o presidente Lula não se manifestaria sobre o assunto.
Corrupção sistêmica
Com a bagagem de quem auxiliou as investigações da CPI que derrubou Collor, Reale Junior identifica nos casos que compõem o chamado escândalo do mensalão um esquema mais engenhoso de corrupção, baseado na cooptação de parlamentares e no aparelhamento da administração pública.
“Agora há uma corrupção sistêmica, que decorre das oportunidades que pessoas desonestas vêem na ocupação de um cargo público e de um sistema para perpetuação no poder. Nesse caso, é uma corrupção diversa, que não é para proveito próprio, mas para a manutenção do poder. Nunca se viu isso alastrado de tal forma”, observa.
Casuísmo do bem
Coordenador do recém-criado movimento “Da Indignação à Ação”, formado por representantes da sociedade civil em defesa da moralidade político-eleitoral, o ex-ministro elogia a conduta da Polícia Federal na apuração dos atuais escândalos e enxerga nos recursos utilizados pelo Planalto na eleição da Câmara a repetição das práticas que resultaram na pior crise do governo Lula. “Elegeu Aldo Rebelo com as mesmas práticas de desonestidade política com que agiu nos fatos que estão sendo apurados nas CPIs, com a liberação de emendas, ofertas de ministérios, propostas políticas de cargos e garantias eleitorais no futuro”, critica.
Nas últimas semanas, o advogado tem se dividido entre Brasília e São Paulo em busca de apoio para mudar as regras eleitorais do ano que vem. O principal desafio, no momento, é convencer os líderes partidários a aprovarem a proposta de emenda constitucional que prorroga até 31 de dezembro o prazo para as mudanças no sistema eleitoral de 2006 e evitar a reprodução das práticas de crime eleitoral. “É um casuísmo do bem”, brinca.
Reale Junior não é dado a brincadeiras. Em 2002, esteve à frente do Ministério da Justiça por apenas três meses. Contrariado com a decisão do governo federal de desistir de decretar intervenção no Espírito Santo, dominado na época pelo crime organizado, o jurista devolveu o cargo ao então presidente Fernando Henrique. Ao deixar a pasta, acusou o governo de recuar da decisão por motivos político-eleitorais.
Congresso em Foco – O senhor foi um dos redatores da petição do processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor. Que semelhanças o senhor identifica entre o escândalo do governo Collor e a atual crise política?
Miguel Reale Junior – Os dois casos são extremamente diferentes. Na época de Collor, havia uma quadrilha – um grupo de pessoas ligadas ao Banco do Brasil e à Caixa Econômica – e o ex-tesoureiro PC Farias, uma espécie de ministro da Fazenda sem pasta, que, na verdade, comandavam um processo de extorsão em relação às empresas privadas. Não havia dominação da máquina administrativa nem compra de parlamentares. O processo era bem diverso, fato pequeno diante do que existe atualmente. Hoje há um miasma. O partido que se instalou no poder ocupou inúmeros cargos que eram exercidos inclusive por pessoas da burocracia. Além disso, houve um processo muito grave de corrupção em diversas estatais. Caso, por exemplo, da Petrobras. Perto de 80 contratos da empresa foram considerados irregulares e tiveram os seus efeitos suspensos por determinação do Tribunal de Contas da União.
Que outra diferença entre os dois casos o senhor identifica?
Agora também há o mensalão, cooptação de parlamentares via pagamento em dinheiro vivo. Dava-se, aparentemente, poder a um partido, com um ministério, mas o eixo central da administração pública ficava nas mãos de partidários do PT. Houve também um crescimento muito grande de cargos em comissão, o que acontece na própria presidência da República, onde o número de funcionários triplicou. O número de servidores na época de Fernando Henrique Cardoso era de 1.100. Hoje, são 3.300. De lá pra cá, os gastos públicos do gabinete presidencial mais que triplicaram – de R$ 76 milhões para R$ 350 milhões. Houve uma ocupação do governo pela máquina partidária e um processo mais amplo e difícil de ser apurado, com vários labirintos a serem percorridos pelas CPIs.
O escândalo hoje, na sua avaliação, é mais grave do que o que derrubou o presidente Collor?
Incomparavelmente mais grave. Os fatos estão se aprofundando, na verdade, agora. O governo quer dar a impressão de que, porque elegeu Aldo Rebelo presidente da Câmara, tudo se desfez, como se todos nós cidadãos brasileiros fôssemos verdadeiros imbecis. Age como quem diz: “Agora, que elegemos Aldo, a crise acabou”. Dezenas de pessoas foram destituídas dos seus cargos e um deputado do PT disse que o dinheiro que alimentou as contas de Marcos Valério e o caixa dois do partido provém de contas do exterior. Por outro lado, há a contratação de auditorias independentes pela CPI dos Correios e o trabalho realizado pelo deputado Gustavo Fruet (PSDB-PR) que mostra o fio da moeda. A investigação está começando agora a se aprofundar, por meio de um trabalho que não vai aparecer na imprensa – e que não é para aparecer na mídia. É um trabalho de escrivaninha, de gabinete, não para os holofotes, nem para capa das revistas semanais. É preciso estabelecer as relações e cruzar os dados bancários e telefônicos para, depois sim, revelar esses fatos.
É um trabalho a ser feito mais pelos parlamentares do que pela Polícia Federal?
Mais por parlamentares e técnicos do Tribunal de Contas da União, do próprio Congresso Nacional e das auditorias externas. A crise não está acabando como o governo quer fazer crer: “Agora está acabado, vamos finalizar com isso, passou o terremoto”. Pode ter acabado o terremoto aparente, porque não existem mais noticiários que possam surpreender. O que vai surpreender na frente, sim, é a revelação dos dados probatórios decorrentes dos exames dos dados bancários e telefônicos. Aí, sim, a surpresa será grande.
O que o senhor quer dizer com isso? Que as denúncias podem atingir ainda mais o presidente Lula?
Existem fatos que ainda precisam ser esclarecidos, como a apresentação da lista dos visitantes do Palácio da Alvorada. Esse requerimento já foi feito, e o gabinete institucional ainda não respondeu.
O senhor se refere ao Palácio do Planalto ou ao da Alvorada?
Refiro-me ao rol dos visitantes do Palácio da Alvorada. Há elementos indicativos de que eventualmente Marcos Valério tenha estado duas vezes no Alvorada. É interessante que se esclareça logo essa dúvida e se apresente a relação de visitas ao palácio. Por que tanta resistência em apresentar esses elementos? O pagamento das contas do PT pelo Paulo Okamotto (presidente do Sebrae), o recebimento de presentes valiosos, todo um conjunto de ternos e vestidos, pela primeira-dama, tudo isso não foi esclarecido. Pode ter havido improbidade administrativa. Quem tem de dar explicações é o Palácio do Planalto.
Há elementos que justifiquem o pedido de impeachment do presidente Lula?
Acho que um pedido de impeachment, se for esse o caso, só deve ser apresentado no término da CPI. Estamos em pleno processo de apuração. Quero recordar que a petição de impeachment (do presidente Collor), da qual participei, só foi feita depois do término da CPI do PC Farias. É impossível pensar em qualquer petição de impeachment antes do término das CPIs. As conclusões delas é que vão demonstrar se é caso ou não de formulação de pedido de impeachment.
A contratação de duas auditorias pela CPI dos Correios pode impulsionar as investigações, que vêm em ritmo lento nas últimas semanas?
Creio que sim. Tive contato com os relatores das CPIs e vi o afinco e a disposição com que eles estão investigando, de forma parcial mas firme. Acredito que a contratação de empresas externas, com larga experiência em cruzamento de dados, vai aprofundar o exame do trajeto do dinheiro.
Como ex-ministro da Justiça do governo FHC, que avaliação o senhor faz da atuação da Polícia Federal nas investigações?
A Polícia Federal tem agido com isenção. É um dado a se realçar que a PF tem agido como polícia do Estado e não como polícia do governo. É um fato altamente meritório, tudo indica que não existe nenhuma intervenção política para impedir ou conduzir o processo investigatório no âmbito da Polícia Federal.
As CPIs têm um poder de atuação limitado. O que as CPIs podem fazer para impedir que a sociedade tenha a sensação de que as investigações sempre acabam em pizza?
Acho que as CPIs têm um âmbito muito aberto. Têm poder de investigação judicial. Pelo que pude perceber no contato com os deputados Osmar Serraglio (relator da CPI dos Correios) e Ibrahim Abi-Ackel (relator da CPI do Mensalão) e o senador Delcídio Amaral (presidente da CPI dos Correios), não há nenhuma disposição de se fazer com que as CPIs sejam objeto de um acordão, nem de fazer da CPI um instrumento de punição ou de impunidade.
A eleição de Aldo Rebelo muda em que sentido o cenário para a cassação dos 16 deputados citados no relatório parcial das CPIs?
Não muda nada. O governo é que está querendo fazer ilusionismo, vendendo ao povo a idéia de que toda a crise acabou porque elegeu o novo presidente da Câmara. Elegeu Aldo Rebelo com as mesmas práticas de desonestidade política com que agiu nos fatos que estão sendo apurados nas CPIs, com a liberação de emendas, ofertas de ministérios, propostas políticas de cargos e garantias eleitorais no futuro. Ou seja, foi um jogo pesado para, com 15 votos de diferença, eleger um homem que, a meu ver, é sério, mas que não tem liderança. O deputado Aldo Rebelo, militante do PCdoB, é uma pessoa que não tem força nem liderança para impor a autoridade hoje necessária na Câmara dos Deputados.
Ao fazer uso desses recursos para eleger Aldo, o governo aprofundou a crise?
Sempre que existe um fato nocivo ou doentio, marcado pela falta de clareza e de honestidade, a Casa sente esse reflexo e fica dolorida. É como se a Casa se envergonhasse e se voltasse um pouco pra dentro, constrangida com os erros que pratica. Quando se vê que gente envolvida no mensalão, como José Janene e Severino Cavalcanti, comemorou o resultado da eleição, percebe-se que ela foi marcada por um compromisso que não é o de elevar a Câmara.
Na sua avaliação, cresceu a corrupção ou a percepção da corrupção no atual governo?
A corrupção sempre existiu. Existiu no governo Fernando Henrique e em outros também. Agora há uma corrupção sistêmica, que decorre das oportunidades que pessoas desonestas vêem na ocupação de um cargo público e de um sistema para perpetuação no poder. Nesse caso, é uma corrupção diversa, que não é para proveito próprio, mas para a manutenção do poder. Nunca se viu isso alastrado de tal forma. Como advogado tive a oportunidade de, algumas vezes, receber clientes que revelavam dificuldades no trato com o governo federal, dizendo que agora, além do custo Brasil, havia um custo político, o pagamento de taxas para a obtenção daquilo que deveria ser concedido. E isso em diversas estatais, como o que está sendo denunciado pelo Tribunal de Contas em relação à Petrobras.
Em relação aos crimes investigados pelas CPIs, quais já estão comprovados?
Acho um pouco prematuro afirmar, mas, tecnicamente, em tese, há indícios de crimes de improbidade, cometido pelo presidente da República, de corrupção passiva, por parte de deputados, obtenção de vantagens para adesão, crime de prevaricação, sonegação fiscal e crime de falsidade em relação à apresentação de contas ao TSE. Quer dizer, há uma série de fatos que podem ser enquadrados nas leis penais.
Com a experiência de advogado e ministro, que cenário o senhor vislumbra pra essa crise?
Acho que as coisas vão se agravar especialmente a partir de novembro. A situação realmente vai ficar muito complicada para o país e trazer muita dificuldade para o prosseguimento de qualquer reforma política. Luto para que existam algumas reformas do sistema eleitoral e para que haja possibilidade de vigência dessas mudanças para as eleições de 2006. Mas temo que o agravamento da situação do governo daqui pra frente dificulte qualquer forma de andamento dos trabalhos legislativos.
Não pode soar como casuísmo mudar, a esta altura, a Constituição pra permitir que as mudanças nas regras eleitorais possam valer em 2006?
Não há nada que impeça que você estabeleça uma medida transitória para 2006. Muita gente diz que isso é casuísmo. Digo que é um casuísmo do bem. Se você tem uma situação emergencial, tem que ter soluções emergenciais. Se não se fizer nada agora, tenho certeza de que amanhã será pior. Estamos numa situação que, se o sistema eleitoral não for modificado, vai reproduzir exatamente o que está acontecendo hoje e não vamos ter nenhum avanço no plano político. Sei que isso é muito difícil. As lideranças partidárias estão discutindo a formação da comissão especial que vai apreciar a PEC (proposta de emenda à Constituição) do Ney Lopes (PFL-RN), mas sob uma questão de fundo. Aprova-se a postergação, mas, antes, quer se saber qual será o conteúdo da mudança. Vai haver muita discussão. Existe o problema da cláusula de barreira e da desverticalização, sobre a qual pesa a controvérsia de se ela pode valer pro ano que vem ou não. Trata-se, portanto, de uma medida que vai depender da interpretação constitucional. Os partidos de oposição estão avaliando se devem ou não aderir à desverticalização. De qualquer forma, existem várias medidas que podem ser tomadas independentemente de medidas legislativas que interferem no processo eleitoral.
O que, por exemplo?
Podemos lutar para que haja maior aproximação do povo com o processo eleitoral e a transformação da sociedade em instrumento de controle desse processo. Isso não depende de lei, mas de vontade política. E essa vontade existe no momento por parte do presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Carlos Velloso. A Justiça Eleitoral tem de ficar mais presente.
Sem reforma política, não há salvação para o Congresso?
A eleição de Aldo Rebelo não colabora para a melhoria dessa imagem. Os prejuízos causados pela eleição de Severino não foram, de forma alguma, superados pela eleição de Aldo. A imagem negativa aprofundou-se, não por ele (Aldo), mas pela forma e pelas interferências que ocorreram no processo eleitoral. A reforma política daria uma imagem mais positiva para o Congresso.
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