Na condição de réu desde ontem, com a abertura de processo no Conselho de Ética da Câmara, o deputado José Dirceu (PT-SP) não terá de provar apenas à oposição de que é inocente. Para escapar da cassação, terá de convencer até quem, há duas semanas, fazia uma defesa incondicional de sua conduta, como o deputado Maurício Rands (PT-PE). Uma das principais vozes em favor do governo na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Correios, Rands já não descarta a possibilidade de envolvimento do ex-ministro da Casa Civil com as irregularidades assumidas exclusivamente, até agora, pelo ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares.
“Nós não podemos descartar nenhuma das duas hipóteses. A hipótese de que essa transferência de recursos para parlamentares da base aliada era feita por aqueles que assumiram essa responsabilidade, mas também nós não podemos descartar a hipótese de que, além daqueles que assumiram a responsabilidade, haveria outras personalidades (envolvidas)”, afirma. “O que me parece ficar indicado é que o ex-ministro José Dirceu virá complementar os seus esclarecimentos”, emenda.
A moderação de Rands ao falar sobre Dirceu revela o quanto é delicada a situação do ex-chefe da Casa Civil. Não bastasse a fúria da oposição e dos desafetos que colecionou durante sua passagem pelo Planalto, o deputado ainda enfrenta a desconfiança dos petistas mais alinhados com o governo. “Estamos aqui para investigar, cortar na carne, doa a quem doer”, assegura o ex-presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC).
A cautela do deputado pernambucano em relação a Dirceu contrasta, no entanto, com a veemência na defesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na avaliação de Rands, o PT ainda deve desculpas à sociedade, mas Lula, não. “Acho que o presidente Lula está fora disso. Quem está tentando colocar o presidente, está forçando, está com uma atitude golpista, querendo derrubar o presidente. A sociedade não vai permitir isso, nem nós, deputados”, diz.
Nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco , Rands afirma que o PT não vai abrir mão de investigar as denúncias de repasse de dinheiro de Marcos Valério a tucanos e pefelistas nas eleições de 1998. “É preciso deixar de lado essa hipocrisia e vamos raciocinar com a realidade: não foi um setor do PT que inventou essa forma de financiamento de campanha, ela já vinha de antes.”
Conhecedor das dificuldades de aprovação do financiamento público de campanha, tese histórica do PT, o deputado prepara-se para apresentar uma proposta que deve gerar polêmica na Câmara. Rands vai propor a limitação dos gastos e a redução do tempo de campanha eleitoral. Para evitar o uso de dinheiro de caixa dois, sugere a adoção de incentivos fiscais para empresas que queiram fazer doações aos candidatos. A proposta, segundo ele, ainda vai ser discutida na bancada do partido.
Congresso em Foco – A CPI dos Correios completa agora três meses. Que rumo ela vai tomar a partir de agora?
Maurício Rands – Eu acho que a CPI dos Correios tem um foco e já avançou muito. Conseguiu esclarecer muito do que ocorria no país. A agenda do país hoje discute, por exemplo, o esquema do Marcos Valério, que, em 2003, envolvia empréstimos, recursos para suas agências e distribuição para atividades políticas, como pagamento de dívida de campanha e outras que ainda faltam esclarecer melhor. E foi na CPI dos Correios que se descobriu que, em 1998, o mesmo esquema foi utilizado: agências de Marcos Valério, empréstimos ao Banco Rural e ao BMG e irrigação, no caso de 1998, de campanhas do PSDB e do PFL ao governo de Minas e de 70 candidaturas de deputados federais e estaduais. Por outro lado, a CPI, que originariamente tinha como único objeto a denúncia de corrupção nos Correios, também avançou nessa direção.
Em que medida? Começa a se consolidar entre as CPIs a idéia da divisão das atribuições. À CPI dos Correios cabe a investigação da corrupção nos Correios e adjacências, porque o senhor Marcos Valério tinha contrato de publicidade com os Correios – lá aflorou um esquema de funcionamento de irregularidades e arrecadação de recursos dele. E, a outra CPI, a da Compra dos Votos, tem como objeto específico a investigação das denúncias de transferências de recursos a parlamentares para influenciar no modo como eles votavam no Congresso Nacional. Há uma dose de complementaridade no trabalho das duas comissões. Abaixo os egos e acima a investigação eficiente, maximizando os depoimentos e os documentos que aqui coligimos.
“Estamos aqui para investigar, cortar na carne, doa a quem doer. Agora, por outro lado, não achamos que o povo brasileiro quer apenas metade da história”
Mas já está havendo esse conflito, essa disputa de egos? Acho que em algumas pessoas. Vocês notam que, infelizmente, alguns parlamentares vêm à comissão fazer a disputa eleitoreira, jogo de cena. Nós (do PT) provamos, com a nossa conduta, que queremos investigar. Por isso, temos autoridade moral perante a nação inteira. Estamos aqui para investigar, cortar na carne, doa a quem doer. Agora, por outro lado, não achamos que o povo brasileiro quer apenas metade da história. Ele quer saber das irregularidades cometidas por Marcos Valério a partir de 2003, mas quer saber das que ocorreram também em 1998. E mais do que isso: precisamos responder ao país o que esse esquema de Marcos Valério estava fazendo na eleição de 2000 e 2002. Será que quem atuava tão ativamente, fazendo empréstimos de milhões de reais – que na época eram em dólares, porque os R$ 9 milhões e pouco que foram objeto de empréstimo em 1998 estavam na cotação de um pra um – se recolheram ao recôndito do lar em 2002? Não é muito provável. Então, vamos investigar também isso.
A CPI dos Correios só recebeu o resultado de uma das 38 auditorias feitas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) dos Correios. Falta ainda receber a quebra de sigilo dos bancos BRB, Banco do Brasil, Banco Rural, BMG que apontaria o esquema do Marcos Valério. O senhor acredita que a CPI vai concluir todas essas frentes de investigação a tempo? Tem gente que quer exatamente desfocar o trabalho da comissão, abrir todas as linhas de investigação. Para nós, é importante que todas as linhas de investigação sejam esclarecidas. Isso não quer dizer que elas têm de ser esclarecidas por todas as comissões, para não haver uma superposição. É preciso ter uma divisão racional de trabalho investigativo.
O senhor disse que o PT está cortando na carne. A não expulsão de Delúbio Soares, na última reunião da Executiva do partido, não contradiz isso? Não há uma certa conivência com o ex-tesoureiro, que já assumiu o caixa dois? O Partido dos Trabalhadores está mostrando que não vai ficar protegendo os seus membros, inclusive dirigentes ou ex-dirigentes. Tanto é que a Executiva que estava à frente do partido já há algum tempo foi praticamente toda ela afastada e substituída pelo ministro Tarso Genro, pelo ministro Humberto Costa e pelo ministro Ricardo Berzoini, além do deputado José Pimentel. São personalidades com grande visibilidade nacional, que ocuparam cargos públicos de alto relevo e que diferem da anterior executiva, cuja maioria conhecia a vida partidária de modo apenas interno.
“O PT não está protegendo qualquer dos seus membros que estão envolvidos nas investigações. Nós já quebramos o sigilo profissional, bancário, tributário e telefônico devários membros do PT”
O partido está mudando? O partido está mudando não só porque está mudando a direção, mas porque está redefinindo método e organização administrativa, sobretudo de funcionamento de suas finanças. Mais do que isso, o PT não está protegendo qualquer dos seus membros que estão envolvidos nas investigações. Nós já quebramos o sigilo profissional, bancário, tributário e telefônico de vários membros do PT. Votamos favoravelmente pela convocação de vários dirigentes do partido – ontem, por exemplo, aprovamos a convocação do ex-ministro Luiz Gushiken. Não estamos botando nenhuma dificuldade para que os membros do PT sejam investigados. Mais do que isso: nós, inclusive, espontaneamente quebramos o sigilo do partido. Eu até desafio os outros partidos a fazerem o mesmo.
Mas no início o PT era contra a CPI dos Correios. O senhor não acha que foi uma posição equivocada? Vamos recapitular historicamente. Fomos contra, muito no início, quando tinha apenas a denúncia dos R$ 3 mil nos Correios, algo restrito apenas a uma empresa estatal. Quando se viu que aquela coisa não era algo isolado de um funcionário do segundo escalão dos Correios e podia ser algo sistêmico, nós aprovamos aqui a CPMI. Inclusive foi a primeira a ser protocolizada, que foi aquela com a assinatura dos deputados do PT e da base aliada. Desde então, estamos na linha de frente, chegamos lá bem cedo, saímos de madrugada, estamos investigando pra valer. Os fatos e os atos valem mais que as palavras.
“Não podemos descartar a hipótese de que, além daqueles que assumiram a responsabilidade, haveriaoutras personalidades (envolvidas)”
Na sua avaliação, é possível falar que havia um mentor desse suposto esquema comandado pelo Marcos Valério? É possível afirmar que esse mentor seria o ex-ministro José Dirceu, como tem sustentado o deputado Roberto Jefferson? Nós não podemos descartar nenhuma das duas hipóteses. A hipótese de que essa transferência de recursos para parlamentares da base aliada era feita por aqueles que assumiram essa responsabilidade, mas também nós não podemos descartar a hipótese de que, além daqueles que assumiram a responsabilidade, haveria outras personalidades. Da primeira, nós já temos. Da segunda, nós não temos ainda. O que nós temos que ter é uma disposição mental e de conduta para verificar ou refutar as duas hipóteses. Não se pode descartar qualquer uma das hipóteses a priori .
“Ele já deu um depoimento que, na época, foi interpretado como esclarecedor. Os fatos evoluíram, houve já um segundo depoimento do Marcos Valério. O que me parece ficar indicado é que o ex-ministro José Dirceu virá complementaros seus esclarecimentos”
O que falta ao ex-ministro José Dirceu esclarecer? Ele já deu um depoimento que, na época, foi interpretado como esclarecedor. Os fatos evoluíram, houve já um segundo depoimento do Marcos Valério. Vamos ver se a gente consegue extrair alguma coisa do outro sócio (de Valério), o Cristiano Paz, e amadurecer o momento do ex-ministro José Dirceu vir aqui para completar os seus esclarecimentos. Eu imagino que, primeiramente, ele deva vir à CPI da Compra de Votos. Mas não está nada decidido ainda. O que me parece ficar indicado é que o ex-ministro José Dirceu virá complementar os seus esclarecimentos.
“É preciso deixar de lado essa hipocrisia e vamos raciocinar com a realidade: não foi um setor do PT que inventou essa forma de financiamento de campanha, ela já vinha de antes”
Por estar na linha de frente da CPI desde o início, sempre defendendo o PT e o governo das acusações, o senhor se sente traído pela antiga cúpula do partido? Não considero esse negócio de traição ou não. Concretamente, nós nos sentimos muito tristes, porque o Partido dos Trabalhadores contém em si a semente da renovação da democracia brasileira. É o partido que tem uma prática democrática interna, elege pelo voto direto dos seus militantes todos os seus órgãos de direção. O PT é o partido que nasce da luta sindical, da luta dos excluídos sociais. De todos os partidos, é hoje o que ainda tem mais penetração na sociedade organizada, nos estudantes, nos intelectuais, nos trabalhadores. Lamento que esse partido, por alguns de seus segmentos, tenha incorrido em práticas políticas de financiamento de campanhas e arrecadação de recursos que, infelizmente, são aquelas largamente dominantes e que vêm sendo praticadas há muitos anos na política brasileira por quase todos os partidos que têm assento no Congresso Nacional. É preciso deixar de lado essa hipocrisia e vamos raciocinar com a realidade: não foi um setor do PT que inventou essa forma de financiamento de campanha, ela já vinha de antes.
“Como militante, quero, em primeiro lugar, apresentar meu pedido de desculpas ao povo brasileiro, porque todos nós, parlamentares e militantes, deveríamos ter nos inteirado mais de como as finanças do partido estavam”
Isso justifica? Agora, um erro não justifica o outro. Como militante, quero, em primeiro lugar, apresentar meu pedido de desculpas ao povo brasileiro, porque todos nós, parlamentares e militantes, deveríamos ter nos inteirado mais de como as finanças do partido estavam. Não podemos desconhecer as grandes virtudes que esse partido tem, embora ele tenha cometido alguns equívocos que agora estão sendo esclarecidos. Trata-se de pedir desculpas, reconstruir o partido, modificando seus métodos e adotando medidas de transparência que evitem que esses problemas aconteçam no futuro. E aí fica a lição não só para o PT, mas para o conjunto político brasileiro. Não basta apenas punirmos aqueles que cometeram irregularidades, temos que dar o segundo passo, que é a profilaxia. É prevenir para que no futuro não precisemos remediar. Ou seja, é reforma política já!
O que o senhor sugere para ser feito? Estabelecer limites de valor dos financiamentos das campanhas, acabar com o showmício, com a superprodução da propaganda eleitoral e com as propagandas externas que maquiam a verdadeira posição, as virtudes e os defeitos dos candidatos. Eu proibiria, por exemplo, a legenda de aluguel. Tornar o sistema partidário mais programático, exigindo, por exemplo, a fidelidade partidária. Vou apresentar uma proposição a essas discussões de reforma política para que, ao lado de estabelecimento de um teto de gastos, incentive-se a transparência das doações de campanha, fazendo com que a empresa possa ter algum benefício fiscal ao fazer a contribuição. Faria outro acréscimo: diminuiria a duração das campanhas, de 90 para 60 dias. Todos os fornecedores de material de campanha ficariam obrigados a receber, ou por um cheque nominal do comitê financeiro da campanha ou por um bônus eleitoral. Cada candidatura deveria apresentar no início da campanha um rol de potenciais fornecedores, com preços da campanha. São medidas que, somadas, poderiam diminuir sensivelmente os abusos do poder econômico e barateariam os custos das campanhas eleitorais no Brasil.
Dá para se falar em financiamento público de campanhas? Se caminharmos para a lista partidária, ou para uma lista partidária flexível e mista, poderíamos combinar essas mudanças com o financiamento público. Se tiver muita reação a isso, poderemos adotar esse modelo que eu estava propondo: contribuições transparentes, incentivos fiscais para que as empresas que queiram doar doem por dentro e limite no valor geral de gastos de campanha. Hoje cada partido fixa seu teto.
Isso é uma posição do PT ou do senhor? É uma posição minha que estou levando à discussão da bancada.
A redução do tempo de campanha não esbarraria nos partidos menores, que têm pouco espaço de inserção na mídia, já teriam ainda menos tempo para apresentar suas propostas? Um partido deve ser consolidado pela inserção na sociedade, como faz o PT. Não é só você chegar na hora da eleição, fazer discurso na TV e pedir voto. Cada parlamentar do PT tem 20, 30 anos de militância. Desde adolescente, estagiário de direito, eu organizei a militância. Vinte e cinco anos depois, tornei-me deputado federal. É diferente de alguns políticos, que são filhos de políticos e chegam aqui por isso.
“Acho que o presidente Lula está fora disso. Quem está tentando colocar o presidente, está forçando, está com uma atitude golpista, querendo derrubar o presidente. A sociedade não vai permitir isso, nem nós, deputados”
O senhor disse que, como militante, deve desculpas ao povo brasileiro. O PT e o presidente Lula também devem esse pedido de desculpas? Acho que o presidente Lula está fora disso. Quem está tentando colocar o presidente, está forçando, está com uma atitude golpista, querendo derrubar o presidente. A sociedade não vai permitir isso, nem nós, deputados. Isso é lesar o voto popular que elegeu o presidente Lula para fazer essas mudanças. Afora essas insinuações golpistas, quem deve desculpas somos nós, do Partido dos Trabalhadores. No nosso caso, porque não fiscalizamos o funcionamento das finanças do partido. Temos que ter humildade e apresentar um sonoro pedido de desculpas à sociedade brasileira.
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