Sylvio Costa
A história dos dossiês contra os ex-ministros da Saúde José Serra e Barjas Negri recoloca em cena uma questão que já se viu, um ano atrás, durante o auge da crise política: a dificuldade de distinguir culpados e vítimas das denúncias em questão.
Naquela época, a oposição demonstrou competência para desnudar os esquemas ilegais de cooptação política montados pelo PT e pelo governo Lula. Mas teve uma atuação decepcionante ao tentar poupar os oposicionistas envolvidos no valerioduto, a começar pelo próprio presidente nacional do PSDB, senador Eduardo Azeredo (MG). Sem falar que, na sanha de acusar, pefelistas e tucanos, muitas vezes, lançaram mão de denúncias duvidosas, como a jamais provada – e insistentemente repetida – versão de que os grandes fundos de pensão teriam fornecido recursos para o pagamento do mensalão.
Agora, de novo, vemo-nos em uma situação na qual as duas partes em confronto têm muito a explicar. Do lado de Serra e Barjas Negri, aguardam-se esclarecimentos sobre as possíveis irregularidades cometidas durante a gestão de ambos na compra de ambulâncias e equipamentos médico-hospitalares.
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O que Serra e o PSDB precisam explicar
O que deixou o PSDB em alerta foram os vídeos e fotos em que Serra e o candidato a presidente Geraldo Alckmin aparecem junto com empresários e parlamentares envolvidos até o pescoço no escândalo das ambulâncias.
Há outros elementos que talvez sejam mais úteis para juntar as peças desse quebra-cabeças. O primeiro relatório parcial da CPI dos Sanguessugas, divulgado em 10 de agosto, mostrou, por exemplo, que o esquema dos sanguessugas começou em 1998 (leia mais). Também apresentou dados demonstrando que as compras de ambulâncias alcançaram seu apogeu em pleno governo Fernando Henrique, nos anos de 2001 e 2002, quando foram firmados 1.576 convênios, no valor de R$ 106 milhões. Nos dois anos seguintes, apurou a comissão, foram assinados 1.009 convênios, com valor global de R$ 82 milhões, números que cairiam ainda mais no período subseqüente.
Outro dado revelador é que PSDB (128) e PFL (107) são os partidos que controlavam o maior número de prefeituras que compraram ambulâncias da Planam entre 2000 e 2004, como já anunciou a Controladoria Geral da União (CGU).
Por tudo isso, soa crível a afirmação feita à IstoÉ pelo empresário Darci Vedoin, um dos comandantes da chamada máfia dos sanguessugas, a respeito da desenvoltura com que sua família operou durante a era FHC. "Na época deles, o nosso negócio era bem mais fácil. O dinheiro saía muito mais rápido. Foi quando mais crescemos", disse Darci à revista.
Nada disso, deve-se ressaltar, prova nada contra Serra, Alckmin ou a cúpula do PFL e do PSDB. São apenas indícios. Mas é, no mínimo, estranho que PSDB e PFL evitem agora o tratamento do tema, limitando-se a fazer carga contra o envolvimento de pessoas ligadas ao PT na compra dos dossiês que a família Vedoin pretendia vender.
Tal comportamento causa ainda mais perplexidade diante da avidez com que setores da oposição tentam tirar o máximo proveito político possível do caso. Uns já falam em cassação do registro da candidatura de Lula. Outros, como o senador José Jorge (PFL-PE), candidato a vice na chapa do tucano Geraldo Alckmin, chegaram a comparar o assessor de Lula Freud Godoy a Gregório Fortunato.
Freud foi lançado na fogueira do escândalo dos dossiês por ter se encontrado várias vezes com o agente federal aposentado Gedimar Pereira Passos, preso pela Polícia Federal – instituição à qual ele serviu durante 20 anos – sob a acusação de negociar a compra dos documentos que os Vedoin colocaram à venda. Fortunato, chefe da segurança pessoal do ex-presidente Getúlio Vargas, entrou para a história como o responsável por uma manobra desastrada: o plano de matar o jornalista Carlos Lacerda, um atentado frustrado, cometido sem a aprovação de Getúlio e que contribuiria para levar ao fim o seu governo.
O que Lula e o PT têm de esclarecer
É patente a inadequação da analogia apresentada por José Jorge. O único fato em comum é que tanto Freud Godoy quanto Gregório Fortunato trabalharam na segurança do presidente. Não está em jogo nenhuma tentativa de homicídio. Nem foram apresentados, até agora, elementos suficientes para comprovar os vínculos de Freud com a negociação ilegal dos dossiês.
Por outro lado, não se pode negar que Gedimar e o empresário Valdebran Carlos Padilha da Silva foram presos, como diria minha avó, com a boca na botija. Tinham R$ 1,75 milhão em espécie, dinheiro que seria entregue em um hotel de São Paulo ao empresário Luiz Antônio Vedoin e o seu tio, Paulo Roberto Trevisan. Em troca, acredita-se, eles receberiam o tal dossiê, capaz de comprovar o envolvimento de Serra e Alckmin na venda superfaturada de ambulâncias para prefeituras.
Freud assegura que jamais tratou do tema com Gedimar ou quem quer que seja. O PT, tanto por sua direção nacional quanto pela cúpula estadual de São Paulo, também nega a participação do partido na compra de informações.
Mas está evidente que o governo Lula e o partido do presidente ainda têm muito a esclarecer. Afinal, Valdebran fazia parte do comitê de campanha da reeleição de Lula, no qual também prestava serviços Freud Godoy. Mais: a função de Valdebran era levantar e analisar informações. E, embora o PT não confirme, Gedimar foi visto algumas vezes no comitê central da campanha, em Brasília, onde trabalharia como segurança.
Algumas perguntas ainda não respondidas: se o PT nada deve no caso da atrapalhada operação de aquisição do dossiê, o que faziam Gedimar e Valdebran com os quase R$ 2 milhões apreendidos pela PF? De onde vieram esses recursos? Por que Freud, assessor pago com dinheiro público, trabalhava no comitê eleitoral do presidente-candidato? Como se permite aos Vedoin que saiam por aí vendendo dossiês se eles foram agraciados com o benefício da delação premiada exatamente para contar tudo o que sabem?
Em entrevista nesta segunda-feira (18), o presidente nacional do PT, deputado federal Ricardo Berzoini (SP), insinuou que tudo poderia não passar de uma armação contra o partido que, de acordo com as pesquisas de intenção de votos, tem grandes chances de ganhar a eleição presidencial no primeiro turno.
De fato, não faria sentido o PT colocar toda essa vantagem a perder apenas para ter em mãos informações cujo impacto eleitoral não se pode avaliar. O partido, reconheça-se, já foi vítima no passado de acusações infundadas em períodos eleitorais. Em 1989, foi envolvido no seqüestro do empresário Abílio Diniz. Meses atrás, foi responsabilizado por Serra e por outros próceres do PSDB e do PFL pelos atentados do Primeiro Comando da Capital (PCC).
O problema é que, desde a ascensão de Lula ao poder, a moldura de vítima deixou muitas vezes de encaixar no PT.
O que prevê a lei
Assim, permanece a pergunta: quem é vítima nesse caso? O PSDB, acusado injustamente de envolvimento na máfia dos sanguessugas? Ou o PT, lançado na lama em razão de uma história amalucada, forjada somente para aumentar as chances de realização do segundo turno nas eleições presidenciais?
Ou seriam ambos culpados? O PSDB e o PFL, por participação no escândalo das ambulâncias. O PT, por uma manobra desajeitada de compra de dossiê em que terminou metendo os pés pelas mãos? Ou a tal operação dossiê foi obra solitária de um militante petista que não contou com o aval da cúpula partidária?
Uma vez mais, estamos diante de muitas perguntas e poucas respostas. "Nem dá para concluir que o PT cometeu qualquer delito eleitoral nem é possível afirmar que Alckmin e Serra estão envolvidos no caso das ambulâncias", resume o advogado Joelson Dias, examinando o assunto sob a ótica da lei. "Nem de um lado nem de outro, está comprovado absolutamente nada".
Joelson vai além: "No caso da compra do dossiê, só é possível configurar delito se houver responsabilidade de partido, coligação ou candidato. Nessa hipótese, pode-se verificar se houve irregularidade na arrecadação dos recursos ou, eventualmente, abuso do poder econômico, por se entender que o valor utilizado para adquirir foi elevado demais. Mas a aquisição não é necessariamente ilegal. Se ficar comprovado que houve compra de dossiê, mas os recursos usados para isso foram legitimamente arrecadados e não ocorreu nenhum ilícito na utilização dessas informações, não vejo delito nenhum".
Ele conclui: "O mesmo ocorre em relação a participação do ex-ministro Serra nas operações de compra de ambulâncias. Nem todas as operações de aquisição dos veículos foram fraudulentas. Portanto, não se pode dizer que aquelas entregas de ambulâncias que ele prestigiou decorreram de processos irregulares. Nos dois casos, são fatos graves, que permitem comprovação das denúncias, mas que demandam profunda investigação".