Celso Lungaretti *
O partido criado pelos sobreviventes dos massacres da ditadura militar, pela esquerda católica e pelos sindicalistas do ABC chega ao ápice de um longo processo de descaracterização.
No seu manifesto de fundação, em fevereiro de 1980, cuspia fogo:
“O Partido dos Trabalhadores nasce da vontade de independência política dos trabalhadores, já cansados de servir de massa de manobra para os políticos e os partidos comprometidos com a manutenção da atual ordem econômica, social e política. (…) Os trabalhadores querem se organizar como força política autônoma. O PT pretende ser uma real expressão política de todos os explorados pelo sistema capitalista.
“…As riquezas naturais, que até hoje só têm servido aos interesses do grande capital nacional e internacional, deverão ser postas a serviço do bem-estar da coletividade. Para isso é preciso que as decisões sobre a economia se submetam aos interesses populares. Mas esses interesses não prevalecerão enquanto o poder político não expressar uma real representação popular, fundada nas organizações de base, para que se efetive o poder de decisão dos trabalhadores sobre a economia e os demais níveis da sociedade.
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“…O PT buscará conquistar a liberdade para que o povo possa construir uma sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores. O PT manifesta sua solidariedade à luta de todas as massas oprimidas do mundo“.
PublicidadeInfelizmente, bastou um resultado eleitoral insatisfatório em 1982 para começar a metamorfosear-se num partido da ordem, que expurgou uma a uma as tendências revolucionárias existentes no seu seio para tornar-se respeitável aos olhos dos eleitores preconceituosos – aqueles que haviam ficado estarrecidos quando a imprensa burguesa trombeteara que os candidatos do PT não tinham currículo, mas sim fichas criminais (sob a draconiana Lei Falcão, a propaganda eleitoral gratuita se restringia à exibição de fotos e dados pessoais dos candidatos, e os do PT não escondiam suas passagens pelas prisões da ditadura, pois se orgulhavam de terem sido os filhos da pátria que não fugiram à luta).
Entre a construção “de uma sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores” e a progressiva conquista de posições de poder dentro da sociedade capitalista, sem nenhuma pretensão real de revolucioná-la, foi prevalecendo, cada vez mais, o projeto pragmático, amoral e abastardado. Escancararam-se as portas para carreiristas e oportunistas de todos os matizes; o inchaço alterou a correlação de forças dentro do partido, desideologizando-o cada vez mais. As vitórias eleitorais, de meio, passaram a ser vistas como fim, a ser perseguido com unhas, dentes, indignidades e golpes baixos. Lula, que acusara Brizola de pisar até no pescoço da mãe para alcançar a Presidência da República, não hesitou em fechar os acordos mais podres e confraternizar com os piores inimigos de outrora, ao sabor das conveniências momentâneas.
Esquemas corruptos brotaram desde as primeiras prefeituras importantes assumidas e, no rumoroso caso Paulo de Tarso Venceslau x Roberto Teixeira, em 1998, o PT tomou (vide aqui) a deplorável decisão de expulsar um militante idealista que denunciava falcatruas e livrar a cara do empresário calculista que operava tais esquemas, um laranja podre que teria sido, inclusive, torturador do delegado Sérgio Fleury. Foi a senha para o liberou geral substituir o tradicional desapego pessoal dos quadros comunistas formados na velha escola do partidão.
Em 2002 o PT perdeu de vez sua alma, ao pactuar com os Mefistófeles de plantão que, se lhe fosse permitido assumir a Presidência da República após a previsível vitória eleitoral, não confrontaria o poder econômico, abdicando das decisões realmente importantes e limitando-se a gerenciar o varejo. Com o grande capital ditando a bel prazer as diretrizes macroeconômicas, nunca dantes neste país os lucros dos bancos, p. ex., foram tão escandalosos, com os recordes da agiotagem legalizada sendo anunciados triunfalmente pelo Bradesco e Itaú em quase todo mês.
Uma conjuntura econômica internacional extremamente favorável ao Brasil permitiu que os governos do PT na década passada dessem um tiquinho mais aos pobres sem tirar nada dos ricos, então todos ficaram felizes, com exceção da classe média, cujos integrantes mais prosaicos lamentavam perda de status e indignavam-se com a corrupção escancarada, enquanto seus melhores rebentos desiludiram-se com o abandono dos ideais igualitários e da postura de superioridade moral por parte do PT. Ver Lula aos beijos e abraços com os Sarneys, Malufs, Collors, Renans, Barbalhos e ACMs da vida sempre deu vontade de chorar!
A mistificação martelada pelos blogueiros amestrados atribui o desencanto com o PT, genericamente, à classe média privilegiada e consumista, omitindo que também sua componente idealista bateu asas. Que se façam panelaços no Jardim Paulista quando de um pronunciamento de Dilma na TV está na ordem natural das coisas, mas se os panelaços ocorrem também na boêmia Vila Madalena, reduto petista tradicional, os alarmes deveriam soar estridentes na cabeça dos grãos petistas. Caso fossem hoje gravados vídeos de campanha como aquele maravilhoso do Lula-lá, é provável que o do Fora, Dilma! reunisse estrelas muito mais fulgurantes que as do Fica, Dilma!.
Quando os formadores de opinião se vão, a pujança vai junto e sobra a estagnação fisiológica, a obsessão do poder pelo poder. A esquerda emergiu da ditadura com aura de martírio e simpatia generalizada da classe média, mas foi dilapidando tal capital político ao longo destes 30 anos, a ponto de hoje ver inclusive os melhores cidadãos dos estratos intermediários da sociedade majoritariamente posicionados do lado de lá da barricada.
Principal responsável por tal proeza às avessas, o PT nem sequer tenta corrigir o mal feito. Sua belicosa rede virtual dá como antecipadamente perdida a batalha para a reconquista de seus corações e mentes, preferindo hostilizá-los com pejorativos como coxinhas, mauricinhos, sem-fome, etc. A direita, penhorada, agradece.
Tudo isso desembocou na eleição pomo da discórdia de 2014, quando um partido sem propostas, sem programa e sem capacidade de insuflar esperanças oPTou por vencer a qualquer preço, sem em nenhum momento considerar que, desgastado como estava após 12 anos no poder, teria dificuldades imensas para governar no cenário de terra arrasada que se prenunciava para 2015 (e, talvez, anos seguintes também).
Se jogasse limpo, é bem provável que coubesse a Marina ou a Aécio a tarefa espinhosa e antipática de promover um ajuste recessivo, ficando o PT com prestígio intacto e caminho desimpedido para voltar ao poder com Lula em 2018.
Preferiu fazer uma campanha imunda como nunca dantes neste país se vira, apelando para a satanização dos adversários, a desinformação e o embuste desmedidos. Acabou salvando-se graças aos votos das regiões mais pobres e atrasadas, o que, Marx dixit, nunca funciona; nações embotam quando o seu polo retrógrado prevalece sobre o dinâmico. [Lembram quando a ditadura perdeu as grandes capitais e os municípios mais pujantes, passando a contar apenas com os grotões? Pois é, já estava nos estertores…]
Agora, o PT está colhendo o que plantou. Por Dilma haver jurado de pés juntos que não imporia aos trabalhadores os odiosos rigores do receituário neoliberal, atribuindo tais sinistros desígnios aos adversários, não tem moral nenhuma para exigir sangue, suor, trabalho e lágrimas dos brasileiros. Muito menos com a roubalheira da Petrobras presente o tempo todo no noticiário.
Veio daí a acachapante goleada que acaba de sofrer nas ruas; por quaisquer que sejam os critérios de mensuração, os inimigos venceram por, pelo menos, 10×1. Pior ainda que o chocolate aplicado pela Alemanha.
Perdidos os formadores de opinião, o Brasil avançado e as ruas, salta aos olhos que o governo do PT não conseguirá atravessar incólume os mares turbulentos que nos separam de 2018. Precisa dividir as responsabilidades do poder (formando um gabinete de crise ou articulando um governo de união nacional) ou delas abdicar de uma vez por todas (com a renúncia de Dilma) antes que o clamor das ruas vire rugido e os partidários do impeachment descubram o caminho legal para justificar o impedimento; ou que as vivandeiras de quartel convençam os fardados a meterem de novo os pés pelas mãos.
Os augúrios serão os piores possíveis se o PT continuar cometendo erros crassos em cascata –como o de sair às ruas no dia 13 apenas para fornecer um parâmetro de comparação que até as pedras sabiam que lhe seria extremamente desfavorável, ou como o de escalar ministros inexpressivos para falarem mais do mesmo quando o impacto das manifestações do dia 15 exigia um pronunciamento presidencial e uma verdadeira resposta ao clamor popular.
Como os técnicos de futebol, o PT tem de tirar um ano sabático para reciclar-se, preparar um novo repertório e, quem sabe, voltar a vencer. Neste momento, só tem desastres e fiascos pela frente. E nós brasileiros pagaremos muito caro se ele insistir nos desatinos atuais.
* Jornalista, escritor e ex-preso político. Mantém o blog Náufrago da Utopia.