Edemilson Paraná*
Desde as eleições de 2012, com especial intensidade a partir de 2013, ano marcado pelas chamadas “jornadas de junho”, o Psol – Partido Socialismo e Liberdade tem sido uma das legendas que mais crescem em número de filiados no Brasil. De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral, de 2010 até o momento atual o partido contabiliza estrondosos 276% de crescimento, média de 55% ao ano para o período. No Distrito Federal, os percentuais praticamente se repetem: aumento de 273% no número de filiados no mesmo período, média de 54% ao ano. É de amplo conhecimento que o partido igualmente avançou presença em mandatos parlamentares, prefeituras e entidades de classe. Em todo o país, desde 2010, o pequeno Psol tem visto praticamente dobrar seus percentuais de voto.
Há explicação para o fenômeno. Somado ao esgotamento do ciclo político petista, que abre espaço para partidos coerentes situados à sua esquerda, o amadurecimento e fortalecimento político da legenda jogam papéis cruciais nesse avanço. A defesa e prática da ética na política, aliada a uma linha política combativa e estridente em defesa das minorias, dos trabalhadores e do meio ambiente, fez crescer a simpatia da população pelo partido, especialmente entre os mais jovens. Seus parlamentares, recorrentemente premiados e reconhecidos por sua militância aguerrida, concorde-se ou não com suas posições, notoriamente representam a cota que resta de seriedade, coerência e resistência aos desmandos do poder a ocupar as agonizantes e caquéticas instituições do sistema político brasileiro.
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Nem tudo são flores, no entanto, neste que é o único partido da Câmara sem ligações com empreiteiras na Operação Lava Jato. Os últimos dias têm sido conturbados nas paragens socialistas. Envolto em uma luta interna acirrada, o partido está praticamente dividido ao meio em todo o país. No Distrito Federal, onde disputavam o comando da legenda os grupos representados pelas figuras do assistente social e militante LGBT Fábio Félix, um dos mais bem votados candidatos do partido em 2014, e o coletivo do ex-candidato Toninho e da ex-deputada federal Maninha, o congresso foi marcado por um duro e talvez irreconciliável rompimento.
Isso porque, depois de tentarem sem sucesso reverter o resultado das eleições internas por meio da anulação de uma das plenárias de base do partido, o grupo de Toninho abandonou o congresso do último sábado (07/11), abrindo o caminho para a eleição por unanimidade de Fábio Félix como presidente para o próximo biênio. Apesar da legitimidade política e formal da eleição de Félix, a disputa pode parar nas instâncias superiores do partido e até mesmo na Justiça, já que o grupo de Toninho insiste em anunciá-lo como presidente eleito em evento paralelo.
O que explicaria tal divisão justamente agora, em momento tão favorável na história do partido no DF e em todo o país?
Ainda em 2013, neste mesmo Congresso em Foco, publiquei texto tratando do impasses que o partido teria de enfrentar a partir da eclosão das chamadas jornadas de junho. Tendo entrado em decadência o ciclo petista de governo, fazia-se imperiosa a necessidade de o Psol finalmente superar a velha querela interna que perpassou sua existência e funcionamento até então: entre correntes de “anti-petistas” e “petistas das origens”. Não se tratava apenas uma questão “interna”, mas de programa e apostas políticas orientadas para fora, para o conjunto do povo brasileiro.
Apenas por meio da inovação política, recriando-se como algo novo e diferente em relação ao quadro de forças vigente, o Psol poderia ocupar a avenida que a conjuntura pós-petista passava a abrir para sua passagem. É esse mesmo dilema que explica, de certo modo, as graves disputas que temos assistido desde então. O Psol nada mais faz do que agonizar as dores e contradições da mesma conjuntura que vem viabilizando seu espantoso crescimento desde 2010.
Conectados a esse cenário de superação estrutural do projeto petista e dispostos a apostar em novas práticas, novos instrumentos de luta e movimentos sociais como via de reconstrução da esquerda brasileira, uma nova geração de militantes sociais tem exigido protagonismo decisório. Jovens, ousados, conectados, creem-se portadores do futuro. Do outro lado do front, saudosos militantes provenientes do PT – afeitos a uma retórica desatualizada, e muitos dos quais já acomodados ao naco que convenientemente lhes cabe no tabuleiro político – resistem em abrir alas aos ventos de mudança. É precisamente o que se passa neste exato momento no Psol do Distrito Federal: um acerto de contas no qual se cobra praticar dentro o que se prega fora dos muros partidários.
Como contraponto, se dirá, um conjunto de “agrupamentos universitários” e “pequenas organizações radicais” descoladas do cotidiano dos mais pobres e da classe trabalhadora não seria capaz de tal missão histórica de refundação. Há lugar para essa dúvida, desde que formulada de modo honesto. Um pouco de autocrítica, no entanto, nos faria bem a todos: nenhum partido político brasileiro, da esquerda à direita, está de fato organicamente vinculado a organizações de massa de trabalhadores; tão menos uma fração da pequena elite dirigente do Psol constituída por tais “petistas das origens” – agrupamento debilmente coesionado graças a mecanismos tacanhos e burocráticos de gestão de seu pequeno poder.
É que para além do mero acerto ou erro de apostas políticas conjunturais de tendências do partido que, sim, devem ser ponderados a sério processos mais amplos como mudanças no perfil e linguagens da participação política em geral, a burocratização de entidades de classe e sua consequente crise de representatividade, a fragmentação e precarização estrutural do trabalho que tencionam modelos lineares de organização centralizada e hierarquizada, entre outros fatores, tem feito, em todo o mundo, afastar os trabalhadores da via partidária. Sabe-se que a reestruturação produtiva e o neoliberalismo representaram duros golpes no poder de organização e barganha da classe trabalhadora em todo mundo. No Brasil não foi diferente. Somos parte dessa conjuntura adversa.
Se é justo relembrar, no entanto, que essa constatação não pode salvar o partido de suas próprias falhas nesse aspecto, é igualmente correto o fato de que tais erros não são privilégio de nenhum de seus agrupamentos em particular. Nós de toda a esquerda brasileira devemos, juntos, buscar soluções para esse beco estrutural, bem como para as demais crises e dramas que caracterizam a situação presente do país.
Ademais, tal meritório questionamento tampouco autoriza negar ad hoc qualquer justa reivindicação por ampliação da democracia partidária, como ora se faz. Ao contrário, apenas transparente, livre, aberto e radicalmente democrático é que um partido, oxigenado e revigorado pela criatividade popular, será digno de ser considerado como instrumento de organização política dos trabalhadores e da cidadania ativa em tempos tão adversos.
Isso nos leva, por fim, a um último questionamento: por que expor em público as feridas abertas da disputa interna quanto todos os demais partidos trabalharam ao longo da história e seguem trabalhando para escondê-las?
Pela simples razão de que, para nós, a disputa partidária – longe de ser fim em si mesma ou uma mera tarefa constitutiva da escalada por gabinetes em estruturas de governo – não está separada da disputa política mais ampla da sociedade como um todo. Ao contrário, é, e deve sempre ser, parte inseparável desta. As questões do partido são as questões da vida do povo que este anseia (auto) organizar. Daí porque reivindicações como democracia interna, transparência e mecanismos de controle coletivo e democrático estarem para muito além de meros tópicos “internos” ou “procedimentais”.
Conforme definiu certa vez o escritor e militante português Álvaro Cunhal, à esquerda cabe a contraditória, porém incontornável, tarefa de construir “partidos com paredes de vidro”. É por isso e para isso que o novo Psol sofre as talvez inevitáveis dores de seu crescimento. Será mais um teste de fogo para este pequeno partido que, contra tudo e contra todos, já nasceu lutando.
* Militante do Psol-DF, é jornalista, mestre e doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).