Na universidade americana, na aula de negociação e resolução de conflitos, descobri a base teórica de algo que já percebia há bastante tempo no cenário partidário nacional. É possível concentrar capital político criando artificialmente ambientes polarizados, elegendo convenientemente inimigos que, no fundo, defendem com unhas e dentes o sistema vigente. A regra é não permitir o acesso de qualquer elemento que represente o novo, ou incorpora-lo oportunamente, eliminando a entrada de ideias e atores independentes nos círculos de poder.
Campeonatos de pôquer profissional são bons exemplos dessa dinâmica. Como jogo de soma-zero, para um jogador ganhar, necessariamente outros devem perder. No entanto, é possível que os melhores sempre ganhem. Parece improvável ao senso comum, mas basta que se tornem tão bons adversários quanto jogadores. Será suficiente que se diferenciem formalmente, mesmo fazendo exatamente a mesma coisa. Precisam apenas formar torcidas, provocar disputas. Prova disso é a montanha de dinheiro que organizadores de grandes torneios pagam aos competidores mais famosos. A bolsa para participar é tão grande quanto o prêmio em disputa nas partidas finais.
O mesmo ocorre com o cliente que escolhe entre marcas de sabão em pó num supermercado. Ele não percebe que a variedade de produtos reforça a decisão de compra, mas que o fabricante de vários deles pode ser o mesmo. As diversas embalagens cumprem seu papel. Traços meramente formais, como cores e cheiros, embora muito instintivos, não revelam distinções estruturais. Notando a diferenciação, quase sempre elaborada a partir de restrições irracionais à marca preterida, o consumidor faz sua escolha sem saber que reforça a falta de competição real.
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Nem é preciso falar das gigantes dos refrigerantes. Historicamente, enquanto dividem os maiores mercados de bebidas do mundo e se mantém intocáveis em suas posições, cada empresa estimula uma competição quase cega em relação ao produto concorrente. A consequência é um senso de pertencimento hiperinflado que resulta em esforços e resultados acima da média, um verdadeiro ‘vestir a camisa’ pelos funcionários dessas empresas, o que não se observa na alta direção quando o sistema sofre alguma ameaça.
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Parece óbvio que numa democracia, para conquistar poder político, é necessário se fazer eleito pelo povo. Não obstante, a cada eleição, a escolha livre e informada – um dos pilares democráticos – raramente está presente nos votos de milhões de brasileiros.
Um dos motivos para a repetição interminável do fenômeno é nossa predileção pelas aparências. Um sistema que garanta espaço para que cidadãos manifestem suas preferências, mesmo baseado em informações assimétricas, corrupto e pouco representativo, ainda mantém sua forma. Nossos poderes e demais formadores de opinião acham suficiente, pois priorizam a ufania do período eleitoral, a ‘festa da democracia’. São assim nossas eleições, cheias de pompa e graça, mas vazias de conteúdo.
Mas o que deu errado nesses últimos 30 anos? De que forma PSDB e PT, os partidos que pretendiam transformar o Brasil depois de 1988 e lutaram heroicamente para conseguir se estabelecer como alternativa, atuariam se chegassem ao poder? Diante de tantas dificuldades para ganhar voz e após sacrifícios para modular discursos e vencer preconceitos, será que a nova política representada por eles nos entregaria mais democracia, gerando espaços informados de decisão pública e promovendo a renovação política por meio da formação de novas lideranças?
A resposta já sabemos de alguma forma. E mesmo que faltem muitas variáveis a essa equação, é indesculpável não termos nada além do que observamos na superfície polarizada do espectro político-ideológico. Se as conquistas são inegáveis e ajudaram o país a dar passos consideráveis na direção certa, a sustentabilidade dessas políticas está baseada na permanência dessas estruturas no poder. Quando elas enfraquecem, todo o acúmulo pode simplesmente se perder e termos que começar tudo de novo. O custo da não institucionalização da política é alto demais para o país.
Um diagnóstico provável é que em vez de soluções, petistas e tucanos tenham lançado mão de produtos mais atrativos para conquistar o eleitorado: ideologias ‘fechadas’, inegociáveis tanto para a intelectualidade progressista quanto conservadora. No dia a dia, porém, governaram conforme as circunstâncias. E o fizeram de forma parecida. Daqui a cem anos, os ‘livros’ possivelmente tratarão esse período da história do Brasil como um processo contínuo e inescapável de desenvolvimento, sem distinguir cores partidárias: redemocratização, ajuste fiscal, crescimento econômico, políticas sociais.
Se, em 2018, teremos novamente a ‘festa da democracia’, resta a lição de que incitar pessoas a adotarem campos políticos como inimigos mortais pode consolidar posições particulares por décadas, mas não permite a construção de uma nação.
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Se notou a falta do P(MDB) nessa história, não perca o próximo capítulo da série.
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