Uma mulher é violentada sexualmente no Brasil a cada 11 minutos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Só em 2014, o país registrou ao menos 47.646 estupros – dado considerado abaixo da realidade devido ao grande número de mulheres que não registram queixa. Na última semana dois casos de estupro coletivo chocaram os brasileiros e ganharam repercussão internacional: no Piauí, uma garota de 17 anos foi violentada por cinco jovens; no Rio de Janeiro, uma adolescente de 16 anos foi estuprada por mais de 30 homens.
Em meio a esse cenário de barbárie, tramitam no Congresso Nacional ao menos dois projetos de lei que, em vez de facilitar, pretendem dificultar o atendimento às vítimas de estupro na rede pública de saúde. Uma dessas propostas (PL 5069/13) é de autoria do presidente afastado da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em outubro e está pronta para votação em plenário.
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Atendimento policial
O projeto contraria norma técnica do Ministério da Saúde, em vigor desde 2005, que desobriga a vítima de estupro a apresentar um boletim de ocorrência para ter acesso ao aborto. Pela proposição, também assinada pelo atual líder do governo na Câmara, André Moura (PSC-SE), a vítima de estupro deve ser obrigada a fazer um exame de corpo de delito para que seja autorizada a interromper a gravidez. A medida representa um constrangimento a mais à vítima de violência sexual, que terá de se submeter a um atendimento policial.
Hoje, o aborto só é permitido em caso de estupro, de risco para a saúde da mãe ou em caso de anencefalia. Pela proposta, o profissional da área da saúde que auxiliar ou induzir a mulher a qualquer prática abortiva terá sua pena agravada. O projeto de Cunha e Moura tem outros 11 coautores.
O texto, relatado pelo deputado Evandro Gussi (PV-SP), é alvo de campanhas nas redes sociais e de protestos encampados por lideranças da bancada feminina na Câmara. Para a deputada Erika Kokay (PT-DF), retirar da proposta o direito de informação da mulher é a mais grave ação sobre seus direitos. “A mulher vítima de violência atendida na rede pública vai passar por uma via-crúcis, se for obrigada a passar pelo exame de corpo de delito. Porque nós sabemos que existe um convênio para que esse exame seja feito nas próprias unidades de saúde, mas isso não é realidade no Brasil”, diz a deputada.
Gussi afirma que sua intenção não é dificultar o acesso às vítimas de violência sexual, mas a prática do aborto. “A intenção é impedir a prática de aborto de forma disfarçada nos serviços de saúde. Há muito espaço na legislação para isso e precisamos fechar essa porta”, afirma o relator em seu parecer.
Terreno para aborto
Este argumento também está por trás do projeto de lei (PL 6055/2013). A proposição revoga a lei (12.845/2013) que obriga os hospitais públicos a prestarem atendimento médico gratuito às vítimas de violência sexual. Na justificativa da proposta, seus 13 autores afirmam que a lei em vigor prepara terreno para a descriminalização do aborto no Brasil. Segundo eles, a norma incentiva o “aborto químico” ao garantir às vítimas de estupro o acesso à chamada pílula do dia seguinte.
O PL que prevê a revogação completa da Lei de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual é de autoria do Pastor Eurico (PHS-PE) e foi assinado pelos deputados Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), Leonardo Quintão (PMDB-MG), Alfredo Kaefer (PSL-PR), Jair Bolsonaro (PSC-RJ) – parlamentares em exercício – e Eurico Júnior (PV-RJ), Dr. Grilo (SD-MG), Otoniel Lima (PRB-SP), William Dib (PSDB-SP), João Dado (SD-SP), Henrique Afonso (PV-AC), Zequinha Marinho (PSC-PA) e Costa Ferreira (PSC-MA), estes não reeleitos em 2014. A proposta está na Comissão de Seguridade Social e Família.
Direito à informação
Relator do PL 5069/2013, Evandro Gussi modificou o texto a fim de diminuir a resistência de parte dos parlamentares, mas o embate continua. Ele voltou atrás e deixou na proposta a garantia de que as mulheres devem conhecer seus direitos ao serem atendidas no serviço de saúde. O deputado argumenta que o direito à informação não precisa estar em nenhuma lei, pois já é garantido constitucionalmente. Mas a bancada feminina contesta essa tese e defende que é importante que as vítimas saibam sobre seu direito à pílula do dia seguinte, e ao aborto caso o estupro resulte em gravidez.
A deputada Maria do Rosário (PT-RS) ressalta que o projeto já foi bem pior, com criminalização até mesmo de profissionais que auxiliassem no aborto “sob o pretexto de redução de danos”. Para ela, o problema é que a redação do texto não permite saber as reais consequências da eventual mudança na lei. “Eu gostaria de ter certeza de que a mulher vai ser atendida pelo serviço de saúde, e não numa delegacia, porque é isso que preconizam todos os especialistas. Devemos votar essa proposta pensando nas vítimas”, enfatizou.
Aumento de pena
Se na Câmara a tendência é dificultar o acesso às vítimas de estupro, ao menos no Senado há iniciativas em sentido contrário. Os senadores Romário (PSB-RJ), Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) e Raimundo Lira (PMDB-PB) são autores de projetos de leis (73/2015, 618/2015 e 469,2015, respectivamente) que pretendem endurecer as penas contra quem comete crime de violência sexual.
Na justificativa de sua proposta, apresentada em setembro de 2015, a senadora Vanessa lembrou que “são cada vez mais corriqueiros no Brasil os casos de estupros cometidos por mais de um agente, os chamados ‘estupros coletivos'”.
“Não se pode mais tolerar tamanha brutalidade. É preciso punir, de maneira diferenciada e exemplar os responsáveis por esses delitos. Nesse sentido, apresentamos projeto que cria causa de aumento de pena específica para os crimes de estupro e estupro de vulnerável, quando praticados por duas ou mais pessoas”, diz a senadora. A proposta de Vanessa prevê aumento em um terço da pena especificada na legislação atual aos autores da violência.
O projeto de Romário também aumenta a punição. Pela lei atual, constranger alguém mediante violência a ter conjunção carnal pode resultar em penas de seis até dez anos na cadeia. Se da conduta resultar lesão corporal grave ou se a vítima estiver entre 14 e 18 anos de idade, a punição passa a ser de oito até 12 anos de reclusão. E se do crime resultar morte, o criminoso fica de 12 até 30 anos na cadeia.
Pela proposta que agora vai ser analisada no Senado, a punição passa a ser de pelo menos oito até 12 anos de reclusão. Se da conduta resultar lesão corporal grave ou se a vítima estiver entre 14 e 18 anos, a pena passa a ser de 12 até 15 anos e se provocar morte, a punição mínima será de 20 anos até o máximo permitido pela legislação, 30 anos.
Já o Projeto de Lei 469, de Raimundo Lira, aumenta a pena para diversos crimes, inclusive de natureza sexual, cometidos no raio de 100 metros de residências e escolas. “A intenção do projeto é proteger as residências e as escolas, porque as ruas, avenidas, parques e estradas já são do domínio dos bandidos”, alega o peemedebista.
Gritos contra estupro coletivo se multiplicam na rede e nas ruas