A Reforma da Previdência é um dos mais importantes e sensíveis assuntos do momento. A Proposta de Emenda Constituição (PEC) n. 287/2016 tramita com pompa e circunstância na Câmara dos Deputados. O governo de plantão, capitaneado pelos senhores Temer, Meirelles e Padilha, afirma que as contas públicas caminharão para o colapso na hipótese de rejeição da proposição. São dois os argumentos (motivações) principais para a reforma na ótica dos governistas: a) déficit crescente nas contas previdenciárias e b) trajetória de envelhecimento da população.
O aumento da expectativa de vida da população, um dos pilares do complexo problema, deve ser comemorado como representativo da melhoria das condições de vida dos brasileiros de uma forma geral. Efetivamente, esse fenômeno gera uma pressão sobre as contas da previdência social. Entretanto, é preciso analisar com todas as cautelas técnicas e total transparência a extensão do impacto em questão. Nesse ponto, segundo registro de inúmeras entidades da sociedade civil, os cálculos governamentais não são alçados à arena do debate público sobre o assunto.
Já o déficit é divulgado com insistência como o fator decisivo para mudanças profundamente restritivas nos direitos dos trabalhadores na seara previdenciária. Eis um
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O primeiro aspecto a ser considerado envolve os critérios de cálculo para se concluir pelo déficit apocalíptico, conforme a narrativa governamental. São três os problemas mais graves: a) não são contabilizados os valores de responsabilidade do Poder Público no financiamento das atividades em questão; b) a Seguridade Social, tal como definida na Constituição, não é analisada como um conjunto integrado de ações e fontes específicas de financiamento e c) a inclusão das despesas do regime próprio de previdência social da União (relativo aos servidores públicos). Inúmeros especialistas, com amplo reconhecimento acadêmico, demonstram a situação superavitária da Seguridade Social (somando todas as receitas constitucionalmente definidas e as pertinentes despesas) (http://www.revistaforum.com.br/mariafro/2016/06/06/48463).
A ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), injustamente atacada por membros da comissão da Reforma da Previdência na Câmara dos Deputados (pretendem que o governo busque, até mesmo na Justiça, calar a meritória campanha de esclarecimento sobre os verdadeiros números da receita e da despesa da Seguridade Social), demonstra os resultados financeiros positivos, ano após ano, desse conjunto integrado de ações fundamentais (saúde, previdência e assistência social) para garantir uma vida minimamente digna ao trabalhador brasileiro (http://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/Documentos_01_02_2017_08_39_19.pdf).
A conjuntura recessiva experimentada pela economia brasileira também deve ser levada na devida conta. Para tristeza geral, temos quase 13 (treze) milhões de brasileiros desempregados (http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,populacao-desempregada-atinge-12-9-milhoes-de-pessoas,70001678179). Esse número enorme impacta negativamente as receitas previdenciárias. Afinal, deixam de ser recolhidas as contribuições desses trabalhadores e as respectivas contribuições patronais. Não parece razoável ou prudente definir mudanças radicais e de longo prazo nos benefícios previdenciários num ambiente de retração da atividade econômica. Uma retomada do crescimento econômico e níveis de emprego bem mais generosos projetariam outro cenário para as contas previdenciárias.
Capítulo de singular importância no debate está relacionado com as renúncias fiscais no campo das contribuições para a Seguridade Social. Também conhecidas por desonerações tributárias, atingiram o impressionante patamar de 158 bilhões de reais em 2015. Esse dado está presente em estudo realizado em conjunto pela ANFIP e pelo DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) (http://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/Documentos_01_02_2017_08_39_19.pdf).Ainda no campo do aumento das receitas para Seguridade Social são praticamente esquecidas as medidas organizadas e sistemáticas contra a sonegação fiscal, o planejamento tributário, a recuperação dos valores inscritos em Dívida Ativa, as fraudes e os privilégios inseridos na legislação. Anote-se que parte dessas “preocupações” estão expressamente previstas no art. 13 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101, de 2000). “A sonegação de impostos no Brasil já atingiu a cifra de R$ 420 bilhões até agora em 2015. A estimativa é do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), que instala nesta quinta-feira, 22, um painel em São Paulo que mostra esses números” (http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,sonegacao-de-impostos-no-brasil-chega-a-r-420-bi-em-2015,1784149). Já a dívida ativa de natureza previdenciária ultrapassa os 370 bilhões de reais (http://csbbrasil.org.br/blog/2016/03/28/divida-ativa-da-previdencia-chega-a-r-374-bi).
Curiosamente, para não dizer sintomaticamente, foram aprovadas sucessivas emendas constitucionais, de 1994 a 2015, retirando parte considerável das receitas da Seguridade Social e permitindo a livre utilização desses recursos em outras despesas governamentais. Essas medidas são conhecidas como DRU (Desvinculação das Receitas da União). Cálculos de especialistas indicam a supressão de cerca de 500 bilhões de reais da Seguridade Social, via DRU, nos anos de 2006 a 2015 (http://www.anfip.org.br/doc/publicacoes/Documentos_01_02_2017_08_39_19.pdf). Uma importantíssima indagação se impõe. Por que retirar recursos volumosos de uma área apontada, no discurso governamental, como deficitária?
Vale registrar que a DRU sobreviverá, na forma da Emenda Constitucional n. 93, de 8 de setembro de 2016, até 31 de dezembro de 2023. De maneira inédita, em relação às emendas anteriores, veiculadoras da DRU, foi inserida a seguinte intercalação no texto normativo: “sem prejuízo do pagamento das despesas do Regime Geral da Previdência Social”. Essa ressalva, com redação “estranha”, não significa necessariamente uma proteção ao financiamento dos benefícios previdenciários. O comando em questão permite várias leituras. Uma delas, mais generosa, indica que as receitas das contribuições sociais (como um todo) devem garantir o pagamentos dos benefícios previdenciários. Outra possibilidade, com deletérias consequências, aponta para uma segregação das contribuições previdenciárias, e sua subsequente destinação, do conjunto das contribuições sociais.
Cabe, ainda, uma palavra sobre a afirmação oficial, repetida à exaustão e fortemente disseminada pelos grandes meios de comunicação, no sentido de que a previdência social responde pela maior parte das despesas públicas. Essa assertiva não se sustenta quando são devidamente contabilizados os gastos com juros da dívida pública. Vários estudos realizados por organizações da sociedade civil brasileira, como a Auditoria Cidadã da Dívida (http://www.auditoriacidada.org.br), apontam essa última como a rubrica de despesa mais relevante. Esse confronto, ademais, demonstra que são subtraídas do debate público partes importantíssimas da política econômica, como as vertentes monetárias e cambiais (operações compromissadas, swaps cambiais, taxa de juros, operações com títulos da dívida pública e seu serviço, formação de reservas internacionais, tamanho da base monetária, etc). Por razões políticas bem definidas, notadamente para facilitar o ataque aos direitos dos trabalhadores do setor público e do setor privado, parece, só parece, que todos os males estão concentrados na parte fiscal da política econômica.
Todos esses elementos desaconselham qualquer mudança açodada nos requisitos para usufruto dos direitos previdenciários, notadamente as aposentadorias (fundamentais para a efetivação da proteção social realizadora da dignidade da pessoa humana inscrita na Constituição). A reforma da previdência reclama uma profunda, minuciosa e democrática auditoria na Seguridade Social como um todo. Somente um debate social consequente, que parta da efetiva realidade das contas públicas nessa área, poderá estabelecer de forma legítima e adequada a extensão dos eventuais ajustes necessários, notadamente por razões de evolução da distribuição etária da população.