Michel Temer, na condição de presidente da República, será lembrado como:
a) golpista. Afinal, boa parte da sociedade brasileira identifica no processo de impeachment e afastamento da senhora Dilma Rousseff a efetivação de um golpe político com a utilização das instituições estatais;
b) alguém envolvido de corpo e alma com escândalos de corrupção. Nessa linha, basta ler as denúncias oferecidas pela Procuradoria-Geral da República, os relatos dos delatores e as intermináveis peripécias de seus amigos-assessores;
c) praticante do fisiologismo político mais rasteiro e repugnante. Durante seu governo a imprensa não cansa de noticiar que as relações com sua base de sustentação parlamentar passam longe, bem longe, de uma discussão programática e de implementação de políticas públicas. Para o espanto de todos, notadamente porque se trata de uma suposta “normalidade”, as “negociações” passam por cargos, verbas e todo tipo de vantagem decorrente da condução do Poder Público;
d) representante dos interesses das elites socioeconômicas. São frequentes as reuniões e “acertos de passo” com os mais mesquinhos segmentos do mercado. Invariavelmente, as inúmeras medidas propostas e aprovadas contemplam redução de custos, perdão de dívidas, renúncias fiscais e as mais diversas facilidades para aumento crescente das margens de lucro e ganhos variados;
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e) protagonista das mais intensas ações governamentais voltadas para a precarização, enfraquecimento e eliminação de direitos sociais. Praticamente toda a linha “reformista” adotada pelo governo federal ataca a complexa rede de proteção social desenhada na Constituição de 1988 para realizar justiça social pela via do combate às desigualdades sociais, a pobreza e a marginalização;
Publicidadef) recordista de impopularidade. Provavelmente, em função das características anteriormente listadas, o atual Presidente amarga os menores índices de aceitação registrados na história da República.
Parece que o esforço de Sua Excelência para manchar a biografia não tem limites. Segundo noticia a imprensa:
“O presidente da República, Michel Temer, afirmou nesta sexta-feira (8/12) que, caso a reforma da Previdência não seja aprovada, pode haver cortes em salários. ‘Quando chegar em 2020, talvez tenha que haver corte de salários, se não iniciarmos agora a reforma da Previdência’, disse o presidente durante almoço da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee)./De acordo com o jornal O Globo, Temer afirmou que o déficit da Previdência será de R$ 180 bilhões este ano. ‘Sem a reforma, serão mais R$ 45 bilhões, no ano que vem, e outros R$ 50 bilhões no ano seguinte”, afirmou. O presidente utilizou diversos dados e números para justificar um possível corte nos vencimentos’ (https://www.metropoles.com/brasil/politica-br/segundo-temer-sem-reforma-da-previdencia-pode-haver-corte-em-salarios).
Eis o inusitado presente de natal do senhor Temer. Um anúncio de corte de salários por suposta falta de recursos decorrente da não aprovação de sua reforma da Previdência (seria melhor qualificar de reforma contra a Previdência). Com essa infeliz declaração, o senhor Temer mais uma vez mostra sua verdadeira face.
Em primeiro lugar, deve ser observado que o presidente da República desconhece ou menospreza a Constituição e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Nos termos do art. 169 do Texto Maior e dos artigos 22 e 23 da Lei Complementar nº 101, de 2000, existe um conjunto de providências a serem adotadas diante de um gasto com pessoal acima de certo patamar da receita corrente líquida. A primeira dessas iniciativas, consiste na redução significativa das despesas com cargos comissionados. Entre as medidas previstas na legislação de regência não constam cortes ou suspensões do pagamento de remunerações.
Em segundo lugar, os deficits anunciados (discutíveis, no mínimo) não apresentam expressão numérica que possam indicar um colapso inédito nas contas públicas da União. Um dado pode demonstrar a extensão do exagero do discurso presidencial. Segundo a Receita Federal do Brasil, somente a arrecadação tributária da União em 2015 alcançou a impressionante cifra de R$ 1,31 trilhão.
Em terceiro lugar, se fosse efetivamente o caso, existem áreas nas contas públicas bem mais “vocacionadas” para sofrerem mudanças profundas, até porque desprovidos de natureza alimentícia, como acontece com as remunerações dos servidores públicos. Eis uma lista, meramente exemplificativa, a ser considerada:
a) os juros da dívida pública consumem mais de 500 bilhões de reais por ano, segundo dados do Banco Central do Brasil. Por que não suspender ou cortar, total ou parcialmente, esse monumental gasto, diante de uma eventual “falta de dinheiro” nos cofres públicos?;
b) as desonerações fiscais são imensas. As renúncias de receitas tributárias realizadas e projetadas, entre os anos de 2010 e 2018, alcançarão o montante de aproximadamente 500 bilhões de reais, consoante informação da Receita Federal do Brasil. Eis um bom e largo campo para suspensões e cortes;
c) os perdões fiscais são concedidos contemplando benefícios cada vez maiores. Um cálculo conservador, realizado pelo Unafisco Nacional, aponta que três Medidas Provisórias veiculadoras de benefícios fiscais em 2017 (números 783, 793 e 795) “… custarão aos cofres públicos cerca de R$ 256 bilhões”. Essa é outra seara vocacionada para obtenção de significativos recursos para os cofres públicos;
d) os subsídios de várias naturezas concedidos pelo governo constituem um capítulo especial em matéria de gastos públicos. A maior parte desses benefícios não aparecem expressamente no orçamento discutido e aprovado no Congresso Nacional. “Segundo o Ministério da Fazenda, de 2003 a 2016 os subsídios embutidos em operações de crédito e financeiras somaram quase R$ 1 trilhão – 420 bilhões do total foram para o setor produtivo” (Folha de S.Paulo, dia 6 de agosto de 2017). Um corte criterioso em subsídios indevidos produziria recursos bilionários em favor dos cofres públicos;
e) o volume de “operações compromissadas” cresceu tanto nos últimos anos que foi responsável por parte significativa do aumento do endividamento público. No Brasil, os condutores da política econômica converteram, na prática, um mero e relativamente modesto instrumento de política monetária, realizado pelo mundo afora, em um grandioso mecanismo de transferência de riqueza do conjunto da sociedade para setores já altamente privilegiados do todo-poderoso mercado financeiro. Em linguagem simples e direta, as operações compromissadas são “compras” de dinheiro dos bancos, realizadas pelo Banco Central, em troca de títulos da dívida pública com cláusula de revenda. Elas reduzem a liquidez (quantidade de moeda em circulação) e são fundamentais para a manutenção da taxa de juros em patamares altíssimos. Esses juros enormes são pagos pelo Banco Central aos bancos no momento de retomada dos títulos. Em dezembro de 2011, 311,86 bilhões de reais do estoque da dívida pública brasileira correspondiam a “operações compromissadas”. Em dezembro de 2012, o valor subiu para 497,5 bilhões de reais. Em dezembro de 2014, o número chegou a 791,57 bilhões de reais. Em dezembro de 2015, o quantitativo alcançou 894,54 bilhões de reais. Em dezembro de 2016, o valor atingiu o patamar de 1.026,39 bilhões de reais. Os dados estão disponíveis no site do Banco Central. Não seria de bom tom controlar esses tipos de operações? Os benefícios para os cofres públicos não seriam infinitamente mais relevantes que a caça às remunerações dos servidores públicos?;
f) as reservas internacionais alcançam o patamar de 380 bilhões de dólares (ou 1,2 trilhão de reais). A maior parte desse valor corresponde a títulos americanos que rendem juros baixíssimos. Inúmeros economistas destacam: f.1) que o nível das reservas é exageradamente alto (deveria observar um patamar menor) e f.2) o custo de formação (ou de carregamento) é muito elevado. Isso porque o Brasil lança títulos remunerados por juros SELIC (altíssimos) para captar os recursos a serem utilizados na formação das reservas em títulos americanos e dólares. Essas operações foram (e são) responsáveis por boa parte do aumento da dívida pública brasileira nos últimos anos. Eis outro bom campo, para controlado e disciplinado, render bons frutos aos cofres públicos;
g) a tributação sobre grandes fortunas, prevista na Constituição desde 1988 e jamais implementada, poderia alcançar de forma significativa realidades econômicas como os mais de 500 bilhões de dólares de brasileiros em paraísos fiscais, conforme notícia da BBC Brasil. Aliás, os brasileiros têm quarta maior fortuna do mundo nesses “portos seguros”.
É evidente o absurdo de se chamar os servidores públicos para pagar a conta de eventuais desarranjos nas contas públicas ante vantagens enormes de poderosos segmentos socioeconômicos. Esse quadro dantesco não passou despercebido pelo ministro Ricardo Lewandowski ao conceder cautelar, na ADIn nº 5.809, restabelecendo o reajuste remuneratório dos servidores públicos federais e evitando a majoração da alíquota da contribuição previdenciária. Afirmou o referido magistrado:
“Vale notar que, da leitura da exposição de motivos do ato aqui vergastado, conclui-se que uma das razões apontadas para a suspensão e o cancelamento dos reajustes foi ‘a situação de forte restrição fiscal na economia brasileira e suas consequências, dentre as quais se destaca a redução do valor de arrecadação das receitas públicas’. (…) Ocorre que tem sido amplamente noticiado pelos meios de comunicação a concessão de desonerações fiscais para diversos setores econômicos e a aprovação de novo programa de parcelamento de tributos no âmbito do governo federal, por meio do qual, segundo projeção orçamentária, com a concessão de diversos benefícios, a União arrecadará cerca de R$ 8,8 bilhões, ao invés dos R$ 13 bilhões projetados inicialmente (…)./Nessa esteira, vale registrar a contundente iniquidade das medidas abrigadas na MP aqui contestada, que fazem com que os servidores públicos arquem indevidamente com as consequências de uma série de verdadeiras prebendas fiscais, que beneficiaram setores privilegiados da economia …”
Os baixíssimos níveis de popularidade do senhor Temer indicam claramente que a sociedade brasileira, quase na totalidade, não se deixa enganar. Uma parte dela identifica de forma clara e consciente a natureza e os compromissos espúrios do governo instalado. A outra parte, mesmo intuitivamente, possui a mesma percepção.
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