Antonio Carlos Pannunzio*
O caso Isabella, que há mais de um mês vem causando grande comoção social pelas múltiplas brutalidades sofridas pela pequena vítima, tem todas as condições para deflagrar, a sociedade brasileira, uma discussão necessária, mas sempre adiada.
Ante a multiplicação dos crimes violentos, formou-se na sociedade uma expectativa de que os autores de tais delitos sejam punidos prontamente e com rigor exemplar. Entretanto, toda a nossa legislação penal e a aplicação que dela fazem os tribunais têm sido no sentido oposto.
Casos em que a autoria de uma ação que roubou a vida de alguém é evidente levam vários anos para serem julgados pelo Tribunal do Júri. Mesmo que, neste, a condenação seja unânime, o sentenciado não é preso de imediato.
Como regra, aguarda em liberdade que os recursos cabíveis sejam apreciados pelos tribunais. À luz dos atuais princípios constitucionais e da legislação em vigor, essa realidade não vai mudar. A mídia anda cheia de exemplos disso. São crimes que só não provocam indignação semelhante ao caso antes mencionado porque não tiveram da mídia uma cobertura tão intensa, chegando ao conhecimento de um número menor de pessoas.
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Particularmente rico é o capítulo dos crimes ditos passionais. Um jornalista que assassinou a namorada, e um médico que, além disso, esquartejou a sua, condenados em primeira instância, estão recorrendo em liberdade. Por trás dessas situações, há novidades, algumas boas, outras ruins, mas que, invariavelmente, colidem com aquilo que a sociedade desejaria que acontecesse.
Uma conseqüência incontornável dos princípios de proteção ao indivíduo, fixados pela Constituição de 1988, é a mudança dos métodos de trabalho da polícia, do Ministério Público e do Judiciário.
A cena do crime deve ser sempre preservada e a entrada da polícia no local somente ocorrer após os peritos terem recolhido para exame todos os materiais dos quais se possa extrair alguma evidência. Não é o que acontece na maioria dos casos.
Cada medida solicitada por delegados ou promotores que importe em restrição à liberdade do investigado precisa ser fundamentada em elementos de fato e de direito, demonstrados de maneira inquestionável. A prisão preventiva fundada na comoção social gerada pelo crime ou não é aceita pela Justiça ou, acolhida na instância inicial, inevitavelmente cai no reexame da decisão pelos tribunais.
A investigação exige meticulosidade extrema, apoiada em provas periciais ou documentais acima de controvérsia e obtidas de maneira plenamente legal, sob pena de facilitar muito o trabalho da defesa. O uso de provas obtidas de forma discutível será anulado, com base na teoria que importamos do direito americano e levamos a extremo, dos frutos da árvore envenenada. Sob essa perspectiva, nunca foi mais difícil obter uma condenação criminal que resulte no efetivo encarceramento do sentenciado.
No médio prazo, com o melhor equipamento dos órgãos de criminalística e um melhor treinamento de policiais e peritos para a preservação das cenas de crime, isso será uma proteção efetiva aos direitos do inocente e garantirá a coleta de elementos que fundamentem, de maneira irretocável, a condenação do culpado.
Mas a transição para esse estado ideal está demorando muito mais do que deveria. Nesse meio tempo, o país convive com situações revoltantes. Pessoas sob forte suspeita, réus confessos e até condenados pelo Júri permanecem em liberdade.
Enquanto isso, acusados pobres ou sem prestígio e até crianças apodrecem nas cadeias, com base em decisões meramente administrativas. O direito protege a todos. Mas, entre nós, de momento, protege muito mais quem tem nome ilustre, status social, curso superior e dinheiro para pagar um advogado caro.
Também há que se encontrar, no Legislativo, através de mudanças constitucionais e da legislação ordinária, meios e modos de impedir que as políticas de execução e progressão penal, aplicadas a todos os condenados, restituam à liberdade, muito antes do que seria desejável, os autores de crimes bárbaros.
Essa é uma realidade chocante surgida da aplicação, pelo Judiciário, de princípios definidos no âmbito da Constituição ou da legislação infraconstitucional.
É tempo de o Congresso fazer valer o ensinamento de Ruy Barbosa, na “Oração aos Moços”, de que “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. (…) Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”. Do esquecimento dessa verdade luminosa, está resultando em nosso país uma situação que deixa desamparados os mais frágeis e encoraja a repetição das histórias de horror.
Artigo publicado em 15/05/2008. Última atualização em 12/08/2008.
*Antonio Carlos Pannunzio (PSDB-SP), 64 anos, é deputado federal e membro da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional.