Thiago Lopes Carneiro *
Parte 1: As diferenças
Tive oportunidade de viajar à Suécia por algumas vezes. Lá, fui surpreendido por uma visão política tão peculiar que mereceu ser estudada. Ao conversar com suecos e suecas que conheci, as opiniões deles pareciam estranhas. E às vezes eu falava a eles sobre como pensam os brasileiros. Conversando com Andreas, um simpático engenheiro sueco, eu lhe disse “No Brasil, há um ditado: a pessoa honesta deve ficar longe da política, para não se corromper”. Andreas achou aquilo muito estranho e respondeu: “Não deveria ser o contrário? A pessoa honesta deveria se envolver com a política, para melhorá-la!”
Em outro dia, enquanto eu esperava um ônibus na Estação Central de Estocolmo (Stockholms Centralstation), encontro Anina, uma adolescente sueco-brasileira que fala português muito bem. Ela me conta que fazia tempo que não lia notícias sobre corrupção no jornal; a última notícia que ela lembrava era de uma deputada que comprou chocolate com o cartão corporativo. Pergunto: “se há tão pouca corrupção, o que vocês leem nos jornais?”. Anina responde: “li outro dia que os suecos estão muito insatisfeitos com o parlamento”. Sim, ela disse insatisfeitos. Segundo ela, a coalização governista levou os serviços públicos a piorarem, então os jornais diziam que a composição do parlamento provavelmente mudaria. Veja que a insatisfação de que ela falava estava direcionada não à corrupção, mas à qualidade do trabalho dos parlamentares, que não estavam atendendo aos anseios da população sueca.
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Voltei ao Brasil certo de que deveria fazer um estudo comparando a visão política de brasileiros(as) e suecos(as). Será que a forma como os cidadãos “olham” para a política faz diferença? Será que brasileiros e suecos expressam suas insatisfações de forma diferente? Existe alguma forma de encorajar as pessoas a participarem da política, que funcione bem para suecos e brasileiros? O que podemos aprender em um estudo comparativo?
A pesquisa não recebeu apoio financeiro, então precisei optar pela opção mais barata. Entre junho e agosto de 2014, apliquei questionários via internet, no Brasil e na Suécia. Isto pôs um limite sobre a amostragem: apenas pessoas que tivessem acesso à internet e que conseguissem responder às perguntas sem ajuda de um entrevistador poderiam participar. Desta maneira, a parcela com escolaridade inferior ao 2º grau ficou sub-representada no Brasil, e o mesmo aconteceu com a parcela com escolaridade inferior ao 1º grau completo na Suécia. Por isto, os resultados a seguir devem ser lidos com cautela. Eles dão indícios interessantes sobre os processos da participação, mas ainda será necessário repetir a pesquisa (oxalá com apoio financeiro independente) para alcançar amostras representativas.
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Qualidade da atuação dos políticos, corrupção e visão dos cidadãos
Com base nas respostas dos participantes brasileiros e suecos, foi possível calcular uma “nota” (de zero a 10) que eles dão à qualidade da representação (a qualidade do trabalho dos parlamentares) e à corrupção dos parlamentares. Para a corrupção, os participantes brasileiros deram em média 7,41, enquanto os participantes suecos deram 4,08; ou seja, a corrupção foi significativamente percebida como maior no Brasil do que na Suécia. Quanto à qualidade da representação, a nota dada pelos participantes brasileiros foi de 2,02, significativamente inferior àquela dada pelos participantes suecos: 4,68.
Veja que os parlamentares suecos receberam uma avaliação mais positiva (melhor qualidade, menor corrupção), mas os números não são “extraordinários”. A corrupção é avaliada próxima ao ponto médio, e a qualidade percebida é um pouco abaixo da metade. Embora um brasileiro possa imaginar os parlamentares suecos como “quase perfeitos”, os cidadãos suecos parecem ser bastante críticos quanto aos seus parlamentares. Os suecos não percebem a corrupção como “extremamente baixa”, nem a qualidade do trabalho de seus parlamentares como “extremamente alta”.
Na verdade, estes resultados refletem percepções de cidadãos brasileiros e suecos sobre seus respectivos políticos, já presentes nos noticiários e no senso comum de cada país. Os cidadãos suecos exigem mais do que honestidade, exigem que o trabalho dos políticos se reflita em bem-estar para a população. Lembra do comentário de Anina? A deterioração da qualidade dos serviços públicos deixou os suecos insatisfeitos com o governo (a Suécia é parlamentarista, portanto o parlamento é alvo dessa insatisfação). E isso se refletiria nas urnas: os analistas políticos previam que a composição do parlamento mudaria bastante (o que de fato aconteceu nas eleições suecas de 2014), o que no sistema parlamentarista sueco significava uma mudança de governo.
Como brasileiros e suecos “leem” seus parlamentos
Os parlamentos são arenas de debates entre grupos que defendem interesses divergentes – quase sempre interesses opostos. Então, busquei compreender o que os participantes faziam para reconhecer esses grupos de parlamentares – ou seja, como eles “leem” o parlamento. Perguntei: com que frequência você se importa com essas informações (que eram apresentadas em uma lista) sobre os parlamentares que discutem assuntos de seu interesse?
Os participantes suecos prestam mais atenção às informações “clássicas” sobre a política: a qual partido o parlamentar pertence, se é governo ou oposição, se é de esquerda ou direita. Para os participantes brasileiros, esta informação é ainda importante, mas não suficiente. Aliás, a disciplina partidária na Suécia é rigorosa: políticos que não votam de acordo com seu partido arriscam naufragar sua carreira política. No Brasil, não é tão fácil assim reconhecer as diferenças entre os partidos, então o “currículo” (quem o parlamentar representa) e as informações pessoais (gênero e religião) sobre os parlamentares crescem em importância.
Este resultado sugere que os participantes brasileiros precisam de mais informações para compreender as diferenças entre os parlamentares do que os participantes suecos. Em outras palavras, os suecos podem compreender melhor as diferenças entre os políticos se baseando nas diferenças entre os partidos. No Brasil, onde a disciplina partidária não é tão rigorosa, os eleitores acabam identificando os parlamentares por informações adicionais. O termo “bancada”, muito utilizado no Brasil (bancada ruralista, bancada sindicalista, bancada ambientalista, etc.) não encontra paralelo na Suécia e nem em vários outros países.
Como brasileiros e suecos participam da política
Em nossos testes estatísticos, os participantes brasileiros que sabem diferenciar os políticos são geralmente mais engajados em ação política. Logo, aquelas informações que ajudam a diferenciar os parlamentares são realmente importantes no Brasil. Na Suécia, os participantes que estão insatisfeitos com a qualidade do trabalho dos parlamentares são os mais engajados. Estes participantes “mais ativos” no Brasil e na Suécia buscam informações sobre os parlamentares na internet, gostam de discutir política e usam mídias sociais para fins políticos. Quando necessário, entram em contato com parlamentares, com a imprensa, participam de audiências públicas ou eventos organizados por partidos, por exemplo.
Os participantes brasileiros que percebem baixa qualidade do trabalho dos políticos aderem a diversas formas de participação política. Além dos protestos nas ruas, participantes brasileiros “tomam para si” a responsabilidade de melhorar o país e se engajam em consumo politizado (como evitar produtos poluentes ou fabricados por mão-de-obra escrava), e ação comunitária (voluntariado, trabalhar em ONGs, igrejas, etc.).
E na Suécia? É bem verdade que os suecos têm bons motivos para estarem mais satisfeitos com as instituições políticas do que os brasileiros. Mas a política tem suas intempéries, e episódios de corrupção (sim, são poucos, mas acontecem) ou decisões que desagradam os cidadãos suecos os levam a protestar nas ruas ou a se desencantar da política.
Os suecos encaram como corrupção coisas que passariam despercebidas no Brasil, como a participação de parlamentares em eventos com passagem e hospedagem pagos por entes privados, pois isso atenta contra a isenção que uma pessoa pública deve ter em seu mandato. Roubar milhões? Nem pensar. Ou seja, a tolerância à corrupção é baixíssima – por isto qualquer deslize dos políticos é visto como um erro grave, o que resultou numa nota “4” de corrupção.
Enfim, os resultados apontam que a insatisfação pode funcionar como combustível para a participação política. O lado negativo é que a insatisfação pode levar cidadãos ao desencanto pela política e a considerar legítimo o uso da violência como forma de protesto. É ainda difícil saber a diferença entre aqueles que usam sua insatisfação de forma construtiva e aqueles que se desencantam ou se tornam violentos. Isto é assunto para novas pesquisas.
Parte 2: A semelhança
Há um ponto em comum, muito importante, para entender por que as pessoas decidem se engajar em ação política, no Brasil ou na Suécia. Os participantes mais engajados são aqueles que encorajam amigos/parentes e são encorajados por eles a participar da política. Isso vale para participar de protestos, discutir política, assinar petições, escrever à imprensa, contatar parlamentares, praticar o consumo politizado, filiar-se a partidos e outras formas de ação.
Nos testes de predição estatística, esse encorajamento mútuo mostrou-se mais forte do que qualquer outra variável. Logo, prestar atenção à opinião de amigos politizados, receber apoio deles e apoiá-los contribui para formar uma rede politicamente engajada. Além disso, o tamanho dessa rede faz sim, diferença. Dito de modo simples, se você tem um amigo que vai a uma manifestação, suas chances de ir também aumentam. Se você tem cinco amigos indo à manifestação, essas chances se multiplicam. E isso vale para todos aqueles outros tipos de participação já mencionados.
Mas não se trata apenas de encorajar com palavras, e sim com exemplos. Ao invés de dizer “vão lá e lutem pelos seus direitos”, é preciso que o encorajador seja um exemplo e realmente saia à luta por seus direitos. E a participação política pode ir muito além de protestos nas ruas. Participantes da pesquisa, no Brasil e na Suécia, praticavam vários tipos de ação política. Alguns participantes entraram em contato com políticos, participaram de audiências públicas, ou eram partícipes de uma associação (não necessariamente um partido). Além disso, hábitos como se manter informado, pesquisar informações sobre a atuação de políticos e discutir política ajudam manter a rede “aquecida”. Quando surge uma oportunidade de participar, os membros dessa rede a colocam em movimento e buscam provocar mudanças nas instituições.
Ao final da pesquisa, concluí que sim, as pessoas podem ser encorajadas a participar da política. E ninguém melhor para fazer isto do que seus amigos, parentes, colegas, etc. Fazer parte de uma “rede” de pessoas politicamente engajadas é a chave da participação. No Brasil, ou na Suécia.
Qual a implicação prática desta pesquisa?
Dissemos que participar de uma rede politizada (um grupo, dito de modo simples) é a chave para participar da política. Então, para se engajar em ação política, é importante unir-se a um grupo. Mas como saber se o grupo do qual eu participo realmente ajuda a melhorar o país, o Estado, a cidade, ou minha vizinhança? Como saber se, ao invés disto, eu estou me aliando a pessoas que podem partir para radicalismos fúteis ou violentos?
A beleza das redes politicamente engajadas reside na mobilização dos interesses coletivos. As pessoas entram para a política com aquilo que elas são: professores, advogados, deficientes físicos, jogadores de futebol, cristãos, LGBTs, negros, índios, operários, empresários, etc. E, por serem quem são, têm interesses comuns àqueles que lhes são parecidos. Nascem aí as redes, que podem permanecer informais ou se transformarem em associações, sindicatos, partidos, etc. As redes aumentam as chances de um interesse coletivo ser alcançado, pois podem organizar as demandas e enfrentar riscos que dificilmente seriam suplantados pela ação de uma pessoa só.
Mas nem tudo são flores. Uma rede pode moldar a opinião de seus membros, a ponto de eles não darem ouvidos a quem pensa diferente. E essa surdez ideológica pode levar a atitudes agressivas – desde a rotulagem depreciativa (criar apelidos para desclassificar os adversários) até ofensas mais sérias e agressão física. Se, por um lado, a surdez ideológica pode ser adquirida pela influência de outros, a escuta democrática – aquela que se dá entre pessoas de pensamentos opostos – pode ser treinada e praticada.
É preciso ter clareza de que seus valores individuais podem ser semelhantes, mas nunca são idênticos aos valores do grupo ao qual você se associa. Para complicar, os seus valores e os valores do grupo mudam ao longo do tempo (e poucos são os que percebem isso). Eventualmente, você pode se deparar com um valor do seu grupo que é oposto ao que você defende. E aí você terá que fazer uma escolha: mudar de opinião para “entrar na onda” do grupo ou dizer aos seus colegas que você discorda deles.
Os grupos tendem a tratar seus membros da mesma maneira como tratam seus “adversários”. Se você é membro do grupo, mas ousa discordar de algum ponto, seus pares “ideologicamente surdos” podem tentar te punir por suas ideias diferentes, e exigir lealdade total ao pensamento do grupo. Por outro lado, se seu grupo admite debater ideias diferentes com outros grupos, também aceitará debater ideias internamente. Você se sentirá mais à vontade para discordar em alguns pontos, sem o medo de receber um rótulo depreciativo, ficar isolado ou ser expulso.
Qual a alternativa? Não procure grupos que se apresentam como um pacote ideológico pronto, do tipo “aceite tudo ou caia fora”. Procure grupos que tenham identidade própria, mas estejam dispostos a ouvir divergências. Assim, ao encontrar um grupo de ideias distintas, o debate tenderá a ser produtivo, ao invés de uma frívola troca de farpas e rótulos. E reconhecer que o outro tem razão em alguns pontos não é sinal de fraqueza, mas é o caminho para o acordo e para as mudanças duradouras.
*Thiago Lopes Carneiro concluiu seu curso de doutorado em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília com a pesquisa Engajamento Político: Participação Política no Brasil e na Suécia, predito por Estereótipos sobre Parlamentares, Educação Política e Contágio Comportamental. O trabalho foi orientado pelos professores Cláudio Vaz Torres (Universidade de Brasília) e Joakim Ekman (Södertörns University, na Suécia). Este artigo resume resultados da pesquisa, e inclui opiniões do autor que extrapolam os resultados descritos na tese. O autor é membro de uma equipe que desenvolve tecnologias participativas e de transparência na Câmara dos Deputados. A tese completa está disponível para download (em inglês). Dúvidas sobre a pesquisa podem ser enviadas para o e-mail pesquisa@meubrasil.info . O link com a tese está aqui
A elaboração deste relato da pesquisa contou com o apoio da aluna Izabella Melo, graduanda em Psicologia pela UnB