Lúcio Lambranho e Eduardo Militão*
De nada adiantou a criação de uma força-tarefa composta por auditores da Receita Federal e do INSS, procuradores da República e policiais federais para investigar fraudes ligadas às entidades filantrópicas por mais de dois anos. E também deve ser jogada pela janela toda a apuração, incluindo as escutas telefônicas comprometedoras captadas pela Operação Fariseu (leia mais) da Polícia Federal (PF), que revelou ao país como agia um grupo que supostamente vendia pareceres a favor de entidades filantrópicas no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS).
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Pois todo esse esforço de investigação, que poderia render pelo menos R$ 2 bilhões aos cofres da Previdência Social, foi desprezado pelo governo federal. Por meio da Medida Provisória (MP) 446/08, o governo deu anistia para todos os recursos contra irregularidades cometidas por entidades, a maior parte delas levantadas a partir de denúncias de auditores da Receita Federal e do INSS.
Essa cifra corresponde apenas aos processos sob a análise do Ministério da Previdência, cerca de mil casos. A renúncia fiscal do governo pode ser ainda maior que esse valor, considerando que 1.274 recursos, que serão extintos pela MP, foram feitos junto ao CNAS.
Publicada ontem (10), mas assinada na última sexta-feira (7), a MP (leia a íntegra) tem várias semelhanças com o Projeto de Lei 3021/08, enviado em 17 de julho pelo então ministro da Previdência, Luiz Marinho, ao Congresso Nacional.
A principal delas é a transferência da concessão dos Certificados de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas) para os ministérios da Educação, Saúde e Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o que retira a competência do CNAS. A diferença é que a MP concede, principalmente nos artigos do capítulo das disposições gerais e transitórias, a anistia mesmo para entidades ainda sob a investigação do Ministério Público Federal (MPF) e da PF.
Intenção antiga
Como revelou o Congresso em Foco ainda em março deste ano, Luiz Marinho tentou promover esse mesmo modelo de anistia no próprio projeto de lei. O documento obtido com exclusividade pelo site mostrava que o projeto previa a extinção de centenas de recursos do INSS, da Receita Federal e da Receita Previdenciária que pedem o cancelamento dos Cebas, concedidos irregularmente pelo mesmo CNAS.
Tratava-se da nota da consultoria jurídica do Ministério da Previdência Social (MPS) nº 070-2008, assinada pelo advogado da União Daniel Demonte Moreira, pelo procurador federal Felipe de Araújo Lima e pela consultora jurídica do MPS Maria Abadia Alves, nomeada por Marinho.
De acordo com a nota, o artigo 34 do anteprojeto de lei pretendia “prestigiar” todas as decisões dos conselheiros do CNAS. O item nº 14 da nota afirmava que “o art. 34 extinguia os recursos” sob a análise do MPS. “Assim, o Poder Público está abrindo mão dos seus próprios recursos administrativos e prestigiando as decisões do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS”.
Com a publicação da reportagem, Marinho recuou e retirou esses artigos do anteprojeto antes de enviá-lo ao Congresso. Mas o governo resolveu retomar esse processo com a justificativa de que devia “zerar” o passivo das entidades filantrópicas.
Em muitos casos, ações da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) já cobram na Justiça a devolução da isenção concedida irregularmente pelo CNAS às entidades beneficentes.
Uma fonte da PGFN ouvida pelo site se mostrou surpresa com a anistia proposta pela MP. Pelo que estava sendo negociado dentro do governo, segundo esse mesmo interlocutor, a MP seguiria para o Congresso sem a extinção dos processos. O ônus da anistia ficaria com os parlamentares, que se tratariam do assunto por meio de emendas à MP.
“Absurdo completo”
Com a MP, o governo também tornou nula a Portaria Interministerial 241, de 31 de julho deste ano. Por esse ato, 380 de um total de mil processos que aguardam julgamento no Ministério da Previdência foram mandados aos ministérios para os quais as entidades prestam serviços como saúde, educação e assistência social. É que com a Súmula Vinculante nº 8, o Supremo Tribunal Federal reduziu de dez para cinco anos o prazo de decadência para cobrança das contribuições da Seguridade Social.
Mas, com a MP, a transferência e o julgamento desses processos mais urgentes nos quais o governo poderia ganhar receita caso cancelasse o Cebas dessas entidades, foram anulados. Nesse caso, o Executivo não poderia usar a urgência como argumento. É o que defende o procurador da República Pedro Machado, um dos quatro integrantes da força-tarefa do MPF.
Os procuradores ainda estudam se entrarão ou não com uma ação civil pública contra a MP do governo. Machado, porém, é taxativo ao ser posicionar contra a anistia embutida no texto.
“Isso é um absurdo completo. Eles abrem mão de uma renúncia fiscal brutal, mas a urgência da MP é de quem fraudou o certificado ou não cumpriu os requisitos e agora vai gozar de isenção completa”, avalia o procurador sobre o argumento de que o chamado princípio da decadência motivou a edição da MP.
“O governo se contradiz com essa MP, pois o então ministro Marinho disse que não pretendia editar nenhuma medida provisória e que o tema precisava de um debate democrático com o projeto de lei no Congresso”, completa Machado.
“Anistia no escuro”
O procurador da República também argumenta que juridicamente a MP fere a Constituição Federal ao propor renúncias fiscais “irrestritas” sem mostrar outras fontes de custeio. Segundo Machado, isso fica claro no parágrafo 5° do artigo 195:
“Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”.
Além disso, explica Machado, a experiência da Operação Fariseu mostra que as fraudes são feitas por grandes entidades no descumprimento dos requisitos exigidos pela lei e que só são verificadas ou denunciadas por auditoria fiscal e contábil. “Pelo que sabemos, os ministérios que vão julgar esses processos não têm um quadro de pessoal qualificado para dar conta disso. Por isso, essa transferência é, no mínimo, perigosa”, adverte o procurador da República.
O integrante da força-tarefa do MPF manifesta sua preocupação a partir de um relatório da Advocacia-Geral da União (AGU) que, segundo Machado, aponta que oito conselheiros do CNAS praticaram improbidade administrativa a partir da análise de dados apreendidos e investigados pela Operação Fariseu. “E, mesmo assim, o governo vai conceder anistia para os atos praticados por esses conselheiros. É uma anistia no escuro”, critica.
Em nota à imprensa, o Ministério da Previdência alega que a MP torna as normas para a obtenção dos certificados de filantropia mais rígidas e garante a continuidade dos serviços sociais (leia mais).
Na contramão
Dois deputados que acompanham de perto a tramitação do Projeto de Lei 3021/08 – que regulamenta os certificados de isenção de impostos para as filantrópicas – não gostaram da anistia proposta pela Medida Provisória 446, publicada ontem.
O relator do PL 3021/08 na Comissão de Educação da Câmara foi pego de surpresa. Gastão Vieira (PMDB-MA) disse que soube da publicação apenas na manhã de ontem (10). A MP foi assinada na sexta-feira passada.
Ele afirma que ainda não leu o texto. Mas, informado pela reportagem do Congresso em Foco sobre o teor da proposição, avaliou que a certificação sumária prevista pela MP é um erro.
“Isso está muito na contramão do que eu penso”, disse Vieira, destacando que ainda iria tomar pé da situação nesta terça-feira (11). “O principal problema é o lixo de recursos não examinados, principalmente no MEC.”
Ele apresentará o relatório preliminar na Comissão de Educação amanhã. Com publicação da MP, o parecer de Vieira pode mudar.
Privilégios
Ao sair da Comissão de Educação, o projeto vai para a Comissão de Seguridade Social e da Família, na qual o deputado Paulo Rubem Santiago (PDT-PE) solicitou a relatoria do PL 3021.
A par do tema, ele é contra anistia promovida pela MP. “Toda anistia é complicada, porque privilegia quem não cumpriu com a lei.” Ele diz que as entidades filantrópicas sérias são prejudicadas. “Quem se comportou de acordo com a lei é desprestigiado. É um estímulo ao mau comportamento”, protesta Paulo Rubem.
O deputado está cético se conseguirá a relatoria do projeto na Comissão de Seguridade. Diz que o presidente do colegiado, Jofran Frejat (PR-DF), afirmou haver muitos parlamentares interessados na tarefa. Relatar a MP será mais difícil ainda.
“Isso é só para os bens aventurados. O Arlindo [Chinaglia (PT-SP), presidente da Câmara], só bota gente escolhida a dedo pelo governo”, reclama Paulo Rubem.
*Colaborou Mário Coelho
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