Lourival Mendes *
Muito se tem discutido sobre a PEC 37/2011, de minha autoria. Alguns opositores insistem em patrocinar uma campanha em setores da mídia tentando macular os reais propósitos dessa proposta de emenda constitucional. Com todo o respeito, a superficialidade leva a conclusões apressadas. Se me permitem, gostaria de mencionar alguns argumentos.
Entre as instituições que concordam com a impossibilidade de o Ministério Público investigar – ou seja, apoiam a PEC 37/2011 –, estão a Ordem dos Advogados do Brasil, a Advocacia-Geral da União, a Defensoria Pública, a Polícia Federal e as polícias civis. Quem discorda é o Ministério Público.
A Ordem dos Advogados do Brasil é autora da ação direta de inconstitucionalidade (Adin nº 4.220) que pretende deixar claro que o texto constitucional não permitiu que o Ministério Público investigasse. Da mesma maneira, manifestou-se a Advocacia-Geral da União. Renomados juristas como os desembargadores Edson Smaniotto (TJDFT) e Alberto José Tavares Vieira da Silva (TRF 1ª) e o constitucionalista Ives Gandra da Silva Martins já se declararam, em diversos momentos, favoráveis à PEC 37/11.
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Fica a seguinte pergunta: será que toda uma comunidade jurídica estaria errada e somente o órgão acusador estaria certo?.
A discussão passa por juízo de igualdade das partes no processo. Há na gênese do processo um princípio denominado “paridade de armas”, ou seja, as partes têm de ter igualdade de meios e oportunidades durante o processo. Num processo justo, tanto a defesa quanto a acusação têm as mesmas chances de acusar e defender.
Investigar é produzir provas. Investigar é levantar os dados e informações inerentes a um crime. Se uma das partes do processo (parte acusatória) puder produzir as provas, e a parte ex-adversa (defesa) não tiver essa oportunidade, então quebramos a paridade de armas no processo.
No Brasil, temos a separação da função de investigar (polícia judiciária), que irá produzir as provas a serem levadas à análise do juízo; da função de acusar (Ministério Público); da função de defender (advocacia pública ou privada e a Defensoria Pública); e da função de julgar (magistratura).
Se a parte acusatória for quem produz as provas, logicamente serão produzidas as provas que interessem à acusação, com vistas à condenação. A defesa ficará prejudicada. Quem garante que o órgão acusador (MP) irá se preocupar com as provas de defesa?
A polícia, por sua vez, não é acusação nem defesa. Ela atua numa fase antecedente ao processo (inquérito policial), e produz as provas a serem levadas a juízo, provas a serem contraditadas pela acusação e defesa durante o processo, provas a serem analisadas pelo juiz, dotado de imparcialidade.
E, apenas lembrando, a acusação (Ministério Público) é dotada de orçamento e servidores para realizar tarefas. Na grande maioria dos casos, a defesa resume-se a um único advogado. Se quem investiga for quem acusa, teremos uma distorção no processo.
É importante não nos esquecermos do fundamento ético da posição de nosso sistema processual. Quando se adentra ao estudo da Ética, somos logo encantados pelo utilitarismo, o qual leva à conclusão de que se um determinado fim for nobre, então é possível e justificável que se utilize de qualquer meio.
Esse mesmo utilitarismo aproxima-se em muito da máxima de Maquiavel, parafraseada no dito popular de que os fins justificam os meios. Ou seja, se a corrupção em nosso país ainda é grande, então passemos por cima da igualdade das partes e condenemos em massa os corruptos. Todavia, essa máxima também foi muito utilizada por Hegel na formação do reich alemão, por Robespierre no período do terror da França, e pelos períodos ditatoriais existentes na história de nosso país.
Permitir que o MP investigue seria criar uma superposição da acusação em relação à defesa. Seria quebrar a paridade de armas e negar a existência de um processo baseado em princípios democráticos. Chegaríamos à máxima de que, para se condenar um corrupto, tudo é válido. Esqueçamos as provas que a Polícia Judiciária coleta, as quais servirão a todo o sistema de justiça criminal, ou seja, tanto para a acusação quanto para a defesa. Esqueçamos também que pessoas podem ser condenadas injustamente. Nessa linha o que importaria seria tão somente a acusação, porque o que realmente importaria seria o fim. Ou seja, a condenação. Os fins justificariam os meios.
Sem dúvida alguma, é importante que o Brasil evolua e atinja um grau de moralidade pública, ninguém é a favor da corrupção, notadamente um delegado de polícia. Todavia, para chegarmos a esse estágio não podemos macular o processo, desrespeitar garantias constitucionais e instalarmos um Estado acusador ou Estado do terror.
Lembrei-me neste contexto de um dos meus mais diletos escritores, Franz Kafka. Em permitindo que o MP investigue, teríamos um processo kafkaniano, no qual a acusação produz as provas a serem utilizadas no processo. A defesa não teria meios de provar as suas teses, pois não existiria mais uma instituição desvinculada da acusação (polícia judiciária) para inventariar todo tipo de prova (no inquérito policial).
Devemos nos lembrar que uma das primeiras preocupações de um regime não democrático é orientar e direcionar o aparelho policial para a acusação. Em sentido contrário, a principal garantia de uma democracia é a separação e o distanciamento da polícia judiciária do órgão acusador. Se tivermos nossas polícias judiciárias servindo aos interesses da acusação, significa dizer que teremos todo o Estado trabalhando para condenar pessoas.
As polícias judiciárias têm a função de esclarecer os fatos. Cabe a elas produzir as provas a serem posteriormente ofertadas às partes (acusação e defesa) a fim de defenderem seus legítimos interesses e ao juízo para que possa prolatar sua decisão final.
Por esse motivo o trabalho da polícia judiciária tem de ser conduzido com isenção e imparcialidade. O Ministério Público é parte do processo. Por isso, é de sua natureza agir com parcialidade. Não cabe a ele produzir provas. É ilegítimo que investigue.
Não podemos nos esquecer de que a grande maioria dos inquéritos serve também para a defesa. É comum ouvir críticas ao inquérito policial dizendo que há um grande número de inquéritos que são arquivados sem denúncia. Essa é a maior prova de que nosso sistema está correto, pois o inquérito policial não se destina a acusar pessoas. A finalidade do inquérito e da polícia judiciária é demonstrar os fatos. O resultado do apurado, investigado e reconstituído poderá ser de que houve ou não crime. A conclusão pode ser que houve um crime, mas em legítima defesa. Ou que o fato aconteceu por um acidente, evento da natureza etc.
A advocacia também se vale dos elementos colhidos e contidos nos inquéritos para formular suas teses de defesa. E como seria um sistema no qual o Ministério Público foi quem investigou e se preocupou em inventariar unicamente as provas de acusação?
Por isso é que tanto a OAB, a Defensoria, a AGU quanto as polícias civil e federal defendem que a investigação seja feita por policiais. As polícias não são parte no processo. Atuam numa etapa antecedente. Sofrem o controle externo do MP, mas não trabalham para a acusação. Da mesma forma, também estão sujeitos ao controle externo da advocacia, que pode requerer diligências ou acompanhar o feito, ter vistas etc. (Súmula Vinculante nº 14 do STF).
E é justamente por isso que o MP luta, faz algumas décadas, para que a polícia seja subordinada a ele, pois tendo o controle sobre a força de trabalho e os meios de produção (parafraseando Marx), então terá domínio sobre todo o processo, conseguindo o resultado que bem lhe aprouver.
O grande prejudicado com uma eventual autorização constitucional ou legal para que o Ministério Público investigue é justamente o indivíduo. O cidadão é quem sofrerá as consequências. A defesa do cidadão é que ficará sem ter elementos para defendê-lo. No atual sistema, a polícia judiciária coleta todos os elementos e os registra no inquérito policial, o qual pode ser auditado e controlado por acusação e defesa.
Foi justamente nessa orientação ideológica que os parlamentares que participaram da Constituinte de 1988 não permitiram que o MP investigasse. Todavia, o que se tem visto é o MP instaurar procedimentos investigativos sobre os mais diversos argumentos. Nesse afã, o Ministério Público criou uma linha argumentativa de que a Constituição Federal de 1988 lhe outorgaria esse poder. Daí a necessidade da PEC 37/11 para reafirmar a intenção do constituinte de separar as funções de Estado e manter o atual processo democrático, respeitando-se a paridade entre acusação e defesa.
Aqui não se trata de falarmos de uma preocupação das polícias judiciárias em defender sua função constitucional, mas de resguardar a higidez das funções de Estado e do sistema processual penal brasileiro. Por todos esses motivos que a PEC 37/11 foi batizada de PEC da Legalidade.
Se não bastassem tais argumentos, gostaria de frisar que, em homenagem ao princípio da eficiência inserido no artigo 37 da Carta Magna, cabe a cada ente estatal desempenhar uma única missão constitucional.
Não há razões plausíveis para dizer que a mesma função caberia a duas ou mais instituições públicas. Isso poderia resultar em retrabalho, ou duplicidade de trabalho com dispêndio de dinheiro público. Por exemplo, a condução da economia cabe ao Ministério da Fazenda. Seria ilógico se o governo resolvesse criar dentro do Ministério da Saúde uma estrutura paralela para estudar a condução da economia nacional. Da mesma forma, seria ilógico termos a polícia judiciária e o MP investigando simultaneamente, sob o pseudoargumento de que, quanto mais gente investigando, melhor para o país. Essa situação anacrônica autorizaria então o país a criar vários exércitos caso entrasse em guerra (pois quanto mais, melhor). O que temos visto na história é que, ainda que estejamos em situações de crise aguda (guerra), não se autoriza duplicidade de funções, mantendo-se um único exército com coordenação única, e sem haver duplicidade de funções.
Ora, a máquina pública é regida pelos princípios da eficiência, economicidade e legalidade. Na situação em tela, teríamos a duplicidade de gastos com o dinheiro público, duplicidade de funções e um resultado pouco eficiente.
Não me parece sensato um sistema que autorize o Ministério Público a usurpar a principal função da polícia judiciária (investigar), que privilegie a acusação em detrimento da defesa e que permita funções sobrepostas gastando em duplicidade o dinheiro público.
Por fim, cabe mencionar que a sociedade brasileira superou com muito custo uma série de momentos históricos sem democracia. Foi com muita dificuldade que consolidamos as balizas do atual processo democrático. Foram superados vários regimes ditatoriais para chegarmos onde estamos. Se começarmos a retroagir as garantias de nosso modelo, então ficará a seguinte pergunta: de quem será a próxima ditadura?
* Lourival Mendes é deputado pelo PTdoB do Maranhão. Autor da PEC 37/2011, é delegado de polícia e ex-presidente da Associação dos Delegados de Polícia Civil do Maranhão.
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