Segurança pública é coisa séria; quando tratada de forma demagógica e eleitoreira, perdemos vidas, especialmente de jovens, negros e negras, pobres e moradores das comunidades, favelas e periferias de todo o país.
O cruel assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes não foi apenas um duro golpe contra os que ousam superar as barreiras sociais para ocupar os espaços de decisão a fim de lutar em defesa dos direitos da população mais pobre. Foi também uma demonstração do improviso e do caráter eleitoreiro da intervenção federal decretada no Rio de Janeiro.
A violência é uma das principais preocupações dos brasileiros, mas, apesar de sua gravidade, não tem sido enfrentada, historicamente, com seriedade pelo poder público. Priorização do confronto em detrimento da inteligência, populismo penal e encarceramento em massa. Essas são algumas características que predominaram nas políticas de segurança pública nas últimas três décadas.
Leia também
Como resultado, em 2014, figurávamos entre os 12 países mais violentos do mundo, com 28,2 mortes violentas por 100 mil habitantes,[1] número que subiu para 28,6 em 2015 e pulou para 29,7 em 2016.[2]
Os dados só comprovam o que, há muito, lideranças, pesquisadores e comandantes de polícias vêm alertando: não é possível resolver o problema da violência sem um amplo projeto de inclusão social.
Precisamos de um Estado que assegure uma repressão qualificada ao crime, baseada no uso da inteligência, focada na preservação da vida, no uso progressivo e proporcional da força e no controle interno, externo e social rigoroso para evitar e combater a corrupção e o uso abusivo da força.
De todo modo, seguiremos “enxugando gelo” se não admitirmos que a raiz do problema da violência está na vulnerabilidade social dos territórios conflagrados, onde a população geralmente é privada do acesso a serviços públicos básicos e essenciais.
No Brasil, as manchas de violência acompanham o próprio mapa da desigualdade social. No Distrito Federal, por exemplo, temos o registro de 69,5 mortes violentas por 100 mil habitantes no Paranoá, enquanto o Lago Sul registra um índice de 3,4, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal.[3] Enquanto o primeiro tem um IDH de 0,785, o do segundo é 0,933.
Da mesma forma, pesquisa do Ipea demonstrou a correlação entre o número de homicídios e indicadores educacionais como a evasão escolar, a média de horas-aula, a média de distorção idade-série e o índice socioeconômico das famílias dos alunos.[4] Ao comparar a situação das escolas dentro de um mesmo município, a pesquisa constatou que, comparativamente, os bairros com maior número de homicídios possuem índice de evasão escolar superior em mais de 350%, apresentam taxa de repetência quase seis vezes superior e exibem taxa de reprovação quase dez vezes superior.[5]
Assim, mais efetiva que a intervenção federal baseada na ocupação militar dos territórios conflagrados seria a adoção de medidas para ampliar a oferta de políticas sociais voltadas para a promoção do acesso a educação, saúde, assistência social, regularização fundiária, saneamento básico e outras ações sociais nesses territórios, gerando renda e contribuindo para transformar a realidade da população.
Apesar das evidências apontadas, o governo segue apostando numa política que não deu certo no passado e que não resolverá o problema da segurança pública, como demonstram os dados que vêm sendo colhidos após um mês de intervenção.[6]
Para piorar tudo, as propostas debatidas no Legislativo para resolver o problema estão sendo capitaneadas por parlamentares mais preocupados em promover a violência do que em solucionar este grave problema social.
Por essa razão, o Psol, liderado pelo deputado Ivan Valente, apresentou o Projeto de Lei n. 9.762/2018, com o objetivo determinar que, junto com as ações de segurança nos territórios conflagrados, seja implementado um Programa de Intervenção Social para Prevenção à Violência, baseado num diagnóstico e num planejamento integrado.
A proposta obriga a União, o Estado, Distrito Federal ou município a investirem em ações sociais nos territórios conflagrados, agregando aos valores previstos em suas peças orçamentárias, no mínimo, o montante equivalente ao utilizado nas operações policiais e militares.
Trata-se de um alento num Congresso dominado pelo populismo no debate sobre segurança pública, sobretudo num momento em que a intervenção federal dá indicativos claros de que não resolverá o problema da violência no Rio de Janeiro e que dificilmente contará com recursos para prosseguir por muito tempo.[7]
Veja também:
<< O mapa da violência no Distrito Federal
<< As Marielles, os senhores da guerra e o país entre a humanização e a barbárie
————————-
[1] LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2016. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2016. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2018.
[2] LIMA, Renato Sérgio de; BUENO, Samira. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2016. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2018.
[3] DISTRITO FEDERAL. Secretaria de Estado da Segurança Pública e da Paz Social. Subsecretaria de Gestão da Informação. Série histórica dos crimes violentos letais intencionais no DF. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2018.
[4] CERQUEIRA, Daniel et al. Indicadores multidimensionais de educação e homicídios nos territórios focalizados pelo Pacto Nacional pela Redução de Homicídios. Nota Técnica. Brasília: Ipea, n. 18, maio 2016. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2018.
[5] ROLIM, Marcos. A formação de jovens violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema. Curitiba: Appris, 2016.
[6] http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,intervencao-federal-nao-muda-clima-de-inseguranca-no-rio, 70002242297
[7] Somente a operação de ocupação realizada pelo Exército na Maré, em 2014 e 2015, consumiu mais de R$ 520 milhões. Por sua vez, para a intervenção federal prevista para ocorrer em todo o estado, o governo prevê gastar até R$ 1 bilhão, valor evidentemente insuficiente.