Por Cezar Britto*, especial para o Congresso em Foco
O roteiro programado para os três primeiros dias em São Petersburgo tinha como objetivo conhecer o mundo da família Romanov. É que, segundo nos explicou a nossa guia, os dois são como irmãos siameses. Um não consegue viver sem o respirar do outro. E não precisava de explicação especializada para assim compreendermos. As ruas repletas de majestosos palacetes, jardins afrancesados, estátuas em jaquetões briosos e cavalos garbosos, monumentos com brasões nobiliários, as igrejas agigantadas em esplendor e o rio Neva cercado por enormes e riquíssimas mansões demonstravam o orgulho pelo passado que parecia sepultado com o czar Nicolau II.
Era visível, portanto, que o czar Pedro, o Grande, deixou naquele lugar, outrora mangues e pântanos no então desconhecido Báltico, o alicerce de uma história que sobreviveu ao cerco nazista e resistiu ao assédio soviético. Compreender a história de dinastia Romanov seria vital, portanto, para sabermos o que motivara, cem anos atrás, o romper da Revolução Bolchevique, bem assim a deliberada política de esquecimento dos tempos soviéticos pelo longevo mandatário Vladimir Putin.
Escolhemos os arredores da Capital dos Czares para iniciarmos as nossas visitas, pois era nesta parte mais afastada da cidade onde ficavam os palácios de verão da realeza. Na mira, os palácios Pavlovsk, Gatchina, Peterhof e Catarina. Era impossível conhecermos os demais, pois os Romanov, como todos os reis e imperadores ocidentais, tinham a mania de construir um palácio mais luxuoso do que o outro quando cansavam do anterior. E como o verão russo dura apenas dois meses por ano, conheceríamos, inicialmente, as moradias utilizadas pela realeza em curtíssimas temporadas.
Antes de chegarmos aos palácios reais, avistamos alguns prédios absolutamente iguais, simples, quadrados e com alguma elegância arquitetônica. Poderiam até passar despercebidos na cidade dos palacetes se não fossem bairros repletos de tantos deles. Perguntamos, então, o que eram aqueles prédios tão simétricos e abundantes. Entre críticas e descaso turísticos sobre a existência dos edifícios, recebemos a explicação de que eram espaços residenciais destinados para moradia dos integrantes da burocracia soviética.
PublicidadeNão eram propriedades privadas e pertenciam ao governo soviético, utilizados como apartamentos funcionais, medindo, cada um, aproximadamente setenta metros quadrados. Eles haviam sido construídos nas eras Stalin, Khrushchev e Brezhnev, agora transformados em propriedades privadas das famílias abastadas da nova Rússia, exatamente como fizera Collor de Mello durante a sua sanha privatista com os apartamentos funcionais brasilienses.
O Palácio de Pavlovsk, o primeiro visitado, pertencera ao czar Paulo I, que o recebera de presente da sua mãe Catarina, a Grande. O complexo neoclássico de mais de seiscentos hectares, ricamente ornado em ouro, mármores de variados estilos, mobiliários, porcelanatos, pinturas, parques e duas salas de trono, faz inveja aos renomados palácios europeus. Destacavam-se os imensos tapetes gobelins, supostamente confeccionados pelos próprios Jean e Philibert Gobelin, preciosos mimos que integravam as centenas de presentes oferecidos pelos monarcas franceses Luiz XVI e Maria Antonieta, antes que decapitados nas vidas nababescas que gozavam.
Dezenas de estátuas renascentistas, inspiradas em deuses gregos e romanos, davam um toque especial às centenas de luxuosos compartimentos utilizados pela nobreza czarista. Brinquei que se expostas em algum museu brasileiro, não poderiam ser exibidas despidas, sob pena de serem censuradas pelas moralistas decisões judicias que começam a se espalhar pelo Brasil.
O Palácio de Gatchina, o segundo castelo visitado, não decepcionava o primeiro em termos de tamanho e luxo. Ele também havia sido construído para ser um afago amoroso da czarina Catarina, a Grande. Inicialmente o destinatário de sua majestosa doação fora o seu amante predileto, o conde Grigory Orlov, com direito a um romântico túnel secreto para curtir as fugidas noturnas. Depois ela presenteara este castelo ao seu único filho, Paulo I, que agora passara a ser, com a sua esposa Maria Feodorovna, proprietário de duas residências de verão, enquanto não herdasse os demais palácios de sua poderosa mãe, que, aliás, dele não gostava.
O que parecia ser uma não querência recíproca, pois o czar, tão logo assumira o curto reinado de quatro anos, proibira que novas mulheres assumissem o trono russo. O czar ingrato fora assassinado pelos saudosistas do tempo da poderosa czarina, fazendo-se empossar o seu neto predileto Alexandre I, que derrotara Napoleão e se especializara em construir palácios, igrejas e monumentos destinados a comemorar este histórico feito.
Este palácio é tão grande que servira de moradia e ampliação pelos demais czares, servindo de refúgio de segurança para o czar Alexandre III, após o assassinato do seu pai Alexandre II. Destruído pelos nazistas, a restauração iniciada no período stalinista ainda não alcançara metade de seus compartimentos.
O Palácio de Peterhof, o terceiro por nós visitado, foi construído por Pedro, o Grande. Iniciado no ano de 1714, ele levou onze anos para ser concluído, embora modificado nos anos subsequentes, pois utilizado por todos os czares nascidos em São Petersburgo. Tombado como Patrimônio Mundial da Unesco, reúne o Grande Palácio, dezenove palacetes, igrejas, vilas, pavilhões, jardins e um complexo canal ornado por diversas estátuas de puro ouro, espalhadas em mais de cento e vinte fontes.
A Grande Cascata, maior destaque do palácio principal, tem como ponto central a Fonte de Sansão, em que o herói bíblico abre a boca de leão, representando, assim, a vitória russa sobre os suecos, na guerra particular travada no século 18. Não sem razão é conhecido como a Versalhes Russa. Confirmamos, in loco, que o palácio somente poderia ser utilizado nos dois meses do verão russo, pois as estátuas em ouro estavam lacradas e as fontes desativadas.
O quarto e último palácio de verão visitado fora construído pelas czarinas Catarina I, Izabel e Catarina II, a Grande, cada uma delas impondo e modificando os compartimentos segundo os estilos da época. Elas não queriam perder em luxo, charme, ouro e jardins para o sempre reverenciado Palácio de Versalhes. Hoje o seu Grande Hall é alugado para os eventos promovidos pela elite russa, já tendo passado por lá Elton John, Bill Clinton, Tina Turner, Whitney Houston, Naomi Campbell e Sting.
Disseram-nos que fora naquelas luxuosas paredes que a gastronomia inventou o menu, pois eram tantos os pratos servidos nos banquetes que era preciso que os nobres acompanhassem, passo a passo, a comilança. Também lá, segundo dizem, o Conde Pavel Stroganov criou a prato que leva o seu nome, porém originalmente com carne de cerdo.
Mas a joia da coroa czarista ainda não tinha sido a nós revelada. Tratava-se do enorme, reluzente e histórico Palácio Hermitage, sede e moradia mais importante da família Romanov. Apontado como sendo o rival russo do Palácio do Louvre, a sede símbolo do poder czarista impressionada pelo seu luxo, riqueza e, sobretudo, pelo acervo artístico, cultural e histórico, praticamente de todas as épocas e regiões do planeta.
Impossível visita-lo em apenas um turno, pois a construção, na verdade, é a fusão de seis palácios e pavilhões, servindo hoje como museu, teatro e escritórios governamentais. Dentre as mais de três milhões de peça, conseguimos avistar trabalhos de Leonardo Da Vinci, Veronese, Rodin, Rubens, Botticelli, Caravaggio, Rafael, Ticiano, Degas, Cézanne, Van Gogh, Casanova, Rembrandt, Renoir, Manet e Picasso. Ironicamente, no palácio em que fora preso e morou o último czar, Nicolau II, ocorria uma exposição provisória tendo como tema o Centenário da Revolução Bolchevique, destacando-se um grande quadro de Lênin onde outra fora o quadro do próprio monarca.
Chegamos à conclusão, encerrada esta fase de observação, que os palácios não tinham em comum apenas o exuberante luxo em que viva a nobreza russa, eles também reluziam nos olhares das guias que nos acompanharam durante as visitas. Elas eram apaixonadas pela história da família que governou, autocraticamente, a Rússia por mais de duzentos anos. Neles, a czarina Izabel I poderia desfilar com um dos seus quinze mil vestidos, recrutar um jovem alemão para transformar no militarista czar Pedro III ou mesmo requisitar o pão que faltava na mesa camponesa.
Catarina II poderia tramar e matar o seu esposo e czar Pedro III, mandar construir outros castelos, escolher o amante predileto do dia, invadir algum país vizinho ou punir severamente seus opositores. Poderia, ainda, mandar alguns adversários políticos para morrer na cadeia ou por fuzilamento, como fizera o czar Alexandre III, entre uma vodca e outra, com Alexandre Ulyanov, irmão do ainda estudante Vladmir Lênin. Também se poderiam mandar milhões de desarmados e maltrapilhos camponeses para morrerem nas guerras imperialistas, como fizeram os czares Nicolau I e Nicolau II, respectivamente, na Criméia e na 1ª Guerra Mundial.
Mas não importava às guias dos palácios se a história dos Romanov fora edificada em razão do brutal sistema de servidão que durou até 19 de fevereiro de 1861, quando libertos mais de vinte e dois milhões de camponeses. Elas não percebiam que estavam sendo contraditórias em suas informações turísticas, pois enquanto acusavam de luxo soviético o apartamento funcional de setenta metros quadrados, sorriam, orgulhosas, quando diziam que a sala de jantar do Palácio de Pavlovsk, o menor dos que visitamos, media mais de quinhentos metros quadrados.
Tampouco destacavam que os palácios foram preservados ou restaurados pelo regime soviético, pois compreendidos como verdadeiras obras de arte construídas pelo talento do povo russo e artistas de todo o mundo. Ou, muito menos, que eles foram transformados em museus, com acesso livre aos trabalhadores e camponeses durante este lapso temporal, como forma direta de mostrar aos que sofreram com a escravidão como viviam os czares e todo o seu luxuoso séquito.
Esta atração pela nobreza czarista fez secundária outra questão histórica em relação aos palácios-museus que visitamos e que estavam situados ao redor da então Leningrado. É que durante a 2ª Guerra Mundial, todos estes palácios foram destruídos, incendiados e saqueados em seus tesouros durante o criminoso cerco que durou quase três anos, resultando na morte de mais de um milhão de civis. Apenas foram salvas as peças consideradas históricas e as obras de artes mais significativas, antes da rápida chegada das tropas alemãs, italianas, espanholas, finlandesas e suecas.
Após conhecermos o mundo dos Romanov, percebemos que o último país ocidental a abolir o trabalho escravo não mais podia manter um sistema autocrático, insensível, violento e deslegitimado por seu povo. Não era admissível condenar toda uma nação a passar fome, frio e doenças, enquanto a sua elite ficava a se esbaldar em palácios suntuosos, banquetes nababescos. O pouco que nos foi apresentado já foi possível compreender a razão histórica dos acontecimentos que levaram o povo russo a desencadear a Revolução Burguesa de Fevereiro de 1917 e, logo depois, a Revolução Bolchevique de 1917.
E assim a Rússia de 1917 foi se revelando, escondidinha, entre os palácios, as igrejas e a paixão dos moradores de São Petersburgo pela riqueza czarista conservada na Rússia de 2017. Mas estas anotações ficarão para os próximos capítulos.
* Colunista do Congresso em Foco, Cezar Britto é advogado e escritor, autor de livros jurídicos, romances e crônicas. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e da União dos Advogados da Língua Portuguesa. É membro vitalício do Conselho Federal da OAB e da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.
<< Parte 1: Anotações de um propriaense no Centenário da Revolução Bolchevique