João José Forni *
Passados os primeiros dias de comoção pela tragédia de Santa Maria, é hora de uma reflexão mais racional do episódio e seus desdobramentos. Muita gente tem opinado desde domingo de madrugada. Alguma análises são de especialistas em risco, explosivos e segurança. Cada entrevista reforça a cadeia de erros e omissões que levaram a essa tragédia.
Peritos mostram a inadequação do material utilizado no teto para isolamento acústico, bem como a imprudência de integrantes da banda em brincar com fogo, num ambiente com material inflamável, de fácil combustão, lotado e fechado. Outros aproveitam para tirar um dividendo político, como sempre acontece nas tragédias. Prometem agora “rigorosa” fiscalização nas casas de espetáculos. Chegaram atrasados. Governadores e prefeitos correm para mostrar serviço, após as portas arrombadas. Por que não faziam antes?
Talvez porque suas excelências e demais políticos tenham acordado do pesadelo com as consciências pesadas. Mas, relaxem. Essa pseudopreocupação com a segurança não dura mais de 30 dias. Até chegar outra crise. Daqui a um mês o tema sai de pauta e Congresso, assembleias legislativas ou câmaras de vereadores irão se preocupar com salários, cargos e outras disputas paroquiais. Cada um irá cuidar dos próprios interesses.
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Tem sido assim nas tragédias por enchentes, secas, desabamentos. Como no Rio de Janeiro, onde dois anos depois da catástrofe da região serrana, que matou mais de 900 pessoas, 5 mil desabrigados continuam sem teto. E o estado paga aluguel. Sem falar nos prefeitos de algumas cidades que desviaram o dinheiro para os desabrigados. Quem jamais esquecerá essa lamentável tragédia no Sul serão os pais, irmãos, avós, maridos, mulheres e demais parentes de quem ficou preso naquela ratoeira.
Outras análises ou são emocionais, fruto do desespero e revolta dos pais, parentes e amigos dos jovens mortos, e com toda a razão. Ou, da parte de policiais, palpiteiros de plantão e até mesmo de algumas autoridades, são descabidas, porque não tocam no ponto crucial dessa crise. Como aquela boate podia estar funcionando? E não era uma boate de periferia, frequentada pelo Brasil esquecido, que não reverbera na mídia ou nas visitas dos presidentes, quando atingido por tragédias. Era a principal casa de espetáculo noturno de uma cidade de 240 mil habitantes. Todo mundo conhecia e frequentava.
Surpreende, na avaliação das autoridades sobre essa tragédia, o não reconhecimento de que os principais culpados do incêndio e da morte de centenas de jovens, não são só os integrantes da banda, que acabaram presos. E nem apenas os empresários gananciosos. Como tantos outros empresários no país, eles estão se lixando para os consumidores, preocupados apenas em faturar.
Os principais culpados são o Corpo de Bombeiros de Santa Maria, a prefeitura municipal, com toda a rede de fiscalização, e o governo do estado, ou seja, o poder público. A estes compete, em última instância, junto com o Poder Legislativo, regulamentar, criar leis, mas, também, fiscalizar. Eles não arrecadam impostos para isso? Todos eles, juntos naturalmente com os irresponsáveis empresários, são os verdadeiros culpados.
Por que o Corpo de Bombeiros e a prefeitura, principalmente? Eles são responsáveis pela liberação de qualquer estabelecimento comercial na cidade: casas comerciais e de diversões, botecos, lojas etc. A boate estava funcionando com alvará vencido desde agosto. Não poderia estar funcionando, portanto. Se não, vejamos.
Se você hoje quiser abrir legalmente uma lojinha na garagem, precisa de um alvará da prefeitura da cidade e deve instalar equipamentos exigidos pelos bombeiros, além de outros registros. Se você não tiver alvará e os equipamentos anti-incêndio, você pode ser multado ou impedido de funcionar. Fora outras taxas de inscrição, impostos etc. E por que a boate estava irregular, em pleno centro de Santa Maria? Como não era fiscalizada, passou ao largo da prefeitura e do Corpo de Bombeiros. Será que eles tinham conhecimento que o alvará estava vencido. Se sabiam, se omitiram. Se não sabiam, não cumpriam com as obrigações do poder público.
Por trás das tragédias brasileiras, quando se mergulha nas causas, há sempre uma cadeia de erros: irresponsabilidade, descuido, corrupção, omissão do poder público; o consagrado “jeitinho” brasileiro do malandro, que atropela a lei e vai tocando o negócio, faturando, cometendo abusos, até o dia em que a casa cai. Essa boate é o símbolo da irresponsabilidade que campeia em outras Santas Marias pelo país.
No caso de Santa Maria, a história pregressa não é de hoje. Ali, a ética e a lei eram atropeladas todos os dias. Não se obedecia à lotação permitida; não havia saídas de emergência; havia obstáculos e atropelos na hora de pagar a conta, como testemunham frequentadores; a banda fazia pirotecnia com um teto inflamável. Isso era habitual. Essa boate é o símbolo da irresponsabilidade e de compromisso que campeia em outras Santas Marias pelo país.
É preciso investigar qual a instância da prefeitura liberou essa boate, há três anos. Quando permitiu um salão de shows, para cerca de mil pessoas, funcionar com uma única entrada e saída, sem portas de emergência e janelas. É preciso investigar por que e como foi liberado esse alvará; as relações dos proprietários com as autoridades locais. Quem eram os padrinhos dos empresários? Quem são esses empresários?
Nas crises, vítimas esperam segurança do poder público
O prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, numa entrevista à CBN, apressou-se em se eximir da responsabilidade, ao atribuir a fiscalização ao Corpo de Bombeiros. O primeiro erro numa crise é querer terceirizar a culpa. O prefeito deve assumir que a prefeitura errou. Sua administração vai ficar marcada na história de Santa Maria, para sempre, pela maior tragédia do Rio Grande do Sul. Na última terça-feira, a Prefeitura de Santa Maria desencavou um decreto antigo, em que, alega, transferiu ao Corpo de Bombeiros a responsabilidade pela fiscalização das casas de espetáculos. O Corpo de Bombeiros recebia verba para isso. E daí? Isso não exime a prefeitura da cidade de responsabilidade.
Nas crises, o que a população espera do poder público é segurança. Segurança que os jovens na boate não tiveram, quando foram lá para se divertir. Não competia a eles, na inocência e despreocupação da juventude e na empolgação do divertimento, fiscalizar a ratoeira em que tinham entrado. Eles pagam impostos. Confiavam que o poder público cumpria sua parte. Mas ele não cumpriu. É muito rápido e implacável em cobrar impostos, mas incompetente em fiscalizar. Essa é a verdade.
Mas há outros culpados na cidade. Será que a imprensa, o Ministério Público, o Judiciário, ninguém frequentou essa boate durante três anos? Se frequentaram, por que nenhum deles denunciou que ali não existia uma boate, mas uma verdadeira armadilha para os frequentadores? Nenhum jornalista investigativo, nenhum promotor, desembargador, juiz, engenheiro, entrou naquela boate em três anos? Alguém teve iniciativa, coragem e discernimento para denunciar? Tão óbvias, agora, são as irregularidades daquele prédio, em pleno centro da cidade…
O que fazia o Corpo de Bombeiros, tão eficiente em salvar pessoas, em outras tragédias; e tão incompetente para evitar a morte de 236 jovens e ferimentos graves em mais de 100, ao se omitir em fiscalizar a segurança daquele local? E agora vem o comandante do Corpo de Bombeiros tentar amenizar o erro e a culpa da corporação, afirmando que aquela porta era adequada para o número de pessoas. Poupe-nos, senhor comandante. Em respeito aos jovens que ali morreram e às suas famílias, pela incompetência de sua corporação. E de todos os que nessa cadeia deveriam ter fiscalizado e fechado aquela arapuca.
Depois da tragédia, aparecem soluções para tudo. Criam-se factóides, como o das prisões dos membros da banda e dos empresários. É certo que também ela foi irresponsável, por brincar com fogo dentro de um tanque de combustível. A banda, como os seguranças, são apenas agentes que contribuíram para acender o pavio de um prédio que estava minado pelos empresários. Se for para prender ou apontar todos os culpados, a polícia de Santa Maria vai ter muito trabalho, muita gente está solta ainda. E provavelmente nunca será presa.
* João José Forni, formado em Letras e Jornalismo, é Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB) e tem MBA em Gestão Estratégica pela Universidade de São Paulo (USP). Professor universitário, também atua como consultor de comunicação e palestrante. Mantém os sites http://www.jforni.jor.br e http://www.comunicacaoecrise.com.
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