Renata Camargo
Pela primeira vez na história, o Fórum Social Mundial (FSM), que será realizado este ano em Belém, no Pará, e o Fórum Econômico Mundial (FEM), em Davos, na Suíça, estarão focados em um mesmo dilema: a crise econômica mundial. Realizados concomitantemente – mas com públicos opostos –, os dois encontros deverão analisar e buscar alternativas para a atual situação global.
Mas, enquanto a elite econômica estará reunida em Davos para tentar reverter o “quadro sombrio” – como classificou o relatório Riscos globais 2009, divulgado pela organização do evento – nos moldes da economia atual, movimentos sociais, organizações não-governamentais e representantes governistas ligados às questões sociais de várias nacionalidades se encontrarão na região Amazônica para dar seqüência ao debate sobre um novo modelo econômico.
“É uma diferença de ênfase e propostas. De um fórum para o outro, muda-se completamente a perspectiva. Se do lado de lá [em Davos], o desemprego é uma conseqüência da crise, do lado de cá [em Belém], o desemprego é o foco central”, exemplifica o economista Luiz Alberto Machado, do Conselho Federal de Economia e vice-diretor da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), de São Paulo.
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Os objetivos de cada fórum também revelam perfis diferenciados. Entre os dez princípios que orientam as ações do 9° FSM, está a “a libertação do mundo do domínio do capital, das multinacionais, da dominação imperialista patriarcal, colonial e neocolonial e de sistemas desiguais de comércio, com o cancelamento da dívida dos países empobrecidos”. A discussão, que será acompanhada em cobertura especial pelo Congresso em Foco, diretamente de Belém, seguirá a linha de propor uma “economia alternativa” e articulações com base em alianças mais cooperativas do que competitivas.
“Eles devem discutir ações para impedir que as empresas se valham da recessão para demitir. Seguramente, devem defender um modelo que dê forças aos países emergentes, como China, Brasil e Índia, no sentido de que não dá para resolver a crise só com os países principais”, observa Machado.
Choque
A expectativa em Davos é que o encontro sirva como espaço para que a elite econômica mundial se recupere do “choque”. Os debatedores tentarão entender o que deu errado para, por exemplo, em apenas 36 horas, nos dias 29 e 30 de setembro do ano passado, US$ 600 bilhões desaparecerem do mercado financeiro. A crise, como definiu o presidente do Fórum Econômico Mundial, Klauss Schwab, é vista como um “um acidente de engavetamento na autoestrada da globalização”. O papel do fórum, portanto, será analisar os “feridos” e garantir a sobrevivência deles a longo prazo.
“O Fórum Econômico deve discutir ‘o que fazer para restaurar a confiança no sistema financeiro, para que agentes econômicos voltem a confiar’. Em Davos, eles vão analisar formas de ação integrada dos principais atores, de maneira que haja ações conjuntas para garantir a volta dessa confiança e para que ela volte em um prazo mais curto”, acredita Luiz Alberto Machado.
A 39ª edição do Fórum Econômico Mundial de Davos, que será realizada de 28 de janeiro a 1° de fevereiro, pretende reunir 2,5 mil participantes de 91 países. Entre eles, estão inscritos 1.170 executivos das maiores empresas do mundo. Em Belém, no espaço de debate que começa amanhã (27) e vai até domingo, dia 1° de fevereiro, a expectativa é que 120 mil pessoas de mais de 150 países participem das oficinas, mesas-redondas e demais atividades organizadas pelas próprias organizações e instituições.
Mea culpa
Idealizador do Fórum Social Mundial, o empresário Oded Grajew, presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, fundador da Grow Jogos e Brinquedos e da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), espera que os participantes e organizadores do Fórum Econômico Mundial façam uma “mea culpa” em relação à atual crise econômica. Grajew afirma que a crise é decorrente de uma crise da falta de limites e do excesso de competição.
“Essa é uma crise de valores, da mentalidade do ‘mercado quanto mais livre vai resolver’. Colocaram os valores de competição acima da solidariedade. As pessoas são mais ‘consumidores’ do que ‘cidadãos’. É a crise do pensamento do ‘vale expandir sem limites’”, avalia. “O Fórum Econômico Mundial tem de fazer uma ‘mea culpa’ e admitir ‘nós promovemos idéias que levaram o mundo ao colapso econômico e financeiro’. Em 2000, [o ex-presidente da Argentina, Carlos] Menem era o rei de Davos. Eles têm que reconhecer que erraram”, se exalta.
Em Davos, o assunto será tratado como uma “crise de confiança” do mercado financeiro e, provavelmente, a “mea culpa” aguardada não entrará em pauta. O economista Luiz Alberto defende que a economia deve ser vista como algo cíclico e, portanto, esse será mais um momento a ser superado. “A economia funciona como um pêndulo. A política do Estado mínimo, por exemplo, já está sendo revista. O Estado passa a intervir mais na economia, mas não como um estatizador, como na década de 70, e sim como regulacionista”, considera.
O economista explica que a crise de confiança corresponde a um sentimento coletivo de insegurança em relação ao futuro, o que acarreta queda de investimentos, paralisação de projetos de crescimento e menor predisposição a assumir riscos, entre outras coisas.
“Dentro da visão tradicional da economia, o sistema financeiro tem o lado real, das transições concretas, e um lado ‘imaginário’, que é a sensação que os agentes têm de que o sistema funciona. Tendo essa segurança, as pessoas assumem riscos pautados em cima de confiança. Mas, desde 2007, a confiança do mercado está abalada”, diz, referindo-se à crise que teve origem no mercado imobiliário norte-americano.
Questão ambiental
O debate nos fóruns não se resumirá à crise econômica. Também ganham destaque nas edições deste ano temas relacionados às questões ambientais. Uma maior atenção a problemas como poluição, desmatamento e aquecimento global e a necessidade de buscar novas fontes de energia e caminhos de desenvolvimento mais sustentáveis aparecem no cerne dos dois processos.
Em Davos, a programação traz tópicos como energias alternativas, mudanças climáticas, perda de ecossistema e biodiversidade e segurança alimentar. No Fórum Social, a programação inclui oficinas sobre desafios e perspectivas para a sustentabilidade, criação de centros de educação ambiental, desmatamento zero, além de outros. No segundo dia do FSM (28), inclusive, será celebrado o Dia da Pan-Amazônia, dedicado ao debate de questões dos povos amazônicos.
“Estamos entrando em um ponto crítico que está pondo em perigo a existência de nossos netos. Temos conseqüências hoje, mas podem se agravar ainda mais. A questão do clima é a questão máxima”, alertou o economista Paul Singer, da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Segundo a organização do FSM, a capital paraense foi escolhida para sediar o evento por estar inserida na região Amazônica.
Singer cita ainda outros temas clássicos que devem ser debatidos no Fórum Social de Belém. Entre eles, a injustiça social, a desigualdade econômica, a opressão de gênero e raça e outras temáticas ligadas a educação, saúde, trabalho e diversidade cultural. “Os temas não mudam, mas há formas de mudar o debate. Quando a gente se reuniu pela primeira vez para falar sobre economia solidária, por exemplo, quase ninguém sabia do que se tratava. Hoje o Brasil é um dos que têm mais destaque em termos de economia solidária no mundo”, defende.
No Fórum Econômico Mundial, por sua vez, os participantes debaterão finanças e negócios, geopolítica e governança global, tecnologia e inovações, crescimento econômico global, desafios da sustentabilidade e do desenvolvimento e outros temas, ligados especialmente à economia, mas que também permeiam questões sociais e ambientais. “O fórum não tem poder executivo. É uma reunião de especialistas e dali podem surgir propostas. Uma ‘solução’ para uma crise não depende do fórum. Quem é capaz de orquestrar uma ação rápida, envolvendo diversos países, são apenas os Estados Unidos”, defende Machado.
Contraposição
O Fórum Econômico Mundial, conhecido como World Economic Forum (WEF), surgiu em 1971, quando um universitário alemão, Klaus Schwab – hoje presidente do evento –, influenciado pelo livro Desafio Americano (1967), decidiu lançar um “desafio europeu”. Klaus organizou, então, um simpósio com a proposta de criar um modelo europeu de gestão de empresas.
Mais de 400 participantes estiveram presentes na primeira edição, realizada durante duas semanas. Tempos depois, o evento passou a ser também um espaço de debate para conflitos mundiais e hoje tem como objetivo, segundo os organizadores, “integrar os dirigentes dos setores político, econômico e social em uma comunidade que atua na escala planetária com o objetivo de melhorar o mundo, além do bem-estar e da prosperidade da humanidade”.
O Fórum Social Mundial foi criado em 2001 como um espaço de contraposição às idéias defendidas em Davos. Grajew relembra que, na época, os preceitos “neoliberais” – doutrina econômica que defendia a absoluta liberdade de mercado e restrição à intervenção estatal, com a política do Estado mínimo – era o pensamento dominante.
“O Fórum Econômico enaltecia as políticas neoliberais. Na época, diziam que ‘agora chegamos ao modelo econômico ideal’. Foi então que senti que faltava um contraponto a esse pensamento”, conta Grajew.
O empresário ressalta que a intenção era criar um espaço de novas idéias, para formar redes e promover alternativas à teoria do livre mercado. “Queria abrir um espaço para as idéias se encontrarem. Eu não concordava com o pensamento de Davos. Naquele tempo, ser neoliberal (nem gosto de usar essa palavra) era elogio. Hoje, você pode andar pelo Congresso e perguntar quem é neoliberal que ninguém vai responder que sim. A mentalidade mudou muito”, avalia.
A forma de organização dos dois fóruns também difere. Enquanto o Fórum Econômico é hoje uma empresa com sede em Genebra (Suíça) e cerca de 250 funcionários, o Fórum Social se organiza de maneira autogestionada. O FSM é formado por um comitê central internacional que apresenta as idéias e as próprias organizações não-governamentais, movimentos sociais e entidades realizam os debates e oficinas.
“O Fórum Social é uma coisa de massa. É algo aberto, sem uma organização fechada. Vem quem quer e quem pode”, explica Paul Singer, que desde 2001 participa dos fóruns sociais, estando ausente apenas na edição realizada na Índia, em 2004. “Com o fato de dezenas de pessoas se encontrarem, mudam-se cabeças, mudam-se mentalidades. O resultado não é só sair mais informado e inteligente. É uma oportunidade de fazer alianças e encontrar soluções diversas para os problemas. Dois lugares podem ter o mesmo problema, mas um pode estar com a solução mais adiantada e isso pode ajudar o outro. Esse tipo de encontro é importante”, conclui Singer.
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