A segunda mesa, sob a presidência da professora Leoni Campos de Souza, reuniu os seguintes expositores: Lia Zanotta, docente do Departamento de Antropologia da UnB (cap. 10: “Feminism, the state, and gender equality”) ; Eiiti Sato, diretor do Instituto de Relações Internacionais (Irel/UnB, capítulo 5: “Crisis and beyond: responses and prospects”); David Fleischer, professor-emérito do Ipol, (capítulo 7: “Political reform: a ‘never-ending story’”). Debatedor: Benício Schmidt, cientista político, docente veterano da UnB e pesquisador-sênior do seu Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas (Ceppac). Benício está iniciando uma segunda e bem-sucedida carreira no mundo do livro, sua paixão da vida inteira: ele agora dirige as editoras Verbena e Francis, esta última detentora dos títulos de autoria do genial polemista, crítico cultural e memorialista Paulo Francis, falecido em 1997, entre os quais delícias proustianas como Trinta anos esta noite, Cabeça de papel, Cabeça de negro e O afeto que se encerra. Ao lado do analista político Walder Góes, do velho Jornal do Brasil, e de Nelson Rodrigues, Francis integrou a trinca dos jornalistas que mais influenciaram as minhas opções intelectuais e a minha visão de mundo. (Espero que Benício inclua na sua lista de republicações o livrinho de Paulo Francis que é uma bela introdução às relações internacionais da segunda metade do século passado, utilíssimo para os leitores mais jovens, O Brasil no mundo, lançado em 1984 ou 1985 pela Zahar.)
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Em sua apresentação sobre “Feminismo, Estado e igualdade de gênero”, a professora Zanotta delineou um painel reconstituindo etapas importantes da história contemporânea do feminismo brasileiro, desde os anos 70.
O moderno feminismo surgiu no Brasil fortemente vinculado às lutas mais gerais da sociedade civil e dos políticos oposicionistas pela redemocratização. Continuou, nos anos 80, com a abertura de espaços públicos de discussão e encaminhamento das questões femininas mais marcantes, como violência doméstica, e o lobby pelos direitos e de saúde da mulher, tendo em vista a Assembleia Nacional Constituinte (1987/88).
De acordo com a expositora, a visibilidade da violência sexista se acentuou graças à intensificação dos protestos contra casos de assassinatos de mulheres das classes média e alta por seus cônjuges, cujos advogados de defesa apelavam para o argumento, que hoje soa absurdo, de “legítima defesa da honra” masculina. Relativamente à saúde feminina, a antropóloga assinalou que, no Brasil, os óbitos de mulheres causados por moléstias reprodutivas (74 por 100 mil) ainda se situam muito acima da média mundial, que é de seis por 100 mil.
Dos anos 90 em diante, o movimento se multissegmentou em torno de questões regionais, socioeconômicas e culturais (estas últimas geralmente ligadas à chamada busca de reconhecimento por setores minoritários) e se consolidou em redes de organizações, marchando no interior das instituições estatais e conquistando nacos de poder decisório em questões específicas. Exemplos: direito ao aborto – ao menos em circunstâncias extremas – e direitos dos homossexuais. Militantes dessas causas passaram a ocupar cargos em novas estruturas como as secretárias da mulher nos três níveis federais de governo.
A antropóloga concluiu que o principal desafio político do feminismo brasileiro, no momento atual, é a ameaça de um backlash (revertério) conservador promovido pelo Vaticano, as denominações pentecostais e neopentecostais e seus aliados na classe política contra as conquistas acima. (Sinto muito, professora, mas esses entrechoques são essenciais à democracia. Gozado como os paladinos e paladinas da ‘tolerância’ se tornam intolerantes em face da suposta intolerância dos seus adversários…)
A palestra de Eiiti Sato, “Além das crises: respostas e perspectivas”, partiu das interpretações, correntes e não raro conflitantes da crise mundial e seus desdobradamentos: “Para alguns analistas até pouco tempo atrás, ela assumia um formato de V (profundo mergulho recessivo seguido de rápida e vigorosa recuperação). Superada essa ilusão, a controvérsia, hoje, opõe aqueles que lhe atribuem um modelo em L (queda abrupta do nível de atividade e sua manutenção em patamar estagnado de longa duração) aos que acreditam no double dip em forma de W. Isso para não mencionar o humor negro, antenado na tecnoera digital, de quem vaticina uma instabilidade econômica internacional aparentemente sem fim recorrendo ao símbolo WWW”…
Para extrair algum sentido do presente e tentar discernir os contornos do futuro, Sato advertiu ser indispensável prestar igual atenção a aspectos de continuidade e descontinuidade. No primeiro caso, se enquadram condições inalteradas ou pouco alteradas ao longo da história: desde o século 18, por exemplo, o Brasil corresponde à metade do território sul-americano e, há muito tempo, a cerca da metade do PIB e da população do continente. Ademais, a posição do país no ranking do PIB mundial era a mesma de 30 anos atrás. De lá para cá, é verdade, algumas condições pioraram: na década de 60, o país tinha 35 mil quilômetros de ferrovias; hoje, somente 28 mil.
Na coluna das descontinuidades, a incerteza maior se traduz em questões do tipo: “Conseguirá o Brasil repetir agora sua reação à Grande Depressão do século passado?”; ou “Em que medida a presente crise acentua sérios pontos de estrangulamento como o subinvestimento em infraestrutura?”
David Fleischer abriu sua palestra, “Reforma política – uma história sem fim”, definindo esse debate como fruto sazonal que, desde a promulgação da Carta de 88, brota nos anos impares (pré-eleições municipais ou gerais).
Ainda que incapazes de entusiasmar os analistas mais exigentes, Fleischer reconheceu que algumas reformas poucas significativas foram introduzidas de lá para cá na legislação eleitoral e partidária: voto em urnas eletrônicas, desde 1998; emenda de reeleição de presidente, governador e prefeito, em 1997; aprovação da cota feminina de um terço nas listas de candidatos proporcionais (de pouco adiantou: apenas 8% das cadeiras da Câmara são ocupadas por mulheres nesta legislatura); fidelidade partidária (2007). Esta última, assim como a verticalização (obrigando as coligações estaduais, para governo de estado, a refletirem as nacionais, para a presidência da República, valeu no pleito de 2002, mas já estava arquivada no de 2006), e, também, a lei da Ficha Limpa (junho do ano passado e, sobre a qual ainda pairam muitas incertezas acerca do cronograma de sua aplicabilidade) – todas tiveram em comum o serem produtos da tendência à judicialização da política: o Judiciário (TSE, STF) preenche vácuos de legislação deixados pelos parlamentares, em sua grande maioria temerosos de alterar as regras de um jogo que, conquanto viciadas, ou às vezes por isso mesmo, os ajudam a se eleger/reeleger.
No presente momento, notou Fleischer, entre as mudanças em análise no Senado e na Câmara, aquelas com maiores chances de virar lei são apenas duas, aparentemente, menos controvertidas. Uma é a mudança da data de posse do presidente, dos governadores e prefeitos. A outra é a redução de dois para um do número de suplentes de senador, bem como a proibição de que eles tenham com os titulares relações de parentesco sanguíneo ou por afinidade e de que o suplente suceda permanentemente ao titular, permitindo apenas que um substitua o outro em seus impedimentos temporários (em caso de vacância, a cadeira senatorial seria preenchida na disputa eleitoral mais próxima no tempo). Pelo menos, esta é a fórmula prevista pela comissão especial de reforma política do Senado, criada no início deste ano pelo presidente José Sarney (PMDB/AP), relatada pelo senador Francisco Dornelles (PP/RJ) e que funcionou durante o primeiro semestre.
Na Câmara, outra comissão especial, tendo por relator o deputado petista gaúcho Henrique Fontana, saiu-se com uma fórmula especiosa e corporativista: nessa versão, a suplência senatorial passaria a caber ao deputado federal mais votado em cada estado – independentemente de ele pertencer ou não ao partido do titular, em total desapreço pela preferência do eleitor. Probabilidade de aprovação da matéria pelo Senado: menor que zero.
Duas outras propostas reformistas, cuja concretização Fleischer ainda considera possível, porém menos provável, tratam da regulamentação da fidelidade partidária, por meio de uma lei, e não mais, como hoje, por decisão judicial; e o fim das coligações proporcionais (para deputado federal, deputado estadual e vereador). Essas alianças quase sempre funcionam como meros pactos de sobrevivência eleitoral para candidatos de partidos nanicos que buscam tomar carona na votação obtida pelos partidos maiores. O PCdoB, por exemplo, para turbinar suas chances, costuma apresentar uma única ‘dobradinha’ de candidatos à Câmara dos Deputados e à Assembleia Legislativa de cada estado, atrelando-a a coligações com o PT, o PMDB e outras agremiações de maior porte, que, por sua vez, se beneficiam ganhando mais tempo de propaganda eleitoral no rádio e na TV.
Casamentos de conveniência, sem nenhuma afinidade programática ou ideológica e desfeitos no momento mesmo em que as urnas são fechadas e começa a contagem de votos, as coligações proporcionais incentivam a proliferação de legendas, o que dificulta a governabilidade. Pelos cálculos de Fleischer, o seu fim reduziria o número de partidos representados na Câmara dos atuais 20 para um patamar ‘mais civilizado’ de nove ou dez.
Quanto à fidelidade partidária, o PLS (Projeto de Lei do Senado), 266/11, aprovado pela comissão especial presidida por Dornelles previa, originariamente, que o deputado que trocasse seu partido por outro perderia o mandato, exceto nas hipóteses de incorporação/fusão de legendas, criação de novo partido; desvio de programa partidária; e perseguição pessoal. Quando a matéria chegou à CCJ, seu relator e também presidente desse colegiado, senador Eunício Oliveira (PMDB/CE), com apoio do DEM, suprimiu a segunda hipótese, foi uma represália dos Democratas à sangria nos seus quadros provocada pelo surgimento do PSD, do prefeito Gilberto Kassab e do vice-governador Guilherme Afif Domingos. De início terminativo (isto é, bastaria ser aprovado na CCJ para seguir à Câmara sem, passar pelo Plenário do Senado), o projeto recebeu recurso, assinado por, no mínimo, 10% dos 81 senadores – ou líderes de bancadas de equivalente tamanho –, para ser, sim, apreciado em Plenário. Lá, recebeu emenda do senador Sérgio Petecão (PSD/AC) restabelecendo a hipótese do partido novo. A matéria voltou à CCJ para análise dessa emenda, e Eunício confiou sua relatoria ao senador Demóstenes Torres (DEM/GO), que, previsivelmente, irá rejeitá-la. Em resumo, o PSD, por ora, sobrevive pendurado em decisão do Judiciário. Não apenas no DEM, mas em outros partidos, inclusive da base governista, políticos se ressentem de que uma legenda que ainda não passou pelo teste das urnas já ostente uma bancada com mais de 50 deputados federais e dois senadores.
(Vale acrescentar que as proposições do Senado se encontram em várias etapas de tramitação ao longo do processo legislativo. Algumas delas, como o PLS 263/11, já estão na Câmara. O projeto proíbe a transferência de domicílio eleitoral do prefeito e do vice-prefeito no exercício do mandato, com a finalidade de acabar com a síndrome do ‘prefeito itinerante’, aquele que, constitucionalmente impossibilitado de concorrer a um terceiro mandato consecutivo, contorna esse impedimento transferindo seu título para município vizinho um ano antes da eleição. Outras, como o projeto da infidelidade partidária, há pouco referido, estão de volta à CCJ para reexame. As demais aguardam inclusão na Ordem do Dia do Plenário. Enquanto isso, a comissão especial da Câmara se mantém paralisada em razão do conflito de interesses dos deputados dos diferentes partidos: duas vezes adiada, a apreciação do relatório Fontana acabou ficando para o próximo ano. Na verdade, o que importa para o relator e seu partido são dois itens apenas: a lista partidária fechada dos candidatos a eleições proporcionais e o financiamento de campanhas. No primeiro caso, ele apresentou uma proposta de ‘voto misto’, que não deve ser confundida com o voto distrital misto adotado na Alemanha, pois pretende manter o sistema de representação inteiramente proporcional com a seguinte e duvidosa inovação: o eleitor votaria duas vezes – uma no partido, outra no candidato de sua preferência. No segundo caso, um volume de recursos não especificado e proveniente de votações do Orçamento da União e de doações privadas de empresas e indivíduos constituiria um fundo sob a administração da Justiça Eleitoral, que os redistribuiria aos partidos na proporção do número de cadeiras conquistadas na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais. Ninguém precisa de dotes superiores de perspicácia política para compreender que o impasse decisório da comissão especial deriva do fato de que essas propostas do relator Henrique Fontana, se aprovadas, beneficiariam desproporcionalmente o PT. Com poucos líderes marcantes, além do carismático Lula, o partido ostenta, porém, uma ‘marca’ que hoje é top of the mind, oferecendo um guarda-chuva confortável para o grupo cinzento e opaco de burocratas partidários sindicais que certamente encabeçariam sua lista em posição privilegiada para açambarcar a maioria dos votos dados à legenda. Da mesma forma, o financiamento público somente se justifica e se torna factível quando canalizado para partidos e não fragmentado para lançar inúmeras campanhas individuais.)
David Fleischer concluiu sua fala repisando o insolúvel obstáculo para a consecução de qualquer projeto mais ambicioso de reforma política: a realidade de que, ao contrário de outras profissões, a classe política dispõe de liberdade praticamente ilimitada para se autorregulamentar. Diante de uma proposta de mudança, por mais simples que esta aparente ser, a primeira pergunta que o político se faz é: “Isso vai ajudar ou atrapalhar a minha reeleição?”
Nesse sentido, é fácil prever que, se o financiamento público virar lei, suas excelências dificilmente resistirão à tentação de, a cada novo ciclo eleitoral, injetar no tal fundo de campanhas mais e mais recursos que acabarão fazendo falta em áreas prioritárias como saúde, educação e infraestrutura!
Em seus comentários, o debatedor Benício Schmitdt aproveitou para alfinetar indiretamente as anteriores colocações do professor Boschi, afirmando que os cientistas sociais não deveriam fugir à avaliação das implicações éticas e cívicas do abandono ou de uma “releitura positiva” de conceitos-chave como os de patrimonialismo, corporativismo e cooptação, que descrevem a situação de subordinação social e menoridade política de milhões de brasileiros, ademais da desmoralização das instituições republicanas. “Se é assim”, desabafou Schmidt, “é melhor assumirmos de uma vez por todas que o regime é semidemocrático, encerrarmos esta reunião e voltarmos logo para casa.”
Em sua opinião, as situações assim descritas jamais poderiam ser consideradas realidades positivas, por profundamente antidemocráticas e eternizadoras da desigualdade. Ainda assim, o debatedor concordou que “núcleos de inteligência” estatais ajudaram e ainda ajudam a garantir o processo de desenvolvimento e a continuidade institucional. Nessa conexão, lembrou o papel dos militares nos avanços da informática, da automação e da indústria aeronáutica e assinalou que a esses e outros quadros mais antigos juntam-se novas empresas estatais como a Empresa Brasileira de Planejamento Energético (EBPE), criada na reta final do governo FHC, para reagir à ameaça do apagão elétrico.
Apesar disso, Schmidt expressou dúvidas quanto às contribuições de outras novas categorias funcionais – como os auditores da Controladoria-Geral da União ou os gestores de políticas públicas (estes ligados ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão) – para a solução dos graves problemas gerenciais da máquina administrativa do Estado em todos os níveis e esferas de governo: “Os nós que amarram o Brasil só podem ser desatados com a adoção de uma visão inovadora de planejamento e controle”, e não com a cristalização de vícios como o formalismo jurídico e o corporativismo do serviço público.
No mais, reconheceu e realçou o papel dos movimentos feministas como atores coletivos emergentes, essenciais à modernização de programas governamentais em áreas “sociais” como a da saúde, bem como reafirmou seu pessimismo em relação às reformas políticas.
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