Quais os caminhos da humanidade? Ela não os tem. Busca abri-los a murro e a dente pelos campos, praças, ruas e avenidas dos quatro cantos deste planeta. Mudam os idiomas conforme o local da cruzada, mas a voz é a mesma, como una é a mensagem que propaga.
Alguns, por cegueira ou por terem a visão aguda demais, desviam os olhos do quadro em toda a sua dimensão, definindo como paroquial problema de amplitude mundial.
Segundo estes, tudo é muito simples: em um só momento da história os espanhóis protestam contra o desemprego, os ingleses e norte-americanos contra a recessão, os brasileiros contra os preços das passagens de ônibus, os egípcios contra a ditadura, os gregos contra a corrupção, os franceses contra a discriminação, os turcos contra a construção de um centro comercial, os indonésios contra os preços dos combustíveis, os búlgaros contra a administração, os italianos contra a impunidade, os moçambicanos contra o preço do pão, os portugueses contra a austeridade, os marroquinos contra a monarquia, os tunisianos contra a inflação, os sudaneses contra a miséria – e por tal caminho seguiríamos, passando temerariamente ao largo da constatação de que tudo isto se relaciona a partir de um sentimento comum, uma “primavera mundial”.
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Esta visão míope, levada aos círculos de poder político e econômico, assume ares de tragédia anunciada – como ensinava John Kennedy, “aqueles que tornam impossível uma revolução pacífica tornarão inevitável uma revolução violenta”.
Aprendi com meu saudoso genitor, político experiente, que o povo, por falta de informações e até de instrução, pode não definir certas situações – mas percebe, e perfeitamente, o que acontece. Não fala, mas pensa. Não define, mas entende.
É através deste alerta que cumpre compreendermos a verdadeira e séria mensagem que a voz das ruas grita pelo planeta afora: a de que vivemos sob uma ordem social injusta e insustentável.
Injusta porque concentra os meios de geração de riqueza nas mãos de alguns poucos, e insustentável diante da fartura de informações e comunicações que este novo milênio oferece.
Proponho, assim, uma reflexão que, indo do global ao local, nos permita perceber, enquanto detentores de poder político e econômico, a grave extensão da cegueira que nos afeta.
Iniciemos pelas crianças. A cada cinco segundos uma delas morre de fome, e a cada minuto outras quinze por conta da falta de um simples serviço de saneamento básico.
Este quadro de miséria é mundial. 19% dos nossos semelhantes vivem com menos de US$ 1 por dia. E que não se diga estarmos a falar de países pobres. Absolutamente. No Reino Unido, 44% dos doentes de câncer não tem dinheiro para comprar medicamentos. Em Miami, os pobres já são quase 30% da população. Na Suíça, 10% dos habitantes vivem na miséria. Nos EUA, 25% das crianças abaixo de 12 anos passam fome. Na Europa, 16% dos habitantes vivem abaixo da linha da pobreza.
São pessoas das quais foi retirada mais do que a dignidade – falo de algo chamado “esperança”, este vital combustível da alma de cada um de nós. Perambulam por aí como mortos-vivos, em um estado de torpor físico e mental.
Alguém diria que a miséria sempre existiu. É verdade. Ocorre que até pouco tempo a humanidade não sabia, por exemplo, que com o dinheiro gasto na construção de apenas três porta-aviões seria possível dotar todo o Afeganistão de saneamento básico, e que poderíamos, com o valor gasto a cada quatro mísseis disparados contra aquele país, dar a cada um de seus habitantes uma cesta básica.
Vamos a mais um exemplo: a crise econômica de 2008. Ela custou a dezenas de milhões de pessoas suas economias, seus empregos e até suas casas. Os culpados foram alguns poucos conglomerados financeiros, que acabaram recebendo bilhões de dólares em ajuda pública. Quanto aos responsáveis, vão bem, obrigado – continuam absurdamente ricos e absolutamente impunes.
Em outros tempos, tudo isto seria varrido para baixo de algum tapete ou pendurado na ponta de alguma baioneta. Não mais. O mundo começa a compreender estar sendo vítima de um sistema ganancioso e descontrolado, cujos tentáculos contaminam a economia real e as estruturas de poder político em benefício de alguns poucos.
Considere-se também a comparação dos tempos atuais com aqueles dos pioneiros, pessoas que saíram do nada e construíram empresas imensas. Hoje, fracassariam – o melhor de nossas ferramentas de geração de riqueza virou objeto de cartórios. Vale dizer, o que nossa economia tem de melhor virou monopólio entregue a alguns poucos em detrimento de muitos.
É contra isto que a voz das ruas brada – ela pede, em última análise, menos ganância e mais compaixão, menos monopólios e mais oportunidades. É isto que a juventude nos pede: apenas igualdade de condições na já dura luta pela vida.
Alguns, em tímido arremedo de defesa, ficam a dizer que ‘o capitalismo é assim mesmo’. Mentira. Deslavada mentira. A exclusividade é incompatível com a livre-empresa. O monopólio maltrata a liberdade de iniciativa. É quando passamos a viver em uma plutocracia, e eis o que as pessoas começam a sentir, ainda que sem definir.
Com estas reflexões em mente, abordemos agora a realidade do Brasil – um dos países mais ricos do mundo. Comecemos pela nutrição. Segundo o IBGE divulgou em 2006, 14 milhões de brasileiros convivem com a fome, e outros 72 milhões estão perto dela. Daí a idéia do Bolsa Família. Nos últimos seis anos este programa distribuiu R$ 52,7 bilhões para quase 12 milhões de famílias. Enquanto isso, só em 2008, gastamos R$ 282 bilhões com juros e amortizações da dívida pública. Façam as contas: em um único ano o Brasil pagou só de juros 5,35 vezes o que distribuiu aos seus famintos durante quase seis anos!
Vamos a outros cálculos: em 2006 destinamos R$ 41 bilhões para a Saúde, R$ 19,5 bilhões para a educação e R$ 3,9 bilhões para a segurança pública. Some tudo. Vai dar uns R$ 64,4 bilhões. Pois é: naquele mesmo ano pagamos só de juros da dívida pública R$ 325,8 bilhões – umas cinco vezes mais!
Se alguém ainda não entendeu, sejamos mais claros: os recursos que destinamos no orçamento de 2006 para custear a previdência social, a assistência social, a saúde, a educação, o trabalho, a reforma agrária, a segurança pública, o urbanismo, a habitação, os direitos da cidadania, o desporto e lazer, a cultura e até o saneamento, somados, dão uns R$ 317,9 bilhões – R$ 7,9 bilhões a menos do que pagamos só de juros naquele ano!
Esta realidade não é reduzida a palavras pelas mães que padecem com seus filhos nas filas e corredores dos hospitais públicos – mas, tenham certeza, é por elas perfeitamente compreendida, como de resto por todos que estão pelas ruas.
Convivemos também com uma brutal desnacionalização de nossa economia, processo iniciado há algumas décadas. Só para que se tenha uma ideia, 60% das empresas brasileiras negociadas tem ido parar nas mãos de estrangeiros – os mesmos aos quais entregamos a fina flor dos nossos serviços de interesse público.
Todos estes fatores acentuam a característica plutocrata de um sistema que reserva à juventude, salvo raríssimas exceções, apenas empregos modestos ou a abertura de lanchonetes, pequenas confecções e afins – afinal, os melhores setores estão em “cartórios”, viraram monopólios.
Não nos iludamos: cada brasileiro que está pelas ruas, malgrado abordando temas pontuais, grita na verdade contra toda esta discriminação que sofre em seu próprio país. Nas entrelinhas, diz que já não é mais possível que alguns poucos, por ação ou omissão, impeçam a felicidade de muitos. Gemem, e alto, pela perda de esperança em seus futuros.
Nossa administração pública – e eis aí um quadro quase que histórico – mostra-se incapaz de atenuar as consequências do regime plutocrático. Que o digam as 400 obras inacabadas identificadas pelo TCU, após terem consumido R$ 2 bilhões. Que o diga a CGU, ao constatar irregularidades no uso de verbas públicas em 73% dos municípios brasileiros.
Que o diga a ANTT, ao concluir que 40% de nossas ferrovias – quase um terço delas construídas por D. Pedro II – estão em estado de penúria. Que o diga o Departamento Nacional de Infraestrutura, segundo o qual 40,8% dos matadouros – digo, rodovias – federais precisam ser refeitos. Que o diga a cena de 20 crianças morrendo a cada dia por conta da falta de um prosaico sistema de saneamento básico.
Que o diga o mundo das leis, cuja inércia conseguiu com que apenas 1% do que acontece nas ruas a ele chegue, transformando o Brasil em um país no qual quatro cidadãos são linchados semanalmente pelas periferias de suas maiores cidades.
Aliás, estes magos da burocracia e dos formalismos custam ao Brasil US$ 100 bilhões a cada ano, reduzindo a geração de empregos em 12,3% e de investimentos em 13,7% – são eles os responsáveis pelo inferno levado à vida dos bons administradores, juízes e legisladores, que querem produzir mas já não conseguem.
Estes números chocantes, tenhamos certeza, não estão na cabeça dos manifestantes – mas gritam, e de forma muito doída, em seus corações, sufocando os sonhos com um país melhor. Não por acaso 84,3% dos brasileiros apoiam as manifestações, e eis aí um número a ser considerado.
Nossa reação, enquanto detentores de poder político e econômico pelo planeta afora, salvo raras exceções, tem sido imprudente. Alheios ou insensíveis às exigências do momento histórico, insistimos em passar os dias discutindo interesses corporativos ou propondo mudanças daquelas cujo objetivo, na fina ironia de Disraeli, é deixar tudo como está.
Haverá, também aqui, quem diga que esta realidade é histórica – e isto igualmente é verdade. Porém, vejo hoje um componente novo – aquele inserido pela tecnologia. Da “primavera árabe” à luta pelos direitos das mulheres no Oriente Médio, lá está ela, integrando a população de forma inédita e irreversível. E, a reboque, proporcionando a qualquer do povo algo que lhe tem sido sonegado ao longo de milênios: a informação e o conhecimento!
Este aspecto bem pode ser medido através da reação do Primeiro-Ministro da Turquia, Tayyip Erdogan, às manifestações ocorridas em seu país. Segundo declarou, “as redes sociais são a pior ameaça à sociedade”.
Vai aí, nesta frase, o exato grau de alienação de nossas elites dirigentes pelo mundo afora – cortejam as ruas, mas não querem ouvi-la; representam o povo, mas dele se isolam. E assim agem em um momento particularmente perigoso de nossa história.
Há alguns dias o presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, após registrar que “o Twitter e o Facebook se tornaram instrumentos incrivelmente poderosos para a sociedade civil”, assim disse sobre as últimas convulsões verificadas pelo mundo afora:
“Estes movimentos da sociedade não irão embora. E em minha opinião eles simplesmente crescerão. Cada país do mundo tem que pensar, seriamente, se está sendo ou não efetivo na entrega de serviços e se as pessoas estão tendo ou não oportunidades reais”.
A resposta a estas colocações – e eis aí o grande anseio das ruas – haverá que ser, acima de tudo, espiritual. Falo de mudança de postura. De atitude. De comprometimento com algo mais elevado.
Será que nós, detentores de poder político e econômico, temos enxergado que as coisas da vida passam, e passam muito depressa?
Será que temos a consciência de que brevemente, em um plano superior, não nos será permitido balbuciar que, em dado momento de nossas existências, dada virtude não era recomendável?
Será que temos tido a necessária sensibilidade diante das cenas tão pavorosas como cotidianas de desrespeito aos direitos humanos mais básicos?
Será que temos feito, com ideal e sinceridade, nossa pequena parte para que este mundo tão grande seja menos injusto e cruel?
Se a resposta a estas perguntas for “sim”, fiquemos sossegados – a justa revolta das ruas não nos alcançará. Se, porém, nossas respostas tiverem sido negativas, sugiro prudência.
Aos gananciosos, repito o pragmático conselho de Disraeli: “Majestade, o povo está insatisfeito, e quer mudanças. Se essas mudanças não forem feitas por nós, serão feitas sem nós, e, o que é pior, contra nós”.
E, aos que tem um mínimo de sentimento humano no coração, recordo o alerta de Wanke: “Gosto de ir aos cemitérios, admirar os túmulos dos que venceram na vida”.
Uma vida, afinal, que é curta demais para ser pequena – máxime diante de um mundo repleto daqueles bichos aos quais se referia Manuel Bandeira, “bichos como o que vi ontem, na imundície do pátio, catando comida entre os detritos. Quando encontrava alguma coisa, não examinava nem cheirava. Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, o bicho não era um gato, o bicho não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem”.