Fábio Góis
“Malandragem, dá um tempo!”. Seria desse jeito, com essa indisfarçável coloquialidade tupiniquim, que o cantor, compositor, violonista e malandro profissional – na boa acepção do termo – Bezerra da Silva (1927-2005) reagiria caso fosse instado a se pronunciar sobre os curiosos nomes que nossa Polícia Federal dá para suas operações.
Vejamos alguns: Hurricane, Byblos, I-Commerce, Big Apple, Kabuf, Game Over, Pen Drive, Wood Stock, Lolicon, Spoter, Good Vibes, Flash Back, Caá-Ete, Pechisbeque. Pechisbeque?!…
Nada contra a suposta intelectualidade e fluência em outros idiomas por parte dos aguerridos agentes da PF, mas apenas uma constatação de que, por vezes, o nome se destaca mais do que os próprios resultados das empreitadas. Nesse caso, salta aos olhos o longevo embate entre a PF, que “prende”, e o Judiciário, que “solta”. Diante de tanto “caô-caô” (ou conversa afiada, para recorrer a uma figura de linguagem, digamos, menos despojada), Bezerra certamente dedicaria um sambinha aos doutos e imaginativos policiais federais.
Um dos principais expoentes do samba de partido alto, Bezerra era pernambucano nascido em Recife – e não no Rio de Janeiro, como muitos pensam –, mas foi muito jovem para a Cidade Maravilhosa em busca do pai, marinheiro que abandonou a família quando ele ainda era criança. Nessa época, ainda não existiam as sofisticadas operações da Polícia Federal. Muito menos os exóticos nomes das operações da PF – que teve origem no Departamento Federal de Segurança Pública, em 1944, em substituição ao termo “Polícia do Distrito Federal” (à época, Rio de Janeiro). A atual designação “Departamento de Polícia Federal” (DPF) foi definida em 1967.
O Congresso em Foco entrou em contato com a assessoria do DPF em Brasília. Numa “sondagem” jornalística, quis saber quem teria dado o nome Satiagraha para a mais estrondosa operação em curso, que desbaratou um bilionário esquema de movimentações financeiras irregulares, com o delegado Protógenes Queiroz à frente das investigações – embora já afastado do caso. A assessoria informou que a denominação foi definida pela equipe de Protógenes. Em tempo: Satiagraha, em suma, é um termo usado pelo pacifista indiano Mahatma Gandhi para conotar a idéia de não-agressão ou resistência pacífica (satya = verdade; agraha = firmeza).
Os assessores disseram ainda que não houve críticas ao uso de um termo indiano, caso de Satiagraha, mas que alguns vocábulos norte-americanos foram hostilizados – a exemplo de Hurricane (furacão), cuja insólita pronúncia desagradou a agentes e delegados. Como se vê, nesse caso, não se trata de xenofobia ou implicância com a língua yankee (ops!), mas de língua enrolada na hora de pronunciar esse belo exemplar do vernáculo gringo. Alias, yankee (colonos em revolta), palavra de origem ameríndia, seria um bom nome para uma incursão rural da PF.
Fica a sugestão: já que são tão dados a batizar com criatividade as suas aventuras, por que os agentes da PF não designam uma pessoa apenas para realizar a tarefa? Poderia ser um lingüista, um publicitário, um semiólogo… ou um delegado mesmo, daqueles com afeição pelos apelos do léxico.
Operação “Rodou, Mané!”
Aversão a estrangeirismos à parte, as denominações que a PF dá a algumas operações não são, digamos, afeitas à identidade nacional. E Bezerra não deixaria barato. Ousemos imaginar que, na música que viesse a compor para sacanear a PF, sugeriria algumas alcunhas aos “gambés”: “Sol Quadrado”, “A Casa Caiu”, “Perdeu, Ladrão”, “Pulseira de Aço”, “Xadrez, Doce Xadrez”, “Teje Preso” etc. Já imaginou uma ação da PF chamada “Rodou, Mané”? No mínimo, daria mais graça à matéria sobre a operação quando esta fosse veiculada no Jornal Nacional…
Aliás, alguns nomes de operações já realizadas nos últimos anos (entre 2003 e 2008) se encaixariam no elenco de alcunhas que Bezerra daria às mesmas: Vaga Certa, Cana Brava, Pó da China, Zebu, X-9… Aí sim, ele assinaria embaixo. Afinal, sobre a relação polícia–ladrão o Mestre Bezerra tinha PhD.
(“Mestre Bezerra”, aliás, era como a ele se referiam dos bambas Dicró e Moreira da Silva aos novatos Marcelo D2 e a banda Rappa, que já gravaram com o “malandro agulha”.)
É só reparar no trecho da música “Alô malandragem, maloca o flagrante”, de 1986, para ter uma idéia da propriedade com que o sambista falava sobre o assunto. “Pintou sujeira, alô, malandragem maloca o flagrante / A canadura chegou com sargento, tenente e seu comandante / Cagüetaram que tinha malandro aqui de montão / Os tiras vieram munidos / De matraca, escopeta e pastor alemão / Quem marcar bobeira vai ser grampeado / E depois terá que explicar tudo certo ao doutor delegado”. O delegado em questão não seria Protógenes, acostumado a “pescar peixe grande”, com a licença da metáfora a la Bezerra.
Mendigo da Silva
Brazuca nato, o “embaixador dos morros e favelas” teve como primeiro lar no Rio o Morro do Cantagalo, onde trabalhou como pintor da construção civil e percussionista nas horas vagas. Tendo conhecido a pobreza na sua versão mais crua, em meio a uma cidade bela e internacionalmente conhecida, desde cedo Bezerra aprendeu a lidar com “os homens da lei”.
Em meados do século passado, chegou a viver por cerca de sete anos como mendigo em Copacabana (hoje reduto de criminosos que descem do morro Pavão-Pavãozinho, vizinho do Cantagalo, para “fazer um troquinho” no asfalto), tendo inclusive tentado o suicídio. O que não aconteceu, como costumava dizer, porque um santo de Umbanda não permitiu.
Com esse currículo enriquecido na faculdade das ruas cariocas, Bezerra tinha entre seus temas constantes a verdade crua das comunidades carentes: a marginalidade, a malandragem dos morros, o submundo das drogas – especialmente a maconha. Aliás, quem nunca ouviu os versos “Vou apertar, mas não vou acender agora” (“Malandragem, dá um tempo”), ou “Meu vizinho jogou uma semente no seu quintal / De repente brotou um tremendo matagal” (“A semente”)?
Versado na malandragem, contudo, jurava de pés juntos e mãos atracadas que nunca havia fumado maconha na vida, apesar de uma de suas letras usar a licença poética para dizer o contrário. “Doutor delegado, eu fui grampeado, com toda a moral / Porém o baseado que estava comigo, pra não ter sujeira eu meti o pau.”
Artigo publicado em 27/07/2008. Última atualização em 12/08/2008.