Celso Lungaretti *
Uma definição antológica do grande jornalista e escritor Paulo Francis foi a que deu para o capitalismo pós-industrial: inferno pamonha.
Além da desigualdade, das injustiças e do desperdício criminoso de recursos e riquezas que deveriam beneficiar a todos os seres humanos, temos de suportar este mico adicional: a nivelação cultural por baixo, sob a influência mesmerizante da comunicação de massa.
Outro talento extraordinário, o cronista, escritor e compositor Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), apropriadamente qualificou a TV de “máquina de fazer doido”. Perfeito.
Nas últimas duas semanas, os doidos têm discutido como nunca as Olimpíadas. Gente que ignorava a própria existência do atletismo agora deita falação apaixonada a respeito dos mais recentes fiascos dos atletas nacionais. Amarelaram ou não?
O complexo de vira-lata voltou com tudo: os brasileiros sentem imensa carência de qualquer espécie de afirmação. Se ganhar medalha de ouro em cuspe à distância, o escarrador-mor se tornará herói nacional durante alguns dias, com direito a desfile em carro aberto nas grandes capitais. E, na semana seguinte, ninguém lembrará sequer seu nome, claro.
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É o tempo dos heróis efêmeros e inconsistentes, em todas as áreas. À falta de coisa melhor, qualquer um pode ser cultuado, até um juiz que dá aos policiais os meios para grampearem os telefones da totalidade dos cidadãos brasileiros e depois deixa percebermos que considera tal tratamento adequado para os nativos de países que não pertencem à civilização…
Então, no domingo passado, ao ler a notícia sobre um médico sexagenário que passou 51 horas seguidas lutando pela vida de um paciente, ocorreu-me que isso ocorreu apenas e tão-somente por se tratar de um cirurgião cujo caráter foi moldado em outros tempos.
Tempos em que o promotor Hélio Bicudo enfrentava quase sozinho o terrível Esquadrão da Morte, indiferente às ameaças e intimidações dos assassinos, que, depois de enriquecerem executando traficantes a soldo dos traficantes concorrentes, foram dar vazão ao seu sadismo na repressão política.
Tempos em que o já idoso Ulysses Guimarães atravessava altaneiro uma praça (tornada) de guerra, indiferente aos cães policiais com que o ameaçavam, para manter acesa a chama da redemocratização.
Tempos em que o arcebispo Paulo Evaristo Arns desafiava o Planalto e o Vaticano, para honrar a memória de um mártir brasileiro e ferir de morte o terrorismo de estado que grassava no país.
E, para incluir os esportistas, pois é deles que estávamos falando, tempos em que o supercraque Sócrates, num ato público a favor da Emenda Dante de Oliveira no Vale do Anhangabaú (SP), comprometeu-se diante de meio milhão de manifestantes a recusar a oferta estratosférica da Fiorentina caso as eleições diretas fossem restabelecidas no Brasil.
Só um motivo o levaria a abrir mão daquela fortuna: contribuir para a reconstrução da nossa democracia. Mas, algumas centenas de parlamentares canalhas não só nos negaram uma saída da ditadura pela porta da frente, como nos privaram do nosso grande cidadão futebolista.
Não tenho a mínima idéia de quem mereça ser considerado o principal atleta do século passado, em termos estritamente esportivos. Mas o maior cidadão que o esporte projetou foi, indiscutivelmente, Muhammad Ali.
Despontou, aliás, como campeão olímpico. Será que algum da safra atual lhe chegará aos pés? Tomara. Duvido.
Depois, como profissional, revolucionou o boxe peso-pesado, até então monopolizado pelos grandalhões fortes e lentos. Magro, ágil, defendia-se com a movimentação nos ringues, dando-se ao luxo de manter a guarda baixa. Ao ser golpeado, recuava rapidamente ou se desviava, para contra-atacar de forma fulminante.
Quando tudo indicava que teria um longo reinado pela frente, foi convocado para a Guerra do Vietnã. Em nome das suas convicções políticas e religiosas (era muçulmano negro, seguidor de Malcolm X), recusou o papel que o Exército dos EUA reservara para ele: o de servir como relações-públicas de uma guerra imunda.
Os militares nunca cogitaram expô-lo ao fogo inimigo, claro. O que não os impediu de acusarem-no de covardia, numa vã tentativa de empanarem o brilho de sua atitude.
Teve seu título e seu direito de lutar cassado pela máfia do boxe. Durante os 3,5 anos que ficou fora dos ringues, não só perdeu milhões de dólares, como foi tecnicamente alcançado pelos novos pugilistas que vieram nas suas pegadas.
Quando, finalmente, deixaram-no ir atrás da coroa roubada, já não enfrentava ursos pesadões, mas adversários ágeis como Joe Frazier e demolidores como George Foreman.
O que não o impediu de protagonizar a maior luta de boxe de todos os tempos, ao derrotar inacreditavelmente o segundo, parecendo um velho Davi a prostrar o mais terrível dos Golias.
Nem de dar um dos maiores exemplos de esportividade nos ringues,durante a terceira luta que travou contra Frazier. No 14º assalto de uma batalha extenuante, teve, finalmente, o adversário à sua mercê. Frazier já não conseguia se defender. Ali poderia nocauteá-lo como bem entendesse.
Em vez disso, pediu insistentemente ao juiz a decretação do nocaute técnico. Não sendo atendido, ainda assim evitou dar o golpe definitivo. Deixou um Frazier grogue terminar o round em pé. Aí, o staff decidiu que ele não tinha condições de voltar para o assalto final e Ali venceu por abandono.
À saída, cruzando com o filho de Frazier, o gentleman Ali lhe disse: “Seu pai foi o homem mais corajoso que já enfrentei”.
Espero estar vivo quando surgirem novos esportistas como Sócrates e Muhammad Ali… se é que o inferno pamonha os propiciará.
*Celso Lungaretti, 56 anos, é jornalista em São Paulo, com longa atuação em redações e na área de comunicação corporativa, e escritor. Escreveu Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005). Mais dele em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.