À primeira vista, as letras garrafais que estampam a entrada e as laterais do ginásio poliesportivo da Vila Barroso, no município mineiro de Frutal, parecem denunciar mais um atentado contra a língua portuguesa: Ginarcio. Daqueles que se repetem a cada esquina num país que não dá bola para a educação.
Logo abaixo, porém, a grafia correta do nome oficial da praça esportiva – Ginásio Poliesportivo do Chatão – confirma que se trata, na verdade, de uma referência explícita ao deputado Narcio Rodrigues (PSDB-MG), filho ilustre da cidade, novo primeiro-vice-presidente da Câmara e autor da emenda que garantiu recursos do Orçamento da União para a obra.
Leia também
Entre as irregularidades encontradas em 61 municípios pela Controladoria Geral da União (CGU) na construção de quadras e ginásios, o caso da cidade de 50 mil habitantes, localizada no Triângulo Mineiro, chamou particularmente a atenção dos fiscais e acabou virando folclore nos corredores do órgão em Brasília (veja a relação dos municípios onde a Controladoria encontrou irregularidades).
Mas a graça pára por aí. De acordo com relatório da CGU, a “homenagem” ao deputado configura promoção pessoal com obra pública, prática proibida pela Constituição. Conforme revelou ontem o Congresso em Foco, a CGU investiga a existência de máfias regionais, suspeitas de atuar na construção de quadras e ginásios esportivos a partir da liberação de emendas parlamentares (leia mais).
Os indícios levantados pela CGU são reforçados pelo volume de recursos orçamentários
A denúncia de promoção pessoal não incomoda o primeiro-vice, um dos parlamentares mais próximos do governador mineiro Aécio Neves (MG) e homem-chave na vitória do deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) para a presidência da Câmara. Procurado pela reportagem, Narcio declarou que tem “participação zero” no episódio e se disse orgulhoso de ter levado 45 ginásios para os municípios da sua base eleitoral desde o seu primeiro mandato, em 1996.
A “Lei Narcio”
Segundo o deputado, a idéia partiu do ex-prefeito Orlando Assunção (PP), que administrou até 2004 o município de Comendador Gomes, situado na microrregião de Frutal. Com seus 2,8 mil habitantes, Comendador Gomes também tem o seu “Ginarcio”. Mas como a prefeitura local não foi sorteada pela CGU, está fora, por enquanto, das investigações do órgão federal.
“O Ministério Público mandou retirar, mas o prefeito [de Comendador Gomes] aprovou, por unanimidade na Câmara de Vereadores, uma lei para manter a homenagem. Conheço pelo menos umas 150 obras com nome de gente viva
O ex-prefeito de Comendador Gomes disse ao Congresso em Foco que não vê nenhuma irregularidade em gravar no ginásio o nome do autor da emenda que garantiu a realização da obra. Segundo Assunção, as placas com a inscrição “Ginarcio” são retiradas a cada campanha política, a pedido do promotor eleitoral, mas voltam ao lugar de destaque assim que passam as eleições. Isso teria ocorrido em 2004 e no ano passado.
“Se tivessem proibido de vez, eu teria retirado, mas a placa sempre foi mais efetiva do que provisória. Se mandaram tirar em definitivo, recomendo para o atual prefeito hoje mesmo”, disse o ex-prefeito.
Homenagem ameaçada
Mas, em Frutal, a homenagem ao deputado pode estar com os dias contados. Marco Aurélio França, secretário de Governo da atual prefeita, Maria Cecília Borges (PR), disse que vai propor a retirada da “logomarca” do tucano, que ainda estampa a entrada do ginásio.
O “ginarcio” fica a 45 minutos do centro da cidade e perto de uma fazenda de propriedade do pai de Narcio. “Aqui todos sabem que o deputado virou um tocador de obras. Vamos consultar o jurídico da prefeitura e propor à prefeita a retirada da homenagem antes que tenhamos problemas”, promete França.
A indicação de Narcio para a vice-presidência da Câmara foi costurada na tentativa frustrada do ex-líder do PSDB Jutahy Jr. (BA) de apoiar a candidatura de Arlindo Chinaglia ainda no primeiro turno. Com a candidatura de Gustavo Fruet (PSDB-PR), a aliança acabou se concretizando apenas no segundo turno.
Nos dois últimos orçamentos, Narcio não apresentou nenhuma emenda para esse tipo de obras. Mas, entre 2003 e 2005, mesmo não sendo da base do governo Lula, viu os R$ 900 mil que apresentou em emendas serem executados. As sugestões foram feitas por meio de emendas genéricas, que não identificavam as cidades a serem beneficiadas.
A apresentação de emendas genéricas é uma prática comum entre os parlamentares que propuseram a alocação de recursos para a construção de quadros e ginásios. Os fiscais da CGU ainda vão fazer uma série de cruzamentos de dados para identificar os autores das propostas e apurar se há alguma conexão entre eles e as fraudes detectadas nas licitações.
O procedimento também foi usado pelos parlamentares envolvidos no esquema dos sanguessugas. Por esse modelo, assim que o dinheiro é empenhado (ou seja, há o comprometimento de gasto) o parlamentar informa ao Ministério do Esporte o valor e para quais municípios a emenda deverá ser liberada.
Mas no Ministério do Esporte, diferentemente do que ocorre no Ministério da Saúde, o nome do parlamentar e os códigos que o identificam não aparecem na consulta feita ao Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), o que dificulta as investigações da CGU.
Inversão de prioridades
O principal problema é que a Lei de Licitações não estabelece mecanismos para se fiscalizar a qualidade das quadras durante todas as etapas da obras. Essa seria a maior brecha para irregularidades, segundo Argemiro Mendonça, assessor da presidência do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea) .
“A legislação é obsoleta e regula a qualidade pelo prazo da obra”, explica. Segundo o engenheiro civil, essa combinação estimula a proliferação desse tipo de construção, tirando recursos que poderiam ser usados em obras de saneamento, que, por não aparecerem, rendem menos votos. “Nosso instrumento licitatório também não é extensivo à manutenção dessas obras, e pequenas cidades têm ginásios iguais aos de cidades maiores”, diz Mendonça.
As irregularidades mais graves, inclusive no direcionamento das licitações, foram percebidas pela CGU ainda em 2003. Mas só agora, mais de três anos depois, o Ministério do Esporte diz que vai criar um programa de apoio aos gestores municipais e estaduais para garantir a manutenção desses equipamentos esportivos pelo Brasil afora (clique aqui para ver o que diz o Ministério do Esporte). Segundo o Ministério do Esporte, o novo programa de apoio aos prefeitos e governos estaduais terá o objetivo, entre outros, de garantir, além da construção, “a animação e manutenção desses equipamentos.”
Sem manutenção e recursos, muitas quadras estão inutilizadas, de acordo com relato da CGU. Esse tipo de irregularidade foi encontrado em pelo menos 23 cidades. No município de Paranhos (MS), a prefeitura, segundo os fiscais da Controladoria, cobra taxa para os moradores que queiram usar as dependências do ginásio municipal de esportes, obra feita com o repasse de R$ 166,7 mil.
O ginásio de Cocalzinho de Goiás (GO) está totalmente depredado. Na falta de uma cesta de basquete de verdade, os pichadores simularam uma, como mostra a foto abaixo. No mesmo município, há quadras de futebol com traves enferrujadas e quebradas, que foram emendadas com barbantes. Além disso, a CGU encontrou uma série de irregularidades em licitações (veja quais foram).
Simulação de cesta de basquete no município de Cocalzinho (GO) |
A alegação da administração local é de que o dinheiro arrecadado é revertido para a manutenção do ginásio, já que a prefeitura não teria recursos para cobrir as despesas. “Só estão isentos do pagamento grupos que participam de campeonatos e os alunos da rede municipal, durante o dia”, diz o relato da CGU. É que o programa Esporte e Lazer não prevê recursos para a manutenção das quadras.
Na Câmara, mais projetos
Com o início da nova legislatura, a Câmara arquivou automaticamente dois projetos de lei que tinham como objetivo aumentar o número de quadras e campos de futebol no país. Nenhum deles, porém, previa fonte de recursos para a manutenção das quadras, a compra de equipamentos esportivos ou a contratação de professores de educação física.
O PL 2.217/99, do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), estabelecia a construção de um campo de futebol a cada mil lotes ou unidades habitacionais. A redação do projeto foi alterada em uma das comissões temáticas, substituindo o termo “campos de futebol” por “praças esportivas”, para contemplar também as quadras.
A proposta foi apresentada quatro anos antes de o PCdoB assumir o Ministério do Esporte, em 2003. Mas, desde então, a construção das quadras esportivas tem recebido, ano a ano, tratamento destacado da bancada. No ano passado, o governo federal empenhou R$ 11,82 milhões para atender às emendas dos deputados do partido. O valor é quase três vezes superior ao destinado no ano anterior – R$ 4,29 milhões.
Já a proposta do ex-deputado Carlos Nader (PR-RJ), acusado de envolvimento com os sanguessugas, tornava obrigatória a inclusão das quadras nos projetos de construção das escolas públicas. O PL 3.507/04, que tramitava na Comissão de Finanças e Tributação (CFT) desde abril de 2006, não poderá ser desarquivado porque Nader, acusado de envolvimento com os sanguessugas, não conseguiu se reeleger.
Aldo, como deputado reeleito, pode requerer nas próximas semanas o desarquivamento do texto. Ignora-se, no entanto, qual seria o impacto de sua proposta na prática.
Técnicos da Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara disseram ao Congresso em Foco que dificilmente esse dois projetos serão aprovados, porque a comissão tem evitado votar propostas que não têm nenhuma vinculação com os planos diretores dos municípios.
Por meio de suas respectivas assessorias, Aldo e Nader informaram que seus projetos têm o propósito de incentivar o desenvolvimento do esporte no país. De acordo com eles, as eventuais irregularidades detectadas pela Controladoria Geral da União devem ser apuradas pelo órgão e pelo Tribunal de Contas da União (TCU).