Antonio Vital
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O senador e ex-ministro da Educação Cristovam Buarque (PT-DF) desembarcou do governo no início do ano, ao ser ejetado do cargo por telefone pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Até então, Cristovam vinha tentando implantar um ambicioso projeto de educação fundamental no MEC. Seis meses depois, o senador, que não tem muitos amigos no Palácio do Planalto, deixa claras as divergências que tem com o governo e com seu partido, o PT. Para ele, o governo não está priorizando o social, não vê a educação como fator de diminuição das diferenças sociais e não vai deixar qualquer marca nessa área no primeiro mandato de Lula. Pior: segundo Cristovam, no final do ano o país deve ostentar índice de trabalho infantil pior que no governo Fernando Henrique Cardoso. Leia também Cristovam falou ainda das divergências que teve com o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, que não apoiou suas propostas. Para ele, Lula errou ao nomear Dirceu para o cargo, que deveria ser ocupado por alguém que não tivesse tanto poder. O senador faz questão de dizer que apóia a condução da economia e que o problema não é esse: é que, segundo ele, o pensamento dominante no governo é o de que é preciso crescer e investir em infra-estrutura para diminuir as diferenças sociais. Para ele, o presidente Lula "está cercado" por essa concepção. Cristovam avisa que não vai votar a favor do projeto das Parcerias Público-Privadas (PPP) da maneira que o governo quer. Ele critica as vantagens oferecidas aos empresários e teme que o programa seja usado por quem quer "mamar" no Estado. As pessoas às vezes se esquecem de que o senhor, além de educador, é economista. As últimas pesquisas indicam uma recuperação dos índices de popularidade do presidente Lula, com base no crescimento da economia. O senhor acha que o crescimento veio para valer ou não passa de uma bolha? Cristovam Buarque – O próprio presidente já disse que a gente não pode comemorar o crescimento da economia porque há um estrangulamento grande na infra-estrutura. Não dá nem para exportar mais por falta de contêineres. Eu acho que, por isso, essa taxa de crescimento pode se reduzir, mas não acredito que volte nem recessão, nem mesmo estagnação. Vamos manter uma taxa de crescimento que não vai ser grande, pelo estrangulamento da infra-estrutura, mas que vai ser a que o aumento da infra-estrutura vai permitir acontecer. Eu acho que a política econômica está certa. Eu sempre defendi essa política econômica. Desde o tempo de Fernando Henrique Cardoso eu defendia. Mas o senhor sempre recebeu críticas, até mesmo dentro do PT, por conta dessa posição. Claro. Quando, em setembro de 1998, eu disse em uma entrevista à revista Veja que o Lula deveria, se eleito, manter o Malan, eu fui quase que apedrejado e expulso do partido. Agora, porém, o senhor está sendo identificado mais com a ala esquerda do partido. À esquerda pelo lado social, não pelo lado econômico. Eu tenho o mesmo discurso em relação à economia e também em relação ao social. Dois anos depois, numa conversa com o Lula no escritório dele, em São Paulo, ele olhou para mim e disse "Você tinha razão". Eu perguntei: "razão em quê"? "Aquela história do Malan". "(Lula) olhou para mim e disse: "Você tinha razão". Eu perguntei: "razão em quê"? "Aquela história do Malan" (manter o ex-ministro da Fazenda no cargo)" Ou seja, ele já sinalizava que seguiria esse caminho? Sinalizava. Foi logo depois que ele sinalizou que não seria candidato. E aí incentivou, numa reunião aqui em Brasília, que eu, José Dirceu, Mercadante, nos lançássemos. O fato de o senhor ter lançado sua candidatura na época estaria na origem das desavenças ou afastamento que o senhor teria, depois, com o José Dirceu? Não. Esse sentimento eu acho que é posterior. Até porque nunca foi levada (a candidatura) muito a sério. Naquela época foi que eu percebi que haveria uma mudança no PT se ganhasse a eleição. Antigamente eu achava que era o esquisito na família. Porque até então o senhor era tratado como um estranho no ninho petista. Em agosto de 2000, dois meses antes das eleições, eu tive um encontro com banqueiros, aqui em Brasília, e eu disse pra eles: "Nós vamos ter uma política econômica conservadora". Alguém perguntou então: "E qual é a diferença?". Eu respondi: "A diferença é o social". Está havendo essa diferença? E essa diferença não está havendo. É aí que entra minha linha crítica ao governo. Não é na política econômica. Eu não critico taxa de juros, porque eu acho que a taxa de juros tem que ser a que precisa ser. Eu defendo, obviamente, a manutenção da liberdade do mercado que está aí, que foi conquistada a partir do Collor. Acho que ela traz uma eficiência importante. Eu acho que não tem que voltar nenhuma das privatizações atrás. Eu defendo o superávit porque é o preço que a gente paga para manter a credibilidade. "Essa diferença (no social) não está havendo. O senhor se refere à meta de superávit de 4,25% do PIB? É. A gente tem que manter a credibilidade, se não o tecido financeiro se corrói. Agora, eu defendo que, mesmo com essa restrição, é possível dar um choque social. Por duas coisas. Uma, que ainda há uma margem de gastos públicos apropriada pela parcela rica da população que deveria ser desviada para o setor dos pobres. "Ainda há uma margem de gastos públicos Que tipo de recursos? O senhor fala de imposto progressivo? Não. Do orçamento. Gastos que são feitos pelo setor público que não vão para a parte pobre. Que tipo de gastos? Vou dar um exemplo. Eu deixei no orçamento para 2004 R$ 185 milhões para a alfabetização de adultos. Até o dia 24 do mês passado (julho), tinha sido gasto zero. "Eu deixei no orçamento para 2004 R$ 185 milhões Por quê? O senhor tem alguma idéia? Tenho. Porque deixou de ser uma prioridade o social. Esse dinheiro não vai sobrar, porque vai haver um remanejamento. Eu não tenho a menor dúvida de que, com o remanejamento, vai para as universidades. O senhor acha mais importante investir na educação básica? No caso da alfabetização de adultos, não é que seja mais importante. É mais decente. É um compromisso ético. Além do que, R$ 185 milhões não é nada, comparado com o que se gasta com o setor universitário, onde se gasta R$ 10 bi. Se você pegar o orçamento, vai ver que tem subsídios à classe média na área de saúde, na área de educação, e subsídios a empresas. O que me preocupa é que o Lula tinha toda a credibilidade para fazer isso no primeiro dia de governo. Fazer o quê exatamente? Chegar e dizer para a classe média: "Vocês recebem de volta no Imposto de Renda cerca de R$ 2 bilhões. Eu preciso disso para fazer com que as crianças brasileiras não cheguem aos dez anos de idade sem saber ler". "(Lula deveria) dizer pra classe média: "Vocês recebem de volta no Imposto de Renda cerca de R$ 2 bilhões. Eu preciso disso para fazer com que as crianças brasileiras não cheguem aos dez anos de idade sem saber ler" O último presidente que mexeu com a classe média desse jeito foi o Collor. Foi, mas não desse jeito. Não desse jeito. Eu estou propondo uma coisinha de nada. Nos primeiros meses, ele (Lula) tinha credibilidade para todo mundo saber que aquele dinheiro de fato iria servir para melhorar o país na educação básica. Hoje, as pessoas não estão tão convencidas disso mais. Ele era o único cara que tinha condição de dizer pro professor: "Com esses R$ 2 bilhões eu vou aumentar o salário de vocês, mas eu vou aumentar daqueles que fizerem um concurso a cada cinco anos, passar no concurso e receber um certificado de professor federal. Então, vou dar aumento àqueles que forem eficientes. Vou colocar uma dosagem de cobrança". Hoje, os sindicatos não deixarão. Eu fiz isso no ministério. Além disso, tem coisas que dariam um choque social sem custar nada. Que tipo? Por exemplo, toda criança tem direito a uma vaga na escola no dia em que fizer quatro anos. Porque que os pobres têm que colocar filhos na escola aos sete, ou seis, e os ricos ou a classe média põem aos três ou aos quatro? Aí eu levei essa proposta em março e o José Dirceu disse: "Não, isso custa dinheiro". Não. É de graça. Porque não custa ao governo federal. Quem põe isso é prefeito. Não vai pesar nada no orçamento na União. Segundo: num primeiro momento, o menino vai ficar sentado no chão ou vão sentar dois numa cadeira. A merenda, de 20, comem 22, porque não são muitos os que vão entrar. "Eu levei essa proposta (de colocar todas as crianças O senhor disse agora há pouco que o social deixou de ser prioridade. Isso em relação à educação ou é uma coisa mais abrangente? Eu acho que é mais abrangente porque vem de um viés da origem do PT. O PT é um partido que surge dos sindicatos. Então, é um partido da reivindicação, não da proposta. O senhor acha que é um vício cultural do PT? Cultural e político. E surgiu da reivindicação do setor moderno, não do setor excluído. É um partido da demanda, não é um partido da necessidade. Se você olhar as bandeiras do PT, todas são para atender as demandas, não de atender as necessidades. Fala-se em aumento de salário, não se fala em aumento de acesso. O importante para enfrentar a situação da pobreza não é o salário mínimo. São os programas sociais. Tipo o Bolsa-Escola? Sim, mas não pelo dinheiro. Pela educação. O que tira uma pessoa da pobreza não é aumentar o seu poder de compra. Isso faz de você mais rico. Sair da pobreza não é aumentar o poder de compra. É aumentar o poder de acesso. A pessoa sai da pobreza através, entre outras coisas, de ter água e esgoto em casa. E eu acho que o PT tem dificuldade de entender isso porque ele é formulado a partir de São Paulo. "Sair da pobreza não é aumentar o poder de compra. Que distorção isso provoca? A distorção de trabalhar para quem demanda, e não para quem necessita. Para quem tem a capacidade de reivindicar? O PT é um partido de esquerda que, ao nascer, defendia que os brasileiros pudessem comprar mais carros. Lógico. Para aumentar o emprego. Essa mudança de ótica, não de ética, para olhar o Brasil é que, ao meu ver, está faltando. E aí a educação não fica em primeiro lugar, nem em segundo, nem em terceiro. Em quê esses programas sociais do governo, hoje, poderiam ser diferentes para ser mais eficientes? Mas qual é o programa social do governo? O Bolsa-família. O Bolsa-família consiste, em primeiro lugar, na mudança do nome, que tem uma conotação. Ao sair "escola" para "família" saiu da educação para a assistência. Mas acabou a vinculação com a escola? Manteve-se a vinculação, mas não se está ainda fiscalizando essa vinculação. Eu tenho denunciado isso. Não existe estrutura para isso? Qual é o problema? Mas não tinha estrutura? A estrutura estava feita. Estava no MEC. A gente passava pra Caixa. Mas quando juntaram os diversos programas, desarticulou-se o sistema da fiscalização da freqüência das crianças. O meu primeiro conflito com o governo foi quando, em fevereiro de 2003, eu disse que não precisava do Fome Zero. Eu disse "é preciso um Fome Zero já. Fome Zero já é aumentar o valor da Bolsa-Escola. Estava pronto. "O meu primeiro conflito com o governo foi quando, Da onde vinha a resistência a essa proposta? Eu acho que são duas. Primeiro porque nunca o PT incorporou a idéia do Bolsa-Escola. Incorporou a idéia da renda mínima. Qual a diferença? Renda mínima é renda. É dinheiro no bolso. É a demanda. Bolsa-escola é bolsa, é educação. Você não está dando dinheiro, você está pagando para que estude. Faltou aula, não ganha. O que tira a pessoa da pobreza não é o mísero valor da Bolsa-Escola. O que tirava alguém da pobreza era, onze anos depois, esse menino ter o ensino médio. Por isso eu sempre digo: a gente não vai tirar da pobreza os pobres. A gente vai tirar da pobreza os filhos dos pobres. "O que tira a pessoa da pobreza não é o mísero valor da Bolsa-Escola. O que tirava alguém da pobreza era, Como essa proposta das cotas raciais? Não. As cotas raciais não beneficiam os pobres. Beneficiam os negros. Mas não é um critério que se usou para tentar beneficiar os pobres? Eu sou defensor da cota para negros, mas não com essa mentira. Porque só vão entrar os negros que terminarem o ensino médio. Já excluíram aí os pobres. Depois, os que passarem no vestibular. A cota para negros é uma cota racial, porque é uma vergonha nesse país, depois de 115 anos da abolição, a elite ser toda branca. Colocar um pobre na universidade não elimina a pobreza. Promove este pobre. O problema é que o Brasil se acostumou à assistência. A cota é para beneficiar o pobre? Que pobre? Cinco, dez, vinte, trinta mil vão entrar nas universidades. Mas temos 60 milhões de pobres. O que resolve a pobreza é o rico que entrar na universidade estudar medicina para servir o pobre. "Só vão entrar (na universidade) os negros que Como fazer isso? Por exemplo, a pós-graduação de Direito você pode fazer para atender a advocacia para a população ou para ser tributarista a serviço das multinacionais. Para se apropriar dos recursos do Estado, a elite brasileira mente dizendo que vai fazer coisas para os pobres. Por exemplo, acabaram, faz um tempo, com o IPI para automóveis. Qual foi a desculpa? Carro popular. A gente não tem ainda feijão popular, sapato popular, mas a classe média inventou o conceito de carro popular para justificar não pagar imposto no automóvel. Para aumentar o emprego no ABC. "Para se apropriar dos recursos do Estado, a elite brasileira mente dizendo que vai fazer coisas para os pobres" Mas de onde tiraria o dinheiro? Eu já lhe disse. Quando você pega o orçamento, você encontra de onde tirar o dinheiro. Agora, se não dá para fazer tudo isso agora, você vai devagar. Nas minhas metas, que eu carrego comigo porque não esqueço as minhas promessas, ia até 2015. Não dá para colocar escolas em tempo integral no Brasil em três ou quatro anos. Precisa no mínimo de 15. O senhor é a favor da educação integral? Lógico. Mas porque não deu certo no Rio? Foi abandonado? Como não deu certo? Foi abandonado. Mas o Rio se preocupou muito com o projeto arquitetônico. E foi absolutamente abandonado aquilo. A gente ia mostrar que era possível com o projeto Escola Ideal. Mas como era o projeto? Escolhíamos apenas, no primeiro ano, 29 das 5.661 cidades. A gente sabe da limitação de recursos. Essas cidades iam ter a Escola Ideal, horário integral em todas as escolas, nenhuma criança fora das escolas, professor ganhando bem. No ano seguinte a gente ia ter 155, no outro ano 260, no outro 500 e, a partir daí, 500 a mais por ano. Em dez anos se chegaria lá. Por que não foram implantados esses programas todos que o senhor menciona, como o da Escola Ideal? Porque gastou-se zero daquilo que estava previsto para as primeiras 29 cidades. Mas por que? O dinheiro foi para outro lugar? Ainda não. Mas irá, Certamente irá para algum lugar. Porque que não foi (implantado)? Com um argumento público: "não se pode fazer apenas em algumas cidades. Tem que fazer pra todas". Aí o dinheiro não dá. Onde está a resistência no governo para esse tipo de proposta? Primeiro, eu acho que o Ministério da Educação, hoje, é o Ministério do ensino superior. Eu, antes de o Lula assumir, eu propus ao Lula que dividisse o Ministério da Educação em dois: o Ministério do Ensino Superior e o Ministério do Ensino Básico. Porque o ensino superior é forte demais, domina. O Brasil federalizou tudo o que era para a minoria privilegiada e municipalizou o que era para os pobres. "O Brasil federalizou tudo o que era para a minoria privilegiada e municipalizou o que era para os pobres" E o senhor iria preferir ser o ministro da Educação Básica ou do Ensino Superior? Não tenho dúvida. Da Educação Básica. Ainda que eu seja uma pessoa do ensino superior. Porque a grande transformação da pobreza vem do ensino básico. Claro que, eu não tenho dúvida, para ter um bom ensino básico é preciso uma boa universidade para formar os professores do ensino médio. O senhor tinha a idéia de exigir dos estudantes que tivesem acesso às universidades públicas uma contrapartida, certo? Essa idéia é de um deputado do PT, o Padre Roque. Eu defendi que essa idéia fosse discutida. Eu não acho nem um pouquinho absurda essa idéia: depois de formado, se tiver uma renda alta e não estiver trabalhando para o governo, o imposto de renda dele seria um pouquinho maior. "Eu não acho nem um pouquinho absurda essa idéia: Mas de onde vem a resistência, dentro do governo, a essa visão do senhor? Acho que a resistência vem, em primeiro lugar, da cultura brasileira que os economistas venderam. Que a redução da pobreza vem do aumento da riqueza. Quando são duas coisas diferentes e a gente precisa das duas. O senhor acha que a educação é o caminho para se fazer isso? Claro que é. Não só. É preciso ter água, esgoto. Mas, sobretudo, educação. O que eu defendo, e tenho discutido muito sobre isso no exterior, é que nós podíamos fazer o contrário. Em vez de crescer pensando em acabar com a pobreza, um programa de erradicação da pobreza induziria o crescimento econômico. "Em vez de crescer pensando em acabar com a Como fizeram depois da Segunda Guerra Mundial na Europa? Claro. É um novo New Deal, um novo keynesianismo, agora com responsabilidade fiscal. E é possível conciliar essas duas visões? Porque, para os economistas, as duas coisas são opostas. O que faz com que no Brasil haja essa resistência? Primeiro, é cultural. O outro é político. A parcela que se apropriou da renda no Brasil não quer abrir mão de nada. O terceiro é ideológico ou de mentalidade. Ainda acreditamos que o aumento do emprego na construção civil, mesmo que seja para fazer casa para os ricos, vai diminuir a pobreza. Não vai. Para diminuir a pobreza é preciso criar empregos para o peão colocar água e esgoto onde ele mora. "Ainda acreditamos que o aumento do emprego na construção civil, mesmo que seja para fazer casa para Mas para você aplicar dinheiro em algum lugar é preciso tirar de outro, não? Mas você tirar do rico para dar para o pobre não reduz a pobreza. O que você tem que fazer é tirar de quem tem, colocar nas mãos do governo e o governo investir para garantir o acesso dos pobres aos serviços essenciais. Mas por que o governo não faz isso? Porque não tem essa visão do senhor ou porque não sabe fazer? Porque não tinha a visão. Por exemplo, hoje se discute reduzir o superávit para colocar infra-estrutura econômica, não na infra-estrutura social. Quando este governo tiver um pequeno alívio, não vai aumentar o salário dos professores. Vai aumentar a potência das hidrelétricas. Não há um projeto que diga "em quanto tempo eu vou resolver isso". Eu pus isso na minha parede lá. Em quatro anos acabar com o trabalho infantil. No final deste ano, provavelmente vamos ter mais trabalhadores infantis que no final do governo Fernando Henrique. "Quando este governo tiver um pequeno alívio, O governo está com dificuldade de aprovar a emenda constitucional que expropria as propriedades onde for descoberto trabalho escravo… Quando eu coloquei em quatro anos acabar com o analfabetismo de adultos, o Palácio do Planalto ficou irritado. Por quê? O Palácio do Planalto que o senhor fala é o José Dirceu? Não sei detalhes. Porque não se promete abolir, erradicar; se promete alfabetizar mais. E veja como mudou. O novo ministro, o Tarso (Genro), acabou a palavra erradicação da secretaria (de Erradicação do Analfabetismo). "O novo ministro, o Tarso, acabou a palavra erradicação Foi extinta? Extinta como secretaria, juntada com outra e diluída. E acabou a palavra "erradicação". Acabou o compromisso de erradicar. E, aliás, era a única marca que o Lula podia deixar em quatro anos. Porque o resto tudo que eu coloquei, salvo trabalho infantil e prostituição infantil, levava mais. O senhor acha que teve um pouco de ciumeira nessa reação do palácio? Porque era uma concepção. O fato de o presidente Lula, apesar da origem humilde, ser uma pessoa que teve sucesso, um self-made man, não faz ele acreditar que todos podem chegar lá e que a educação não é tão indispensável assim? Tem gente que acha isso, que educação não é necessariamente o único caminho. Se for, é um equívoco muito grande porque só tem um Lula a cada cem ou 200 anos. É mais fácil você chegar à riqueza através da loteria do que chegar à presidência sem ter estudado. Mas o Lula foi cercado. Não só ele pensa compondo a economia como centro. Ele acredita nisso. "O Lula foi cercado. Não só ele pensa compondo Ele acredita nisso? Eu acho que acredita. Nunca aceitaram a idéia de educação como motor. Essa poderia ser a grande marca social que está faltando ao governo? Eu fiz um documento sobre isso. Tudo o que eu digo hoje eu disse para o governo. Mas discretamente, é claro. E algumas nem tanto, claro, como quando eu disse para os estudantes cercarem o Congresso para pedir mais dinheiro para a educação. Quando eu disse que precisava de R$ 25 bilhões a mais para a educação. Isso foi encarado como uma provocação pública do senhor às diretrizes do Palácio do Planalto. É. E ao contrário. O Lula devia era ter aplaudido e dizer a verdade: a gente quer é mais dinheiro para a educação mesmo. Todos os projetos levavam anos. Mas a erradicação do analfabetismo, o Lula podia deixar no primeiro mandato dele. E quem deixa as coisas para o segundo mandato, em geral não faz. Já pensou se o Lula ficasse na história assim: "eu erradiquei o analfabetismo"? "A erradicação do analfabetismo, o Lula podia deixar no primeiro mandato dele. E quem deixa as coisas para o segundo mandato, em geral não faz" E o senhor acha que ele quer entrar para a história como "eu fiz o Brasil voltar a crescer"? É. Eu acho que está sendo isso. O que vai ser suficiente para reelegê-lo. O senhor acha que o governo consegue aprovar as Parcerias Público-Privadas (PPP) aqui no Senado, que é uma das coisas de que depende a retomada do crescimento? Não agora. Eu, por exemplo, sou favorável à PPP, mas não vou querer que se vote agora. Por que? Porque muitos pontos não estão claros. Por exemplo? Os empresários não correm nenhum risco. Que capitalismo é esse? Se não der certo, o Estado cobre. Isso é treta. Tem gente que vem mamar. Tem uma porção de dúvidas que precisam ser esclarecidas. O governo tem que entender que precisa discutir as coisas junto com o Congresso. Devia. E o rolo compressor tenta aprovar tudo. Não pode "Os empresários não correm nenhum risco (com a PPP). Mas aqui no Senado o rolo compressor não tem sido muito eficiente. Nós não somos robôs. Nós temos uma grupo hoje de 12 ou 13 senadores. E o presidente do PT disse que não tem nenhuma importância 12 ou 13 senadores. O (José) Genoino disse isso. Na Câmara também tem um grupo de pessoas, até mesmo do PT, insatisfeitos. O problema é que esse grupo não fecha em tudo. Por exemplo, a maior parte dos deputados que são críticos critica a economia. Eu defendo a economia. Eu critico o social. Eles não falam muito no social. Então eles fazem como o PT recentemente fez no diretório. Um ítem: "é preciso investir no social". Partido não diz isso. Quem diz isso é padre. Partido diz: "É preciso dobrar o salário do professor, é preciso garantir uma lei que diga que toda criança, aos quatro anos, vai ter vaga". Isso é bandeira. "(O PT concluiu que) "é preciso investir no social". Voltando a esse grupo do qual o senhor faz parte, e que tem insatisfeitos do próprio PT: que futuro o senhor vê para os integrantes desse grupo dentro do PT? O futuro que eu vejo eu não sei. Vou dizer qual o futuro que eu desejo. Que nós consigamos falar à nação petista. Existe ainda? Aquele velho PT, de antes de o Lula assumir, existe ainda? O PT de antes de assumir, da irresponsabilidade fiscal, eu sou contra também. Eu estou falando: esses perplexos que estão por aí querendo encontrar um discurso novo, mas que traga o discurso social, que saia da visão da opção entre o ABC e a avenida Paulista. "O PT de antes de assumir, da irresponsabilidade Isso tem à ver com uma visão paulista do PT, como o senhor já disse em entrevistas? Paulista não no sentido geográfico. Mentalidade de que o Brasil é um país que, crescendo economicamente, produzindo para os ricos, cria emprego para os pobres e que, com esse salário, os pobres saiam da pobreza. Eu chamo paulista quem acredita nisso. O núcleo que controla o PT, ao meu ver, tem essa mentalidade e não vai mudar mais. Por isso é que eu falo na nação petista, e não no Estado petista. Eu não tenho mais esperança de que o Estado petista mude. Salvo se o Lula assumir a liderança de um novo discurso. Só o Lula me dá esperança ainda. "O núcleo que controla o PT, ao meu ver, tem essa mentalidade (de que a pobreza se combate com o crescimento econômico) e não vai mudar mais" Mas ele não parece bem consciente do que está fazendo? Hoje eu também acho. Hoje eu acho que ele faz parte disso. A gente falou que o Lula, que você chamou de self-made man, poderia dizer "eu não preciso de educação. Eu não precisei". Isso pode ser na cabeça. Mas no coração dele está quem não tem escola, está quem é excluído. Só que ele ainda está com a cabeça de que o fim da exclusão é pelo crescimento econômico. Tem outra razão para achar que o caminho é o PT. É que, se não acreditar no PT, sinceramente, eu não vejo outra alternativa. Com todo respeito aos outros partidos de esquerda, eu não vejo a possibilidade de alternativa neles como motor da transformação, vetor da transformação. O Brasil não precisa de um novo partido. "(O Lula) ainda está com a cabeça de que o fim O PT não está caminhando para uma coisa muito parecida com o PSDB? Não fica um vácuo na esquerda? Hoje está, claro que está. O que eu chamei de "a geléia geral". E aí é um erro que eu acho que o Lula está cometendo. Dois erros: um é ter um chefe da Casa Civil com força própria. O José Dirceu é maior que a Casa Civil. Ele tinha que ser presidente da Câmara, do Senado, vice-presidente da Respública, mas chefe da Casa Civil, a história já mostrou, tem que ser alguém que se sinta pequeno quando ouve um vereador, porque vereador tem voto e ele não tem. Que seja alguém que não disputa eleição com os que vão lá. O José Dirceu é um candidato. Ao ser candidato, quando a gente senta na frente dele ele pergunta "esse cara aí, com essa proposta, vai ameaçar alguns dos votos que os meus aliados vão ter? Quem é que ele vai apoiar por aí afora? Quantos votos eu ganho com isso?" Isso é ruim. Por outro lado, ele tem uma força que o faz superior aos outros ministros. "O José Dirceu é um candidato. Ao ser candidato, quando a gente senta na frente dele ele pergunta "esse cara aí, com essa proposta, vai ameaçar alguns dos votos que os meus aliados vão ter? Quem é que ele vai apoiar por aí afora? Quantos votos eu ganho com isso?" Isso é ruim" Mas nesse caso isso é uma desvantagem? Isso é uma absoluta desvantagem. Primeiro porque enfraquece o presidente. Segundo, porque enfraquece os ministros. Não existem ministros. Nós temos subministros no Brasil. Quando o senhor era ministro, o senhor se sentia assim? Claro que eu me sentia. Eu despachava com o José Dirceu sentindo que estava despachando com alguém que tinha uma estatura superior à minha. Isso é ruim. Que efeito que o caso Waldomiro teve para o José Dirceu nesse aspecto? Ele continua com a mesma força? Tem. Eu acho que tem a mesma força. Porque a força dele não vem do cargo. Se a força dele viesse do cargo, ele já tinha saído. Mas a força dele vem da história dele, da militância dele, do papel que ele teve na construção do PT, no controle que ele construiu no PT, no papel de eleger o Lula. "A força dele (José Dirceu) não vem do cargo. O PT está aproveitando o fato de ser governo para se aparelhar? Eu não acho tão diferente dos outros partidos nesse sentido. O que me preocupa é que, se você olhar o PMDB, era um partido de esquerda. Quando chegou ao poder, se diluiu. Aí o PSDB, por ser de esquerda, as pessoas criaram um novo partido, se separaram do PMDB. Quando chegaram a poder, se diluíram na geléia geral. O PT está caminhando para isso. O outro erro de Lula é não ter assumido a característica de governo de coalizão, em que tem partido na direita e tem partido na esquerda, e ele é o unificador. Ele ser o centro, mas deixando que cada um dos outros extremos existam com as suas personalidades. De vez em quando o PT criticar o governo. É bom. Aí, o Lula dizer pra direita: "Olha, a esquerda está me batendo, eu não posso fazer como vocês querem". "O PMDB e o PSDB, que eram de esquerda, quando chegaram ao poder se diluíram. O PT está caminhando para isso" O Getúlio Vargas fazia assim. Todos os que fizeram coalizão fizeram assim. Mas o Lula tem a tradição de ser o centro de uma esfera no PT, que são as tendências. Ele não consegue captar a idéia de ser o centro de uma linha. A esfera não tem esquerda nem direita. A esfera tem o mais distante e o mais perto do centro. Na linha, não. Na linha, você tem a esquerda e a direita. Acho que o Lula perdeu a chance de fazer isso tentando administrar os partidos como ele administrou as tendências do PT. E como ele adminsitrou as tendências do PT? Ele precisa ser o líder, por exemplo, de mudanças. Qual a mudança de fato liderada pelo Lula? Teve a política externa, com alguma coisa nova. Mas qual é o gesto de ousada liderança do Lula? "Qual a mudança de fato liderada pelo Lula? Teve a política externa, com alguma coisa nova. Mas qual é o gesto de ousada liderança do Lula? Para essa pergunta, a minha resposta seria: nenhuma " Contrariou os que estavam morrendo de medo do PT? Mas isso não é ousadia. Para essa pergunta, a minha resposta seria: nenhuma. Não houve um gesto de ousadia transformadora do governo até aqui. Com toda franqueza e, talvez, com falta de modéstia, o único gesto radical do governo Lula foi a erradicação do analfabetismo. Que parou? E que nunca foi aceito bem pelo governo. O Lula só começou a aceitar mais tarde, e lançou o programa em setembro, e eu briguei até setembro sozinho, porque ele mesmo me falou: o Chávez (Hugo Chávez, presidente da Venezuela) disse para ele que nada estava contribuindo mais para aumentar o prestígio dele que o programa de erradicação do analfabetismo na Venezuela. |