Por Igor Roque *
Por falta de conhecimento e, até mesmo, como consequência dos estigmas há muito existentes,a sociedade brasileira – permita-me a generalização – teima em confundir punição com vingança. Cumprimento de pena, entretanto, não é sinônimo de perda de garantias fundamentais: o Estado tem o dever de observar todos os direitos de quem se encontra sob sua custódia. Por mais antagônico que pareça, é possível afirmar que um dos únicos fatores que não existem nos presídios brasileiros é a ordem estatal.
Por meio da pena e do encarceramento, nosso sistema jurídico aplica três funções distintas: a retributiva, a preventiva e a reeducativa. Nesta última, enxerga-se com mais facilidade a existência dos direitos titularizados por quem está recluso. Não bastasse a punição social em decorrência do cumprimento da pena, o sistema prisional brasileiro, tal como quase todos os serviços públicos, está à beira do colapso – fato que inviabiliza o cumprimento integral das três funções acima referidas.
O exagerado número de presos no Brasil é o ponto de partida para demonstração do caos que vive o sistema penitenciário. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, o país conta coma terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 700 mil presos, sendo aproximadamente 40% provisórios, ou seja, que ainda respondem ao processo penal – numa quadra jurídica, frise-se, norteada pelo princípio da presunção de inocência.
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A falta de capacitação dos agentes penitenciários e de estrutura física adequada para sua atuação potencializam o cenário de dificuldades. Especialistas sugerem a criação de novos e menores presídios, de modo a facilitar o controle. Esbarram, porém, na resistência do próprio Estado, ante a falta de apelo popular para implementação de políticas dessa natureza, em favor de quem cumpre pena.
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Outro problema diz respeito à morosidade do Poder Judiciário na condução dos processos criminais. Em consequência dessa lentidão, há um estrondoso número de processos judiciais em curso e cada vez mais presos, que deveriam estar soltos ou aguardando o julgamento em liberdade, ocupam e superlotam o sistema. É urgente buscar saídas para solucionar o problema, mas para além do discurso, de forma profunda.
É preciso alterar pontos da legislação de modo a despenalizar determinadas condutas de menor relevância, as quais devem ser tratadas pelo direito administrativo e civil. Ademais, na aplicação do direito, é preciso exterminar a lógica seletiva da justiça criminal, fazendo com que as leis sejam aplicadas independentemente de cor, raça, classe social e nível de escolaridade.
A fim de contribuir para redução do problema instalado, foi firmado convênio entre o Conselho Nacional de Defensores Públicos-Gerais (Condege), a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério da Justiça. Dessa parceria surgiu o programa “Defensoria sem fronteiras”, que consiste em força tarefa consubstanciada na prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos presos dos principais e mais caóticos estabelecimentos penais do país, a fim de tornar possível que os réus respondam aos processos em liberdade e garantir a progressão de regime, nos termos da Lei de Execuções Penais.
Provar que as prisões, em grande medida, são desnecessárias é o “espanto” causado pelas absolvições declaradas pelos Tribunais Superiores. E aqui não falo de processos envolvendo agentes que gozam de foro privilegiado ou de privilégios frente aos cargos que os blindam, mas de cidadãos que, irresignados, levam seus casos até às últimas instâncias em total alinhamento ao devido processo legal e, em grande parte, por meio da Defensoria Pública. O trabalho dos defensores públicos federais para garantir a isonomia na aplicação da lei é fundamental, mas carece também de uma mudança cultural. Mudar o olhar da sociedade sobre aqueles que cumprem pena é o maior desafio.
* Defensor público federal e presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef)