Mariana Abreu
A discussão levantada pela deputada Iara Bernardi provoca divergências entre os especialistas. Eliane Vasconcellos Leitão, autora de A mulher na língua do povo, não encampa a proposta. No livro, publicado em 1988, ela mostra de que forma o léxico e a estrutura gramatical da língua refletem a posição de quem é, na sociedade, o “sexo fraco”, com o perdão da expressão.
Em sua opinião, a gramática portuguesa é “assexuada” e o simples uso do masculino para designar os dois gêneros (por exemplo, a palavra ‘médicos’ para se referir tanto aos médicos, como às médicas) não caracteriza machismo. No entanto, Eliane, que é pesquisadora da Casa Rui Barbosa, admite que, “apesar de todas as conquistas femininas hoje testemunhadas, a língua ainda não trata com igualdade o homem e a mulher” e que “é impossível haver transformações sociais sem mudanças profundas na mentalidade”.
Para a autora, a língua reflete o mundo exatamente como o homem o vê. Eliane, que também se dedica ao estudo da relação mulher-literatura, aponta a existência de uma distinção entre as falas masculina e feminina. “Os homens, por exemplo, falam mais de esportes, utilizam menos adjetivos, menos diminutivos e não se inibem em soltar palavrões”, aponta. Já as mulheres não costumam dizer “palavras sujas”. Não porque lhes é proibido dizê-las, mas sim pelas normas de civilidade, “bom-tom”, posturas sociais prévias e até preceitos religiosos. Assim, a língua daria testemunho de como homens e mulheres são vistos pela sociedade, segundo Eliane.
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Em um estudo feito na década de 1970 para sua dissertação de mestrado, Eliane analisou os verbetes “homem” e “mulher” nos dicionários Novo Aurélio e Houaiss. O resultado mostrou que ambos os verbetes reforçam antigos estereótipos: as qualidades femininas têm de estar ligadas à área do sentimento e da família, e as masculinas, à área da pujança e da sexualidade. “A análise evidenciou que a sociedade cobra da mulher que ela seja bonita”, revela Eliane.
Já o professor de Língua Portuguesa Hélio Consolaro, que dá aula nos colégios Salesiano e Degrau, em Araçatuba (SP), manifesta simpatia pelo projeto de Iara Bernardi. Ele observa que, quando o assunto é concordância nominal, o gênero masculino toma conta. O tema foi assunto de um artigo que o professor publicou recentemente no site Por Trás das Letras.
Machismo evidente
A tese dele é de que, até mesmo no português, há comandantes e comandados – nesse caso, o gênero feminino. Por exemplo, o adjetivo que se refere a substantivos de gêneros diferentes vai para o masculino plural, como em “alunos e alunas aplicados”, mesmo que a maioria esmagadora da classe seja composta por mulheres. É o que Hélio Consolaro chama de “machismo evidente”. Até para qualificar seres inanimados, sem sexo, o adjetivo é masculino. Papel, caneta e revista velhos – e não velhas.
Ainda mais conhecido é o uso da palavra homem para se referir à humanidade de maneira geral, como em “homem racional” ou “evolução do homem”. Até mesmo certas profissões não contam, no idioma, com uma flexão feminina, como soldado e toda a hierarquia militar. Por exemplo: “O soldado Maria Regina foi convocado”.
Vida longa ao machismo?
Adriano da Gama Kury escreveu Para falar e escrever melhor o português. A idéia desse manual básico da língua é conduzir o leitor a uma boa redação e a uma fala correta. Entre dicas de acentuação, emprego de maiúsculas, regência e concordância, o autor dedica um capítulo à dominação do gênero masculino em nosso idioma.
O professor de Língua Portuguesa Hélio Consolaro, que cita o livro de Adriano em seu artigo Machismo na Língua não considera o português um dos idiomas mais preconceituosos. “Até porque seria preciso conhecer a fundo outras línguas para afirmar ao certo”, pontua.
A norma gramatical recomenda o uso do gênero masculino na concordância de pronomes de gênero neutro, como alguém e ninguém. “Na festa, procurei alguém conhecido” ou “Não havia ninguém famoso no festival de cinema”. E, de novo, entra em jogo o masculino no uso do pronome pessoal da 3ª pessoa do plural para substituir nomes masculinos e femininos. “João e Maria saíram: eles vão ao teatro”, exemplifica.
Até nacionalidade cobra o masculino, segundo a norma gramatical. “O brasileiro é cordial” faz menção a homens e mulheres nascidos no Brasil. O livro de Adriano da Gama lembra de um interessante detalhe. Quando o ex-presidente da República José Sarney dizia “brasileiros e brasileiras”, muita gente machista ria, mas ele usava uma linguagem politicamente correta.
Entre muitos outros exemplos, Adriano aponta a masculinização da locução “devido”, particípio do verbo dever. A concordância deveria ser feita com o substantivo referente. Ou seja, na frase “ausência devido a motivo imperioso” a concordância é machista, por causa da tal masculinização. O certo gramaticalmente seria “ausência devida a motivo imperioso”.
Há temas mais relevantes
O professor de Direito da Universidade de Brasília Aldo Campos discorda. No seu entender, não resta nenhum ponto controverso na linguagem utilizada nas leis em relação à discriminação das mulheres ou até mesmo de alguma minoria. “Recentemente, foram extirpadas do Código Penal expressões incômodas, como mulher honesta. Não sobrou nada”, acredita.
Aldo Campos tacha de desnecessário e infrutífero o debate sobre o uso da linguagem inclusiva na legislação e nos documentos oficiais. “Usar o gênero masculino para se referir aos dois sexos nada mais é do que uma convenção do idioma”, defende Aldo Campos. Para ele, sobram temas mais relevantes para se debater.