Há um repúdio aos partidos em todo o mundo, mas ainda não se inventou a democracia sem partidos… Presume-se que se possa combinar a democracia representativa com uma democracia direta pela internet (distinta do assembleísmo manipulatório), mas ninguém sabe ainda exatamente como fazê-lo. Será a grande questão política do futuro que se abre.
Esse é um assunto que pretendo tratar mais adiante. Hoje gostaria de analisar o “sentimento antipartido” nas multidões. Elas vêm expressando nas ruas o pensamento da classe média brasileira na forma plural de um quebra-cabeças, até porque esse pensamento é bastante diferenciado em suas diversas tribus. Um elemento unificador, no entanto, é o repúdio aos partidos. É comum, porém, se olhamos mais de perto, percebemos que mesmo aí ele também é diferenciado, nuanceado.
Ao iniciar-se a mobilização, o estopim foram grupos vinculados ao Movimento “Passe Livre”, que possui certos laços – e agora os coloca claramente – com pequenos partidos da extrema-esquerda ou, se preferirem, “à esquerda do PT”.
Esperavam que a mobilização seguisse a trajetória convencional daquelas protagonizadas pela esquerda revolucionária clássica: um movimento de massas onde os “setores mais atrasados” aderem a uma “vanguarda” e viram sua “massa” (de manobra), se não disciplinada pelo menos influenciada pelas suas diretrizes.
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O problema é que desta vez não funcionou dessa maneira. De repente, por força da capacidade de mobilização multifacetada e individualista da nova mídia das redes sociais, o movimento explodiu em termos de multidão e se expressou de mil e uma maneiras com ênfase e demandas de todo tipo, mas um traço em comum: justamente a não aceitação de uma “vanguarda”, de uma liderança ou nada que se assemelhasse, nem de perto nem de longe, a isso. O símbolo dessa rejeição foi o repúdio às bandeiras, que vêm a ser a fetichização e a glorificação dos partidos ou de movimentos ideologizados com “espírito de corpo”.
Nossos esquerdistas ‘ideologicamente corretos’ esperavam apenas o repúdio aos políticos tradicionais e seu partidos, ou melhor dizendo, legendas: todo esse arco de uns 30 partidos brasileiros que seria muita generosidade definir como de “direita” – embora possam eventualmente abrigá-la. São condutos para a participação na política eleitoral/institucional que servem de base à carreira profissional da maioria dos políticos brasileiros e cuja expressão mais acabada – mas longe de ser única – é o PMDB. Quase todos têm no seu interior, também, algumas pessoas honradas, com espírito público, mas essas constituem invariavelmente uma minúscula minoria.
Também esperavam (e torciam) por um repúdio ao PT por ter deixado de ser o partido quase “revolucionário” ou, pelo menos, “combativo” dos anos 80 e 90, quando lavava mais branco, em termos “éticos”, e fazia oposição a FHC. Por ter cooptado os currais e grotões e feito de boa parte daqueles partidos do establishment seus sócios menores no poder que já leva uma década. Por ter entrado no jogo de corruptores e corruptos em nome da governabilidade, mas não apenas…
Só que a maior parte daquela “massa” tem ido mais longe: além de repudiar os partidos tradicionais fisiológicos-clientelistas-assistencialistas e também o PT, estendeu sua hostilidade aos partidos e organizações de extrema-esquerda, inclusive aqueles que de alguma forma impulsionaram o próprio movimento de agora nos seus primórdios. Aí soaram os alarmes e começamos a ver manifestações de perplexidade contra “setores conservadores” ou de “direita” do movimento, que ousam questionar os companheiros heroicos que lá estão desde o início. Mas nada indica que isso de fato seja fruto de uma ação organizada de direita. Mesmo a presença de “carecas” da periferia, em São Paulo, um fenômeno infrapolítico, mais para galera de estádio, parece muito longe de dar conta do que acontece.
Não será a primeira nem a última vez que um movimento de grande amplitude que ninguém controla ou conduz passa por cima de quem quer controlá-lo ou conduzi-lo, particularmente, quando se tratam de partidos leninistas jurássicos. Alguns ainda defendem abertamente a ditadura do proletariado. Outros abandonaram essa fórmula, mas cultuam ditaduras “de esquerda” (Cuba) ou “democraduras” do tipo chavista, e exprimem uma cultura política sectária, autoritária e arrogante típica do leninismo e seus filhotes inimigos: o trotskismo e o maoísmo, em versões hoje refinadas e atualizadas, mas com a mesma desconexão do mundo real e a mesma característica sectária e liberticida que em situações históricas dadas deixou um lastro pavoroso de sangue e sofrimento humano.
Por que razão iria um amplo movimento, principalmente de classe média, poupar esses partidos de seu repúdio? Por que razão iria se dispor a ser liderado por eles? Por que razão iria livrar a cara deles?
Há “direita”, propriamente dita, no movimento? Não é claro, no momento. A turma da violência, das depredações e saques é uma franja típica à margem de grandes movimentos em todo o mundo. Com uma certa “forçação de barra” conceitual poderíamos defini-los como sendo uma “direita existencial”, na medida em que acreditam na força, na violência e querem se afirmar por ela. Cultuam-na como as galeras dos estádios. Mas isso dificilmente se configura politicamente, pelo menos por agora.
O PT certamente vai “criar” uma direita imaginária para poder dar ao movimento uma conotação conspirativa que caiba melhor no seu universo mental. Na cultura de esquerda a paranoia de uma conspiração é praticamente inevitável. Certamente vamos ter teorias a respeito da CIA, dos PIGs, do neoliberalismo ou de qualquer coisa do estilo. Já não se fazem teorias conspiratórias como antigamente quando boa parte da direita está cooptada pelo governo e trabalha de mãos dadas com ele, haja visto Kátia Abreu. Mas certamente vamos ver teorias conspirativas do arco da velha florescerem. Aguardem.
E, no entanto, existe sim um perigo conspirativo. Um perigo contemporâneo, fora do registro clássico esquerda x direita dos cânones habituais da luta por poder político que poderá eventualmente ocorrer.
Venho chamando a atenção há tempos para o risco de um novo “novo medievalismo”, onde o grande risco não é mais o “golpe militar de direita”, regimes ditatoriais de tipo clássico, mas a “síndrome dos Estados falidos” com o surgimento de poderes paralelos e potentados locais totalmente alheios às polarizações ideológicas do passado.
No Rio, ele já se expressou pelo controle territorial do narcovarejo sobre favelas. Em SP, por uma organização criminosa unificada comandada de dentro das prisões, o PCC. Noutros países, como o México atualmente, cartéis de “narcoatacado”. Não estará sempre vinculado à droga, embora ela ofereça a melhor logística de que o fenômeno pode dispor.
Se perigo existe, ele não vem de uma conspiração de “direita” clássica, ainda que possamos encontrar eventualmente pequenas tribus de extrema-direita, mesmo nazis, por aí. O risco vem de um duplo movimento que ainda não ocorreu e esperemos não aconteça: uma apropriação do movimento em descenso (este, inevitável) pelo lumpesinato com tipos de violência que temos visto e outras e, no seu bojo, uma ação armada de facções criminosas organizadas. Aí reside o perigo potencial. É aí que uma atuação preventiva pode se fazer necessária.
No mais, vamos aceitar que vituperem todos os partidos pois todos têm culpas no cartório, embora não as mesmas.
E vamos encarar a dificílima tarefa de pensar algo de novo, não da Rede como nome de partido, mas a Rede, propriamente dita, que permita amplas cumplicidades dentro dos atuais – e questionados – partidos, e fora deles, para iniciar uma prática de participação que a revolução na internet propicia, para além da simples convocatória e crítica.
Como fazer? Não sabemos. Vamos tatear e engatinhar.
A reforma política
Positiva a idéia de uma “Constituinte” específica para a reforma política. Ficou evidenciada a incapacidade do Congresso de fazê-la. A reforma foi enterrada e pariu-se um ratinho: o projeto de lei Edinho Araújo (PL 4470), feito para boicotar casuisticamente novos partidos!
A “Constituinte” entendida como um corpo legislativo específico com delegação do Congresso exclusivamente para a reforma política é válido com dois cuidados: ser de fato limitada aos temas de reforma política e permitir que sua eleição, coincidindo com o pleito de 2014, seja realizada num voto misto em que parte desse corpo legislativo seja eleita de candidatos via partidos e parte por candidatos independentes, eleitos por um voto cidadão onde qualquer um possa se candidatar independentemente de partidos. Finalmente: o plebiscito ou referendo deverá ser ao final dos trabalhos, em 2016, para aprovar ou rejeitar a proposta da “Constituinte” ou corpo legislativo delegado com propósito específico.
Sua convocação, feita mediante uma PEC a ser aprovada no Congresso, o mais rápido possível.
Nesses termos apoiamos a ideia de a reforma política se dar por um mecanismo alternativo a um Congresso que jamais votará uma mudança no sistema eleitoral que elegeu seus membros.