Paulo Henrique Zarat
As irregularidades apuradas pela Controladoria Geral da União (CGU) na aplicação dos recursos federais parecem não ter fim. Relatório da CGU revela um prejuízo aos cofres da União que ultrapassa os R$ 90 milhões no programa de governo destinado a financiar a compra de medicamentos de alto custo para a população atendida pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Além do prejuízo financeiro, houve também desperdício, com a perda de mais 11 mil frascos de remédios que tiveram os prazos de validade vencidos. São os chamados medicamentos excepcionais para tratamento de pacientes transplantados e doenças como osteoporose, câncer de próstata, insuficiência renal, epilepsia, doença de parkinson, mal de alzheimer, doença de gaucher e hepatites B e C.
As irregularidades foram constatadas no âmbito do programa federal denominado "Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos". Ele prevê o repasse de dinheiro da União para as Secretarias Estaduais de Saúde adquirirem medicamentos que são distribuídos gratuitamente aos pacientes atendidos pelo SUS.
Leia também
Tratamentos irregulares
O caso que chamou mais atenção no relatório da CGU foi o do medicamento Interferon Alfa Peguilado, usado no tratamento da hepatite C. Em todos os 26 estados e no Distrito Federal foram detectadas irregularidades no repasse de recursos para o tratamento desse tipo de hepatite. De acordo com o relatório, "apurou-se um prejuízo de R$ 77,5 milhões para a União, originado no fato de que houve faturamento, com transferência de recursos, de 48.459 tratamentos irregulares, ao custo de R$ 1.600,00 cada".
Nesse caso, especificamente, o repasse do dinheiro é feito de acordo com o número de tratamentos, independentemente da quantidade de ampolas entregues aos pacientes. Ou seja, a secretaria estadual de saúde deve contabilizar e informar o Ministério da Saúde o número de pacientes atendidos e não o de remédios distribuídos.
Não foi o que ocorreu. Em todas as unidades federativas, a CGU descobriu que os números informados correspondiam à quantidade de remédios distribuídos e não à de pacientes, o que fez com que o repasse feito aos estados para cobrir os custos do tratamento de hepatite C, à base de Interferon Alfa Peguilado, fosse 75% maior que o devido.
O período em que foram constatadas as irregularidades compreende os meses de janeiro a junho de 2004, conforme relatório concluído pela CGU em agosto do ano passado.
Como funciona
As irregularidades não param por aí. No mesmo período, a CGU analisou os repasses da União para as secretarias de saúde dos estados do Amazonas, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina e Rio Grande do Norte e descortinou uma série de problemas na execução do programa Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. A escolha do estados se deu por meio de sorteio. Cada qual deles fica em uma das cinco regiões geográficas do país (Norte, Sudeste, Centro-Oeste, Sul e Nordeste).
De acordo com o programa, a entrega dos medicamentos deve ocorrer após uma sistemática seleção dos casos elegíveis para serem atendidos pelo governo. Um médico deve preencher a solicitação de medicamento excepcional (SME) e anexar laudo médico atestando as condições clínicas do paciente. As secretarias estaduais de saúde são responsáveis pela verificação dos documentos para saber se os pacientes realmente se enquadram no programa.
Depois de comprovado o enquadramento do paciente no programa, o Ministério da Saúde autoriza o fornecimento, por três meses, do medicamento por meio de um documento que deve conter a assinatura do médico responsável pelo diagnóstico. A cada trimestre. uma nova SME deve ser preenchida e encaminhada ao Ministério da Saúde para autorizar o fornecimento gratuito de medicamentos por mais três meses.
O SIA/SUS, sistema que gerencia a quantidade de medicamentos entregue, deve ser alimentado com o número de remédios efetivamente distribuídos. Os dados constantes no SIA/SUS é que determinam o valor das transferências de recursos da União para o estados.
Mais remédios que pacientes
Os procedimentos, no entanto, não funcionam tão bem na prática. Entre os problemas identificados pela CGU, está justamente a divergência entre a quantidade de recibos de entrega dos medicamentos e as informações do SIA/SUS que servem de base para o cálculo dos repasses.
Em Minas Gerais, a CGU descobriu uma diferença de 15.568 recibos de entrega de remédios a mais do que os dados informados no SIA/SUS. Por causa disso, houve um repasse de R$ 952.261,13 superior ao que era devido. Em Santa Catarina o valor repassado a mais para o estado foi de R$ 92.671,40, por causa da diferença de 958 recibos entre o número de remédios entregues e as informações contidas no sistema.
No Mato Grosso do Sul e no Amazonas, os valores repassados a mais foram de R$ 69.334,12 e R$ 3.778,40, respectivamente. Somados todos os repasses indevidos para os quatro estados que apresentaram irregularidades nesse quesito, o valor chega a R$ 1.118.045,05.
Nesse caso, o relatório não aponta divergências no estado do Rio Grande do Norte. A CGU recomendou que os valores repassados a mais sejam devolvidos ao Fundo Nacional de Saúde, órgão vinculado ao Ministério da Saúde.
Já na auditoria para verificar as divergências entre os números informados pelas secretarias estaduais de saúde dos estados em relação aos 20 medicamentos mais distribuídos, no período de janeiro a junho de 2004, e os dados do SIA/SUS, o estado do Mato Grosso do Sul foi o único, dos cinco sorteados pela CGU, que ficou de fora do relatório.
Nos outros, os repasses do Ministério da Saúde perfizeram um montante de R$ 13.346.910,25 a mais que o valor devido. Sendo, R$ 9.708.279,54 para Minas Gerais; R$ 3.256.563,23 para Santa Catarina; R$ 305.974,48 para o Amazonas e R$ 76.093,00 para o Rio Grande do Norte.
Ainda assim, faltam remédios
Mesmo com os repasses superiores que o Ministério da Saúde fez às secretarias estaduais por causa das divergências das informações, houve falta de medicamentos. Em Minas Gerais, a CGU entrevistou 116 pacientes de um total de 462 que compunham uma amostra aleatória. Desses, três pacientes declararam que tiveram que interromper o tratamento em andamento por falta de medicamento.
A auditoria concluiu também que as secretarias estaduais dos cinco estados fiscalizados "não apresentavam controle de estoque satisfatório, podendo prejudicar a distribuição racional dos medicamentos à população, bem como ocasionar desperdícios". Além disso, ao analisar os processos, a CGU constatou inconsistências na documentação exigida para a liberação dos remédios nos estados onde foram feitas as auditorias.
Direcionamento das licitações
Foram detectadas também irregularidades nas licitações para compra dos remédios pelas secretarias estaduais de saúde. No Amazonas, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Norte, a CGU descobriu que houve direcionamento da licitação para compra de remédios. Nesses três estados, os editais de licitação discriminavam os nomes dos remédios a serem comprados e não o princípio ativo do medicamento, conforme determina a lei de licitações.
Houve também dispensa indevida de licitação no estados do Amazonas, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Norte.
Procedimentos básicos, como a assinatura e o número do CPF do médico que autoriza o tratamento gratuito pelo SUS, também não constam de várias autorizações de tratamento. Desde 1999, uma portaria do Ministério da Saúde determina que o médico responsável pelo diagnóstico deve preencher com o documento com o número do CPF, assiná-lo, além de carimbar a autorização do paciente que vai receber os medicamentos gratuitos.
Ministério responsabiliza estados
Outra irregularidade descoberta pela CGU é o descumprimento de uma outra portaria do Ministério da Saúde, que determina o envio da programação anual de medicamentos excepcionais pelos gestores estaduais do SUS. O objetivo dessa portaria é aprimorar o planejamento da demanda dos recursos necessários e controlar os gastos com os medicamentos.
Mas as secretarias estaduais de saúde de Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Norte disseram desconhecer o documento e, por isso, não encaminharam as respectivas programações. As secretarias argumentaram ainda que nunca foram cobradas por parte do ministério quanto a essa exigência.
Procurado pelo Congresso em Foco, o Ministério da Saúde, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que a responsabilidade por qualquer política de saúde que envolva o SUS cabe aos três níveis de governo: federal, estadual e municipal. Portanto, os estados também são responsáveis pela gestão dos recursos repassados.
A assessoria também informou que o Denasus faz auditorias internas para fiscalizar a correta aplicação dos recursos. Informou ainda que "seria humanamente impossível colocar um funcionário para fiscalizar cada secretaria estadual de saúde e que estados e municípios têm autonomia para aplicar os recursos".
Deixe um comentário