Celso Lungaretti*
A saída do Exército Brasileiro de onde nunca deveria ter entrado foi o único acontecimento auspicioso da comédia de erros que virou tragédia no morro carioca da Providência.
Tudo começou quando o senador Marcelo Crivella, ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, apostou numa reciclagem dos barracos das favelas como trampolim para a prefeitura do Rio de Janeiro – à qual pretende chegar com o apoio do vice-presidente José Alencar (seu colega de partido no PRB) e a benção do governo federal.
O caráter eleitoreiro desse empreendimento não escapou ao veterano analista político Zuenir Ventura, de O Globo, que o denunciou no ano passado. Com a desfaçatez habitual, Crivella retrucou: “Gostaria que o cronista me explicasse como se pode fazer uma obra de interesse público sem que tenha interesse político”.
Relembrando as farpas então trocadas, Ventura comenta: “Não sou político, nem engenheiro, como o ex-bispo, mas acho que a melhor maneira de ‘servir ao público’ não é, por exemplo, pagar mais caro pelo que se faz supostamente em seu benefício. Só mesmo a credulidade do Exército e a prodigalidade do presidente Lula com nosso dinheiro para não suspeitar de um projeto em que o custo para reformar uma casa (R$ 22 mil) é mais da metade do preço de construí-la por inteiro (R$ 32 mil)”.
A revista Veja, que – é importante ressalvar – não tem mais a credibilidade de outrora, apontou outras impropriedades: “Desde 2004, Crivella usa o Cimento Social como promessa de suas campanhas. Foi a equipe do senador que fez o projeto e elaborou o cadastro dos beneficiados, embora a obra de 16 milhões de reais seja paga com dinheiro do Tesouro Nacional. Há denúncias de favorecimento a fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus. E também de que foram escolhidas as casas mais visíveis das movimentadas avenidas próximas da favela.
Pouco leal, José Alencar agora joga toda a responsabilidade nas costas do presidente Lula, como se constata na entrevista que deu a Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, em 23/06:
Leia também
– Há dois anos, o Crivella levou essa idéia ao presidente Lula. Eu estava presente. O Lula gostou muito. Passou para o Ministério das Cidades, que deu os encaminhamentos.
Indagado sobre como o Exército foi incluído nesse pacote, ele lavou as mãos, emporcalhando as alheias:
– Nosso partido, o PRB, não tem esse poder de convencimento, de uma força militar fazer algo que não queira. Isso tudo passou pelo presidente Lula.
Qual era, afinal, o motivo da relutância do Exército em executar essa tarefa? Simplesmente o de que sua missão constitucional não é policiar cidades nem servir de guarda-costas para empreiteiras. Os comandantes tinham plena consciência do desgaste a que exporiam a corporação.
Como ressaltou o senador José Sarney, o Exército não honrou suas tradições ao aceitar uma incumbência descabida, contrariamente ao que fazia no passado, quando se recusava a caçar escravos fugidos por considerar que isso cabia a capitães-do-mato e não a militares.
O resultado foi terrível. Agindo com a truculência que lhe-é costumeira quando atua junto a comunidades carentes, não teve desta vez a sorte que preservou sua missão no Haiti de incidentes mais graves.
Uma patrulha militar suspeitou de três jovens que voltavam de uma balada, submetendo-os (arbitrariamente, é sempre bom repetir) a uma revista cujo resultado foi nulo: o volume sob a camisa de um deles não era arma nem drogas.
Houve bate-boca. O oficial que comandava a patrulha (tenente) os deteve por desacato. Seu superior (capitão) mandou soltá-los. O tenente, inconformado, desacatou a ordem. Foram barbaramente torturados e executados a sangue-frio (um deles recebeu 26 tiros).
A versão oficial é a de que o tenente os entregou a traficantes de outro morro. A versão alternativa é a de que algum deles sucumbiu às torturas no quartel (como acontecia freqüentemente na ditadura de 1964/85) e os militares decidiram assassinar os outros dois, montando uma farsa para atenuar suas responsabilidades.
Ambas deixam a imagem do Exército em frangalhos. Além dos detalhes mais gritantes, há os fatos de que um tenente ignorou olimpicamente a decisão de um capitão; um capitão não teve a mínima curiosidade em verificar se sua ordem havia sido cumprida; e o comandante Militar do Leste, general Luiz Cesário da Silveira Filho, diante de um acontecimento de tal gravidade, preferiu continuar em férias na Europa a vir descascar o abacaxi.
O governo Lula, como sempre faz quando dá um passo em falso, bateu cabeça e demorou vários dias para curvar-se à evidência dos fatos. Ao invés de acatar a liminar solicitada pela Defensoria Pública da União e concedida pelo Tribunal Regional Federal, entrou com um recurso que só teve o efeito de prolongar a exposição negativa dele próprio, de Crivella e do Exército.
Só quando a Justiça Eleitoral foi obrigada a intervir embargando as obras, pois se tornara de conhecimento público que a equipe de Crivella havia capitalizado o projeto Cimento Social em folhetos e material de campanha, o ministro da Defesa Tarso Genro, finalmente, deu a ordem de retirada das tropas.
Resta saber se ele reconsiderou a posição que antes defendia, de criar-se um respaldo legal para a utilização de militares em missões policiais: “É claro que as Forças Armadas têm obrigações com a segurança. Mas para isso é preciso mudar a lei. Da última vez que o Exército participou, ainda estão aí centenas de processos. É preciso prevenir isso. Até julho teremos o assunto estudado e uma nova lei até o fim do ano”.
Ou seja, ele considerava que o erro cometido em março de 2006 não havia sido a operação atrabiliária e desastrada com que os militares tentaram recuperar armas roubadas de um quartel em São Cristóvão (RJ), mas o fato de que aqueles cidadãos cujos direitos foram atingidos (até com saques!) receberão agora as indenizações pertinentes.
Esperamos que esta última crise clareie as idéias de Jobim: as Forças Armadas são a pior opção para o combate a traficantes e outros criminosos que se ocultam no meio de populações carentes, pois transformar essas comunidades em campos de batalha acarreta sempre vítimas inocentes. Governos não podem dispor a bel-prazer da vida dos cidadãos.
Por último, é importante denunciarmos e repudiarmos a campanha que os totalitários explícitos e implícitos desenvolvem contra as práticas civilizadas, principalmente o respeito aos direitos humanos.
Não faltaram indivíduos ignóbeis (até na imprensa!) para satanizarem as vítimas da Providência, omitindo que, à luz do Direito, eram totalmente inocentes, pois jamais haviam sido condenadas pela Justiça. Passagens pela polícia, por suspeitas não confirmadas, nada significam em termos legais nem podem ser argüidas contra ninguém. Há um indisfarçável preconceito nos que trombeteiam contra favelados aquilo que jamais ousariam trazer à baila num caso envolvendo pessoas de classe média, por exemplo.
O que houve foi somente isto: três cidadãos brasileiros, em pleno usufruto de seus direitos constitucionais, sofreram torturas atrozes e foram abatidos como cães, em função da sordidez dos poderosos e da omissão dos servis.
Serão mortos sem sepultura, como tantos e tantos outros em nosso sofrido país, até que consigamos construir aqui uma democracia de verdade. A de hoje é um escárnio para os que, arriscando a vida, a integridade física e a sanidade mental, conseguiram que o estado de Direito fosse restabelecido em nosso país.
*Celso Lungaretti, 57 anos, é jornalista em São Paulo, com longa atuação em redações e na área de comunicação corporativa, e escritor. Escreveu Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005). Mais dele em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.