Clique abaixo para ouvir o comentário de Beth Veloso veiculado originalmente no programa “Com a palavra”, apresentado por Mariana Monteiro e Márcio Salema na Rádio Câmara:
[sc_embed_player_template1 fileurl=”https://static.congressoemfoco.uol.com.br/2016/06/comapalavra_20160621_papodefuturo.mp3″]
Você já baixou uma música na rede no sistema torrent? Já usou a senha de um colega para acessar um documento importante, a pedido dele? Já participou de discussões mais acaloradas na rede social, e perdeu um pouco a compostura na internet?
Cuidado, pequenos deslizes podem causar grande dor de cabeça para quem vive, respira e agita no ambiente internet.
A rede está no epicentro de intenso debate sobre formas para aumentar sua regulação. E, no meio dessas propostas, há, além de muita paixão, potenciais mudanças bastante significativas. O Marco Civil da Internet inaugurou, digamos assim, em 2014, a temporada de discussão de direitos e deveres na rede, e, nesse sentido, foi até comedida. O principal no marco foi estabelecer os princípios pelos quais a rede deve se pautar no Brasil: igualdade (ou neutralidade na distribuição do conteúdo), universalização do acesso, princípio da não distinção do tráfego.
Leia também
Debaixo deste guarda-chuva é que, agora, começa a chover no ambiente da internet, e há muitas goteiras na Casa. Depois de exaustivo trabalho e acurado relatório disponível na página da Câmara, a CPI dos Crimes Digitais ofereceu um sortido trabalho de investigação sobre esse lado negro da internet no Brasil, e que, entre os principais crimes, estão: o narcotráfico, o tráfico de armas e o tráfico de pessoas, entre tantos outros. O que torna a interface internet mais preocupante, no dizer de Cerqueira e Rocha (2015):
“A instantaneidade das ações e a possibilidade de assincronia no uso da internet atenua os graus de segurança e certeza nas transações nela realizadas, o que gera a brecha (breach) para a atuação dos delinquentes.”
Nem só de pequenos ou grandes delitos vive a internet. É por isso que a CPI dos Crimes Digitais debruçou-se sobre as mais diferentes hipóteses, tendo com resultado uma expressiva quantidade de projetos de lei a serem votados nesta Casa. Tratam desde os crimes de injúria, calúnia e difamação até o acesso indevido a informações confidenciais, de órgãos de segurança ou jurídicos.
Uma olhada superficial demonstra que há penas diferentes, conforme o caso, que vão desde o pagamento de cesta básica até cadeia. É claro que um dos lobbies que mais influenciaram foi aquele contra a pirataria, especialmente no meio artístico, como o projeto de lei (PL) que autoriza o bloqueio de sites estrangeiros que veiculam conteúdo ilegal, proposta alinhada com as entidades que defendem os direitos autorias e de propriedade intelectual.
Há perguntas que precisam ser respondidas:
1- É mais importante combater crimes contra sistemas informáticos ou crimes cometidos pela internet, que é um reprodução, contendo todas as condutas da vida real?
2- Não seria um ponto de partida não criminalizar a internet, mas sim as condutas que ocorrem nela?
3- Que tal assegurar antes os direitos, depois as penalidades dentro de uma perspectiva mais construtivista?
4- O que está por trás de toda a perseguição em torno da internet? Os crimes contra a honra, por exemplo, devem ser vistos como um passado que não pode e não deve ser escondido? Estamos falando de pessoas públicas, que querem filtrar a internet como um banco de dados de boas experiências apenas, ou de gente como a gente?
5- A remoção “automática”, assim, entre aspas (sem intervenção da Justiça), de conteúdo análogo a outro já eliminado da rede, por decisão judicial, não irá impedir que se tenha memória na internet?
Talvez o fato de que a rede adquire cada vez maior relevância no mundo atual a torne agora alvo de ações regulatórias. É preciso regular o que não está funcionando, mas não é a lei contra o crime que irá prevenir o crime. Caso contrário, não teríamos superlotação nas cadeias.
O que, de fato, cria uma sensação generalizada de segurança é fazermos testes na internet contra incêndio, ou seja, garantirmos a estabilidade da rede, continuidade dos programas e uma educação para o uso saudável da rede e, do ponto de vista tecnológico, o desenvolvimento de sistemas que deem robustez e prevenção contra a ação de vírus invasores.
Criminalizar simplesmente o acesso a qualquer arquivo seria como acusar o cliente de furto por tomar um produto em suas mãos e se encaminhar para a caixa registradora?
Afinal, no mundo real, todo mundo é inocente até que se prove o contrário. É certo e justo ter uma corte judicial especializada em crimes digitais – como sugere também a CPI –, como a invasão e dispositivos informáticos com a intenção de causar danos ou prejudicar alguém. É preciso que haja o aspecto da intencionalidade. É preciso que se observe o princípio da proporcionalidade, não cabendo a um juiz de primeira instância calar todo um sistema de comunicações que envolve milhões de pessoas. Nem esse sistema pode ser refratário às leis brasileiras, ou seja, o WhatsApp, o Facebook e outras empresas não são intocáveis – é preciso que haja instrumentos de controle e acesso judicial com fins de investigação, no caso concreto, naquela que está se tornando a principal forma de comunicação da atualidade.
Difícil, porém, é delimitar o papel dos provedores, sem judicializar as condutas na internet, de modo a não correr o risco de que uma empresa estrangeira possa ter a mesma responsabilidade que um doutor que usa toga no Brasil, ou seja, os senhores juízes.
Muitas vezes, ao se querer cortar etapas, buscando o atalho, acabamos tomando o rumo errado. Os provedores de conteúdo, os “gerentões” das redes sociais podem substituir os juízes na tomada de decisões sobre conteúdo com potencial ofensivo, numa decisão precipitada entre o direito à informação e a censura propriamente dita?
Disciplina também é recomendada na arte de regular a internet, e isso não pode ser feito assim, a rodo, em apenas 20 anos de existência da rede. O que é crime de pedofilia, que vá para o Código Penal. Conduta, calúnia, difamação também são condutas que já estão criminalizadas. O problema não é a invasão da sua conta corrente, mas o roubo do dinheiro, e isso já é crime também.
Vale lembrar que durante anos as emissoras de TV pulularam e impediram que o marco regulatório do setor fosse alterado um milímetro sequer. E estamos falando de uma lei de 1962 (Lei nº 4.117, de 1962), e, não apenas disso, estamos falando de um setor que não observa nem o que está escrito na Constituição brasileira, que é a preferência por atividades educativas, culturais e artísticas, além da informação.
Toda vez que se tentou colocar um freio na TV, o discurso pronto é avocado contra a censura e o risco da volta dos tempos da ditadura no Brasil.
Resta saber quem será o defensor dos direitos dos internautas, que também não querem uma censura a priori, em que, para evitar acidentes, vamos tirar todos os carros da rua. Seria até muito bom numa sociedade utópica eliminar por inteiro todos os instrumento que oferecem riscos à saúde, à honra, à dignidade e à vida das pessoas, como armas e bebidas alcoólicas, só para iniciar o debate, mas os tempos de sonho de John Lenon na canção “Imagine” ainda não chegaram. Uma metáfora que eu li seria como parar todos os caminhões dos Correios e Telégrafos na rua porque numa das cartas há algum tipo de contrabando.
Que tal ler os livros de Machado de Assis pelo YouTube ou as obras dos principais educadores de todos os tempos, como Paulo Freire? Esta é a essência da internet! Se você for a uma lan house e entrar, sem querer, na conta de um usuário que deixou o e-mail aberto, será processado por isso?
Ver a internet como o castelo das sombras não vai ajudar a entender a multiplicidade da rede e as suas necessidades. De novo, se ainda temos mais da metade da população brasileira alijada de um acesso pleno à internet e a essas maravilhas da informação e da comunicação, acho que talvez o nosso problema maior seja o de democracia digital, e não de crime digital.
A leitura do relatório da CPI é ímpar para entender esse processo, mas, certamente, essa navegação nas ondas da legislação por uma internet segura não combina com ultra-mega-hiper-super velocidade. Nesse caso, e somente neste, é melhor um acesso discado para apreciarmos melhor a paisagem que é a liberdade que a internet conquistou no seu nascedouro!