Na noite da última quarta-feira (14), quatro projéteis de arma de fogo atingiram em cheio a rotina nacional. Alojados na cabeça de Marielle Franco, 38 anos, brutalmente assassinada no Rio de Janeiro, as balas ceifaram a vida da vereadora negra do Psol, mas não as ideias que ela defendia e difundia – para além da simples comoção, a resposta da população já no dia seguinte ao assassinato foi o grito de protesto de milhares nas ruas, o ato do partido no plenário da Câmara, a mobilização de entidades de classe, os ecos mundo afora. Até o Parlamento europeu manifestou comiseração ao Brasil, em sessão plenária.
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Alguns dizem que vamos viver uma disruptura social, ou seja, uma brusca guinada nos rumos e opiniões da coletividade, com efeitos inclusive nas próximas eleições. Outros preferem esperar o desenrolar das investigações e, a depender do resultado, apontar uma tendência mais segura para o resto do ano. Mas há quem apenas veja, a partir das manifestações de protesto e em solidariedade a Marielle e sua causa, um movimento de despertar de consciência. E sem qualquer interferência na corrida eleitoral deste ano.
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Diante da pluralidade de opiniões que ganhou o noticiário nos últimos dias, e da montanha de dúvidas erguida no país a partir do assassinato – ou execução, principal linha de investigação das polícias do Rio –, o Congresso em Foco publica sua contribuição para o debate. Em um contexto de desinformação de parcela da população e do câncer das notícias falsas espalhadas em redes sociais, profissionais e estudiosos das mais diversas áreas e tendências ideológicas foram ouvidos pela reportagem e aqui registram suas opiniões.
Para o professor da Universidade de Brasília (UnB) e mestre em Ciência Política Ricardo Caldas, o assassinato não terá qualquer efeito sobre as votações nacionais, e não abala a intervenção que o presidente Michel Temer (MDB) decretou na segurança pública do Rio. “Pelo contrário. Acho que até pode ter um efeito oposto, que é justamente o de reforçar o discurso do governo pela segurança, pela intervenção”, diz o acadêmico. “Por mais paradoxal que seja, o assassinato dela reforça a tese do governo de que o Rio está sem segurança.”
Para Ricardo, sequer a imagem do Exército, cujos comandantes são os interventores, sofrerá abalo em decorrência do crime. “Não importa. Não existe instituição perfeita. Nem a Polícia Militar, nem o Exército, nem a Polícia Federal, nem a Polícia Civil. Todas elas são limitadas. A busca por segurança não é perfeita, sempre vai haver crimes não resolvidos”, acrescenta o professor, autor de livros sobre políticas públicas, globalização e cultura.
O morro que desce
Mas o geógrafo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Gilberto Vieira dos Santos vê o quadro da intervenção sem a mesma importância. Para Gilberto, a política de mercado de Temer e a própria intervenção são exemplos do “contexto de golpe” ao qual a população está submetida.
“É uma intervenção militar num governo de caráter subserviente, entreguista (pré-sal, Petrobras, Base de Alcântara). Até agora o que vimos da intervenção foi uma sequência de violações, crianças revistadas, pessoas sendo fotografaras com seus documentos. Enquanto isso, nada de efetivo. Apesar de, na boca miúda, até os pipoqueiros da praia sabem onde chagam as armas no porto”, diz Giberto, mestrando em Desenvolvimento Territorial na América Latina e no Caribe e membro do Centro de Estudos de Geografia do Trabalho da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Lembrando que Marielle foi designada como relatora das comissões que vão acompanhar a intervenção, Gilberto destaca que a vereadora era não só mulher em uma sociedade patriarcal e machista, mas também “negra, favelada e com postura”. “Não abaixou a cabeça como quer a secular elite branca. Aquela mesma que critica políticas de ações afirmativas e cotas raciais. Ela era a expressão do moro ‘que desce’, a senzalas questionando a casa grande e transitando no espaço ‘próprio’ desta elite”, disparou o geógrafo indigenista.
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Já o advogado Antonio Rodrigo Machado, diretor da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF), considera que a representatividade de Marielle junto ao povo pobre do Rio faz com que sua morte tenha reflexos nas urnas, em outubro próximo. “Marielle representava um setor da política que compreende que a violência atual no nosso país tem causas históricas e público-alvo bem definido, que é a população negra e pobre de nossa nação. Nesse sentido, as ideias de Marielle, com a sua morte, tendem a se fortalecer enquanto simbologia da defesa de um método de política, em que as pessoas consideradas pelo sistema como cidadãos de segunda classe devem ter tratamento cidadão, digno, de igualdade perante toda a sociedade”, explicou.
Antonio lembra que, segundo o Atlas de Violência do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2017, a cada cem homicídios, 71 são de pessoas negras. O advogado citou ainda os números, de 2016 para 2017, que ressaltaram o aumento de mortes da população negra, enquanto, por outro lado, diminuiu o percentual de brancos na estatística de assassinatos. Antonio destaca que, quando defendia suas ideias, Marielle tinha sua voz ouvida onde o Estado não chegava.
“Ideias como a da Marielle, que se voltam contra o assassinato do povo negro, tendem a ganhar maior visibilidade com sua morte. Como já disse o poeta, nenhuma bala tem a capacidade de matar uma ideia. Eu complemento dizendo que os holofotes em cima do assassinato da Marielle terão como consequência uma visibilidade ampliada acerca daquilo que ela defendia. Essa simbologia vai interferir no debate – como hoje já interfere em mesas de bar, em grupos de amigos, familiares, nos espaços institucionais. Esse é um tema que vai vir à mesa em todos os lugares, em todos os espaços. E, consequentemente, aquilo que ela defendia vai se tornar pauta política, especialmente nas eleições”, vislumbrou o representante da OAB, para quem a intervenção decretada por Temer foi uma decisão “atabalhoada” e tomada sem diálogo, “a portas fechadas”, pelo mesmo governo que gastou “rios de dinheiro em propaganda da reforma da Previdência”.
Fundo do poço
Isoladamente, como lembra Antonio Rodrigo, a própria intervenção federal no Rio, que sequer especificou seu orçamento, foi posta ainda mais em xeque com o caso Marielle. Para muitos, trata-se de uma demonstração de crueldade do crime que, em ano eleitoral e com o governo rejeitado por mais de 90% da população, configura-se como uma dor de cabeça extra (e de consequências imprevisíveis) para Temer. Mas, para a jornalista e analista de tendências fluminense, Daniella Sholl, é preciso esperar o desenrolar das investigações para saber se o caso chegará às urnas em outubro.
“Vai depender do resultado da investigação, de quem matou [Marielle]. Se for uma investigação bem rápida, e tudo indica que vai ser, a gente vai ter uma noção melhor de quem cometeu esse crime – se foi milícia, se foi Polícia Militar. Independentemente do resultado, o que está acontecendo é consequência dessa falta absurda de comando do Estado. A gente já estava no fundo do poço e descobrimos que não, que o fundo do poço pode ser mais fundo”, opinou Daniella, fundadora da DS Comunicação, agência especializada em Comunicação e Relações Públicas.
Para Daniella, embora a intervenção fosse inevitável, suas consequências vão ser cada vez mais sentidas. “Faz todo o sentido de que isso poderia ser uma reação de alguns setores, da própria polícia, insatisfeitos com a intervenção”, acrescentou a analista, com sotaque carioca e conhecimento de causa.
“Os caras deram um recado de quem é que manda no pedaço. Agora, a intervenção, por outro lado… quando o próprio governador [Luiz Fernando Pezão] vai ao presidente da República e diz que perdeu as condições de garantir a segurança no estado, não resta outra alternativa. O próprio governador jogou a toalha, e esse detalhe não pode ser esquecido. A menos que essa seja uma versão não verdadeira – e até agora não foi desmentida nem por Pezão nem por ninguém –, que alternativa tinha?”, questiona Daniella, lembrando do caso Amarildo, da Rocinha, vítima dos mesmos males da Maré que criou Marielle, o pedreiro cujo desaparecimento e morte levaram à condenação de 12 policiais militares.
Na visão da jornalista e ativista brasiliense Maria Madalena Rodrigues, o assassinato de Marielle Franco tem traços de violência do Estado “contra uma mulher negra, intelectual, politizada, líder comunitária e política, cidadã protagonista com fortes perspectivas de crescer politicamente”. E, para Maria, a vereadora foi morta porque moveu as estruturas que ela tanto lutou para que fossem democratizadas, de maneira que relativizar sua morte ou atentar contra sua importância é contribuir para a violência.
“Sua ascensão tornou-se intolerável para uma polícia corrupta e truculenta. Aos que banalizam ou tentam justificar essa brutalidade, lembro que a vítima poderia ter sido eu ou você, ou sua irmã, ou sua filha ou sua amiga. É preciso investigar e punir exemplarmente esse crime. Nenhuma ideologia, seja qual for, pode nos embrutecer, nos tiranizar, nos tornar vítimas ou carrascos. Sem essa consciência nossa sociedade se esgarça, torna-se inviável”, defende a jornalista.
De Betinho à barbárie
A ideia de que o Brasil ainda não chegou ao “fundo do poço”, embora já imaginasse tê-lo alcançado, é compartilhada pelo professor e procurador da Fazenda Nacional Aldemario Araujo Castro. Para Aldemario, o fato de pessoas comemorarem o assassinato de Marielle demonstra um “flerte com a barbárie” em curso no país. Além disso, as reações em redes sociais, com com destaque para a produção e o compartilhamento massivos de fake news, conotam um “profundo e disseminado desprezo por elementos civilizatórios básicos” e apontam para o desconhecimento até acerca do que são direitos humanos.
“A delicadeza do atual momento histórico e os enormes riscos projetados decorrem justamente da crescente constatação acerca da acelerada erosão dos níveis civilizatórios elementares. Não é viável nenhum projeto, de qualquer coloração ideológica, a partir da barbárie, onde são majoritários e determinantes: violências física e psicológica, ódios, discriminações, preconceitos, desconsideração sistemática das instituições e da ordem jurídica, desprezo por direitos, entre outros elementos”, analisa o procurador, mestre em Direito e colunista deste site.
Bárbara ou não, o certo é que parte da sociedade brasileira, que se mantinha inerte diante de escândalos persistentes de corrupção no governo Temer, levantou-se contra a violência e os demais desmandos do país. Trata-se de uma disruptura clara e com efeitos objetivos de mudança de cenário para as próximas eleições, na opinião do jornalista Fernando Rodrigues.
“A disrupção que a tragédia provoca tem poder para alterar as peças que são competitivas na corrida presidencial. O debate sobre segurança pública já era proeminente. Agora, domina o cenário por completo”, escreveu Fernando em artigo publicado na última quinta-feira (15), dia seguinte ao crime. Para Fernando, “é devastador para a imagem do governo federal o ‘efeito demonstração’ das manifestações de rua no Rio, São Paulo e em outras cidades”, nos moldes do que aconteceu nas chamadas “jornadas de 2013”, série de protestos que se alastraram pelo país e serviram de semente para, três anos depois, aflorarem no impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT).
O professor da UnB discorda. Para Ricardo Caldas, há outro parâmetro de comparação para as reações à passagem de Marielle. “Não chamarei de disruptura. Eu diria que houve uma conscientização, um despertar. E eu também não compararia a 2013, mas lá atrás, nos anos 80, com o combate à fome. Tínhamos o Betinho como uma pessoa da sociedade civil, sem nenhuma influência, e de repente ele começou a fazer um discurso muito forte, de que era preciso combater a fome”, pondera Ricardo, referindo-se ao sociólogo Herbert José de Sousa, ativista dos direitos humanos morto em 1997.
“E a questão do combate à fome entrou no discurso oficial tanto no governo Sarney [1985-1990] quando no próprio governo Collor [1990-1992], e de maneira mais clara no governo Fernando Henrique [1995-2002]. Então, eu diria que esse movimento da sociedade é positivo e tem como consequência direta inserir novas questões na agenda”, arremata o pesquisador.
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