Daniela Lima*
Em meio à pressão de grupos ligados à especulação imobiliária e a uma forte disputa política, o governador José Roberto Arruda (DEM) pressiona a Câmara Legislativa a aprovar, até o próximo mês, uma proposta que altera a destinação do uso das terras públicas no Distrito Federal. Na prática, segundo ambientalistas, o projeto de lei ameaça o abastecimento de água no DF e um dos principais símbolos da cidade, o Setor Catetinho, berço da construção da capital.
A mudança está prevista no projeto de lei complementar que revisa o Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) do DF, em tramitação há um ano na Câmara Legislativa. Considerada indispensável pelo governador para a execução de seu programa governamental, a proposição aguarda há três meses deliberação das três comissões encarregadas de analisá-la.
O projeto prevê o aumento do território urbano do DF em 3% e a expansão sobre as áreas de proteção ambiental. O avanço das áreas urbanas possibilitará a criação de novos setores habitacionais, com capacidade para até 85 mil moradias. O Plano Piloto, área tombada como patrimônio histórico da humanidade, fica fora das modificações.
Leia também
Além disso, áreas rurais terão a destinação de uso modificada, o que permitirá ao governo regularizar condomínios, alguns deles já instalados, que podem abrigar até 120 mil famílias. No meio desse montante estão incluídas 20 mil moradias na região da reserva ambiental do Tororó, localizada às margens da DF-140.
Caso o projeto seja aprovado, a região do Catetinho, situado entre as cidades do Gama e de Santa Maria, deixará de ser uma Área de Proteção de Mananciais (APM) para se tornar um setor habitacional, com até 25 mil moradias. Ali, em 1956, foi erguida a primeira residência oficial do presidente Juscelino Kubitscheck em Brasília. O prédio, de madeira, abriga hoje um dos principais museus da capital.
Escassez
Até mesmo a empresa do GDF responsável pela captação e tratamento de água, a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb), questiona a implantação do Setor Habitacional Catetinho.
Em documento enviado no último dia 22 de fevereiro à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Seduma), o diretor-técnico da Caesb, Cristiano Magalhães de Pinho, explica que o abastecimento de água do DF é caracterizado pela proximidade entre a capacidade de produção e a demanda.
“Não poderíamos assegurar, portanto, o abastecimento com 100% de confiabilidade em algumas regiões localizadas caso abríssemos mão de alguma captação”, disse Cristiano, referindo-se ao empreendimento que coincide com as APMs do Catetinho e Alagado, fontes de captação da estatal.
Atualmente, o Distrito Federal ocupa a terceira posição no ranking das unidades da federação que enfrentam situações críticas de abastecimento hídrico. “O problema da água no DF é muito mais sério do que se pensa. Temos apenas duas fontes de abastecimento, e eles vão construir sobre os mananciais, os pequenos olhos d’água que temos e servem para alimentar nossos reservatórios”, condena o presidente do Instituto de Desenvolvimento Ambiental, Luiz Mourão.
Um dos maiores defensores da implantação do Setor Habitacional Catetinho é o relator do PDOT na Comissão de Meio Ambiente da Câmara Legislativa, deputado distrital Batista das Cooperativas (PRP), fortemente ligado às cooperativas habitacionais. Batista fez pronunciamentos públicos favoráveis à ocupação do setor que, segundo ele, seria destinado à construção de moradias para a população de baixa renda.
Procurada pelo Congresso em Foco na última quinta-feira para falar sobre a proposição, a assessoria do deputado se limitou a informar que ele estava finalizando seu relatório e que não falaria com a reportagem sobre o assunto.
Por meio da assessoria de imprensa, a Seduma informou que não se manifesta sobre o PDOT enquanto o projeto estiver em tramitação na Câmara Legislativa. Sobre os pontos polêmicos da proposta enviada pelo Executivo, argumentou que foram feitas 272 reuniões com os setores interessados da sociedade, incluindo aí a realização de audiências públicas.
Ainda segundo a assessoria, muitas das dúvidas sobre a proposta foram sanadas durante esses encontros. De acordo com a secretaria, apesar dos esforços do órgão em divulgar o PDOT, “as pessoas não se interessavam”.
Arrecadação
Além dos impasses sobre questões ambientais e urbanísticas, também sobram questionamentos sobre os parâmetros adotados pelo governo para a alteração de algumas áreas.
O projeto prevê a criação de localidades chamadas de Áreas de Contenção Urbana nas zonas limítrofes de várias cidades do DF. Atualmente, elas são classificadas como áreas rurais. Com o PDOT, serão transformadas em áreas urbanas, podendo abrigar até 15 habitantes por hectare.
Segundo o governo, a alteração facilita a fiscalização e evita a atuação de grileiros, que poderiam parcelar irregularmente esses terrenos. Na prática, a conversão da destinação de uso rende muito aos cofres públicos. Como ocupantes de uma área urbana, os moradores passarão a arcar com os custos do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU), cujas taxas são mais altas do que as do Imposto Territorial Rural (ITR).
Os lotes que terão a destinação de uso alterada serão licitados pela Terracap, autarquia do governo encarregada da venda de terrenos públicos. “A justificativa do governo em criar esses novos setores é abrigar a população de baixa renda, que representa 80% da demanda por habitação no DF. A julgar pelas áreas licitadas pela Terracap este ano, em que o órgão comemorou arrecadação acima da previsão, o PDOT pode ser um grande instrumento para a especulação, não servindo ao que se propõe”, pondera a urbanista Suely Gonzáles, ex-professora da UnB e autora de um estudo sobre o plano diretor.
Política
Mesmo com o apoio da sua base, composta por 18 dos 24 deputados distritais, o governador Arruda tem encontrado dificuldade para fazer a proposta avançar. O governo chegou a ventilar no fim da última semana que havia desistido de pressionar a base para aprovar o PDOT ainda este ano.
É que as polêmicas vinculadas ao projeto estão emperrando a apreciação da proposta no Legislativo local. Alvo de críticas do Ministério Público do DF e Territórios, ambientalistas e urbanistas, o projeto do Executivo também esbarra na resistência de sua própria base de apoio.
Desde que a proposição foi enviada à Câmara Legislativa, em novembro do ano passado, os distritais governistas têm travado intermináveis negociações com interlocutores do governador. Em troca de apoio para o projeto, reivindicam liberação de emendas, cargos e até concessões no novo plano diretor.
Pressão
Para acelerar a votação, Arruda passou a organizar no último mês reuniões quase diárias com os distritais. Agora, a expectativa é de que o relatório final das comissões seja apresentado para os seus respectivos membros esta semana, para só depois ser divulgado aos demais parlamentares.
“O PDOT é um grande buraco negro, a não ser para as pessoas que participaram da sua elaboração. Se os relatores demoraram três meses para analisar e modificar o projeto, como é que nós vamos avaliá-lo antes do recesso em dezembro para colocar em votação no plenário?”, critica o líder do PT na Casa, deputado Cabo Patrício. “A pressa em aprovar esse projeto, um ilustre desconhecido dos parlamentares, é toda do governo”, corrobora o distrital Paulo Tadeu (PT).
Na tentativa de fazer com que o PDOT seja votado ainda este ano, o governo quer fechar as negociações com a base esta semana, para que os relatores possam apresentar o PDOT às comissões, aprová-lo e depois submetê-lo ao plenário, dando aos parlamentares que não conhecem o projeto apenas uma semana para apreciá-lo.
Se conseguir azeitar a relação com os deputados da base, o Executivo aprova o PDOT sem problemas, já que, para isso, precisa de apenas 16 votos.
A versão final do PDOT, segundo apurou o Congresso em Foco junto aos relatores da proposição, conta com dezenas de emendas e a adesão de mais de 200 propostas feitas nas audiências públicas.
“Esperamos que eles entreguem o relatório ao plenário esta semana, para que os deputados conheçam a proposta e possam votá-la até dezembro”, reafirma o líder do governo na Câmara, o distrital Leonardo Prudente (DEM).
Colabora para aumentar a pressão sobre a apreciação da proposição a proximidade da eleição da nova Mesa Diretora da Câmara Legislativa. O nome do novo presidente ainda é uma incógnita e a composição das comissões permanentes pelos próximos dois anos também. A nomeação de novos relatores poderia dar cabo da articulação feita pelo Executivo até o momento.
*Colaborou Renata Camargo
Leia ainda: